Lido o livro de Raimundo Narciso sobre a dissidência da “terceira via” (*), fractura partidária sobre a qual aqui me pronunciei (este mais este post) antes de conhecer o conteúdo do livro, aqui ficam apenas breves notas sobre a sua importância para a história do comunismo português:
- As “feridas” da odisseia não perturbaram a serenidade de análise nem a reconstituição factual e das personagens, “tudo” está no livro (como eu e tantos outros os conhecemos, aqueles que puderam e quiseram conhecer).
- Nunca foi até ao momento publicada uma “descida” com a profundidade desta ao “interior” do PCP, aquele íntimo e essência partidária, nomeadamente o seu núcleo de poder real, que a duplicidade propagandística deste partido esconde dos cidadãos, incluindo a esmagadora maioria dos seus militantes, os que amam aquele partido, lhes entregam as maiores energias das suas vidas e lhe cumprem as tarefas, tanto que o poupam ao olhar crítico.
- Depois de se ler o livro, basta imaginar o que seria aquele núcleo dirigente, com ou sem Cunhal, mas segundo o “modelo” de Cunhal, no exercício do poder político, a mandar no país: Estaline e o Gulag estariam aqui.
(*) “Álvaro Cunhal e a Dissidência da Terceira Via”, Raimundo Narciso, Edições Âmbar. O livro será apresentado publicamente no próximo dia 17 de Maio, às 18h30, na FNAC (Chiado) por Mário de Carvalho e Mário Lino. Sobre o livro, visitar este blogue.
Imagem: Raimundo Narciso quando ainda era considerado por Cunhal. Aqui, a ladeá-lo na delegação do PCP enviada ao funeral do Marechal Tito.
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Adenda: Recomendo a consulta da "nota de leitura" deste livro editada pelo historiador Rui Bebiano.
De
JMC a 15 de Maio de 2007
Ainda não li o livro do Raimundo Narciso. Muito provavelmente, irei ler, por curiosidade.
Não tenho boa impressão dos dissidentes que se mudaram de armas e bagagens da militância no PCP para outras militâncias sem terem efectuado profundas reflexões políticas e ideológicas. Não que a mudança seja sinónimo de oportunismo, mas porque a dissidência foi, em muitos casos, mero capital para a troca.
Em geral, os dissidentes do PC padecem do mesmo cinismo de que acusam os dirigentes. Os seus relatos, que entre nós raramente chegam a qualquer reflexão ideológica, constituem justificações tardias de uma cegueira desejada, da qual, em boa verdade, os dissidentes parece não se terem curado.
Nos testemunhos vindos a lume, em muito poucos se vislumbra um laivo de auto-crítica. Os maus foram sempre os outros, que os teriam enganado, nunca os próprios dissidentes, que apenas acreditaram numa ideologia sublime e redentora. Mas afinal eles padeceram dos mesmos males de que acusam os dirigentes, acreditaram nas mesmas patranhas, difundiram as mesmas trapaças e praticaram os mesmos desmandos (muitas vezes contra outros dissidentes antes deles…).
O comunismo é uma coisa séria, não é mera utopia. É o desejo de controlo totalitário da sociedade por quem se julga iluminado, tocado pelo conhecimento certo, e dotado para conduzir as massas ignaras para a felicidade terrena. Pouco se distingue do fascismo salazarista, e no que se distingue é dele bem pior, porque fundado numa pseudo superioridade conferida pela fé no conhecimento da realidade social e do seu futuro histórico. Abjurá-lo não pode resumir-se ao repúdio das metodologias internas ou à crítica de hipotéticos desvios que teriam desvirtuado a imaculada utopia.
Tal como a adesão ao comunismo, para muitos, foi superficial, por adesão emocional à cartilha, assim o tem sido a dissidência. Por isso, os testemunhos não têm passado do relato de episódios picarescos.
Caro JMC, como decerto esperaria, em pouco concordo no seu comentário. Pela generalização, pelo juízo moral, pelo reducionismo nos contextos. Aliás, tirando o ângulo ideológico, tem grandes similitudes com o reflexo defensivo da ortodoxia. Se quer ficar na sua, então não leia o livro do RN (decerto é isso que também farão os militantes satisfeitos do PCP e todos os que identificam sem apelo os dissidentes com os "vira-casacas"), poderia abalar as suas firmes convicções e, por honestidade intelectual, voltar aqui para, pelo menos, introduzir nuances nas suas sentenças tão lapidares (a propósito de um livro que não leu). É que está lá muito além do picaresco. Dito isto, resta-me agradecer-lhe a honra de partilhar as suas dissonâncias, ajudando a incrementar a pluralidade de pontos de vista. Volte sempre que a isso se dispuser (vc defende as suas damas com vigor mas com absoluta correcção).
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