(complementando este post)
Visto à distância, o que sobrou da “terceira via”? Quanto aos dissidentes, um conjunto vasto de ex-militantes tresmalhados pelas esquerdas, em que alguns foram “pescados” pelo PS (onde um número reduzido, entre os “notáveis” da dissidência, atingiu postos de relevo, incluindo na governação, nas autarquias e no Parlamento), outros (muito poucos) acolheram-se ao albergue bloquista, restando um número apreciável dos que navegam solitários e só se encontrando, ou não, em causas pontuais. Mas todas estas manchas dispersas de ex-militantes comunistas não só foram incapazes de, fora do PCP, manterem uma qualquer unidade orgânica ou um cimento ideológico comum, como, por si ou em conjunto, diluíram-se e não influenciarem minimamente um reordenamento ou revigoramento da esquerda portuguesa e, ao contrário, viram-na deslizar para a impotência perante o pragmatismo dessa espécie de “social-liberalização” liderada por Sócrates. Notório ainda é que não deixaram “pontas” para dentro do PCP, onde os seus militantes persistentes aparentam uma sólida imunização adquirida relativamente a repetições de “contaminações”. No respeitante ao PCP, passado da crispação ao cinzentismo “normalizador” de Carvalhas, ultrapassada sem problemas de maior uma réplica dissidente de fraca intensidade e sem ponta de chama com os “renovadores comunistas”, não só houve um reforço do monolitismo interno e do entusiasmo partidário como foi conseguida uma recuperação eleitoral que, pela primeira vez, embora não ultrapassando a barreira de um dígito, inverte o sentido de declínio vindo da “guetização” iniciada com a vitória da “contra-revolução” e a ameaçar a passagem a um estado residual com a implosão do império comunista. Resumindo, enquanto os dissidentes se dispersaram e têm insignificância política, o PCP, mesmo perdendo o que era o importante e decisivo apoio soviético, apresenta-se como uma excepção na vaga de definhamento e desaparecimento acelerado de partidos comunistas no mundo.
Neste quadro, pode concluir-se que, mais que uma rebeldia consequente ou um abalo de mudança, a “terceira via” resultou, afinal, numa purga bem sucedida oferecida à fracção dirigente do PCP. Ou seja, libertou o partido de uma “ala de direita”, social-democratizante, congregando-o pelo entusiasmo de uma sensação de retorno à essência bolchevique, contabilizando o descrédito da “perestroika”, a hiper-mitificação necrófila de Cunhal e a simultânea chegada á liderança de um populista paroquiano com boa relação e aceitação pela comunicação social, num caldo “oferecido” de amplos e diversificados ressentimentos sociais gerados em catadupa pela “reforma contra os pequenos” desencadeada pelo governo de Sócrates. Além do fenómeno mais recente da erupção de um neo-fascismo serôdio, o da saudade salazarista, que, embora grupuscular, proporciona ao PCP a re-encenação da luta “antifascista” e, nesse quadro, voltar a auto-exaltar-se com velhos pergaminhos dicotómicos pré-democráticos.
No entanto, este balanço de ganhos e perdas não pode contornar o muito que mudou, por efeito da “perestroika” e da implosão do movimento comunista internacional, com o associado impacto interno e mediático da “terceira via” (no essencial, um reflexo importado da “perestroika”), na natureza do comunismo português.
Os dissidentes, opondo-se à natureza profundamente estalinista do molde partidário de Cunhal e contra a asfixia sectária que impedia a transição do PCP de um partido revolucionário para um partido democrático, jogando essa adaptação numa aproximação ao PS, bem como uma libertação da tutela soviética, mantinham ilusões (muitas) que era possível chegar a esses objectivos por uma mítica “purificação leninista” que fizesse uma ponte histórica entre o legado do partido, a sua matriz e tradição, e um futuro de democratização do partido, nomeadamente convertendo-o ao valor da liberdade (valor esse que, imperativamente, colide nos comunistas com o valor supremo da eficácia partidária). Rapidamente constataram a incongruência do projecto, e se Lenine rapidamente caiu como inspirador salvador (nada que não tivesse já acontecido com Krutchov e com Gorbatchov) por, afinal, o estalinismo não passar de um fase avançada do leninismo, sendo indissociáveis, foi-se ficando pela inspiração do velho Marx e hoje provavelmente nem sequer isso para a maioria dos ex-dissidentes. E, assim, cada dissidente, no seu percurso próprio, tendo começado por tentar purificar o comunismo, rapidamente se reencontrou, em menor ou menor grau, mas espantado, como socialista “de esquerda” e não comunista (uma parte transitou até para o anti-comunismo).
Quanto à fracção dirigente do PCP, a vencedora e que liquidou a fracção da “terceira via”, extirpando esse “desvio de direita”, a forma que encontrou para a sobrevivência do PCP no panorama devastador da hecatombe comunista, foi a via da “simplificação”, conservando as velhas referências ideológicas nas palavras, nos ritos e nos símbolos, mas dedicando-se ao populismo sindicalista mobilizador dos ressentimentos sociais, numa retórica de duplicidade entre a intervenção no jogo democrático e a sobrevalorização das acções de massas e do projecto revolucionário, cultivando o obreirismo e a superioridade política da classe operária, nessa evidente esquizofrenia de dar vivas ao proletariado enquanto arregimenta pouco além de funcionários públicos, professores, polícias e militares. Hoje, para um militante comunista, dizer-se marxista-leninista chega e sobra como apetrecho teórico, depois, para realizar a praxis, é ir aos comícios, às manifestações, não faltar na “Festa do Avante”, comprar os livros do Álvaro e dar um abraço ao Jerónimo. É, pois, um estalinismo descarnado ideologicamente, simplificado e popularizado, estagnado nos mecanismos psicológicos conservadores da resistência à mudança, juntando-lhe a constância da profunda aversão política pelo PS. Tal como com os dissidentes da “terceira via”, embora com um impulso esquerdizante-populista no lugar do “desvio de direita”, também o PCP, a sua direcção, à sua maneira, sepultou o que havia de Marx e Lenine no percurso do comunismo português (que, diga-se, nunca foi muito e talvez nunca tenha chegado a ultrapassar o legado anarco-sindicalista que foi seu berço nem a inspiração da religiosidade popular católica disfarçada com pintura de vermelho vivo).
Resumindo, a ascensão e liquidação da “terceira via” não passou de um espectáculo partidário dentro do espectáculo político maior: o desaparecimento, embora não formal, do comunismo português e do seu património marxista-leninista acumulado. Por formas diferentes feitas em paralelo, consoante a mesma obra foi feita para fora ou por dentro do PCP.
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[Este e o anterior post sobre o mesmo tema foram escritos sem ler o livro sobre a "terceira via" escrito por Raimundo Narciso agora disponível nas livrarias e cujo lançamento público decorre no próximo dia 17. Nem o seu autor me deu qualquer conhecimento acerca do seu conteúdo nem discorremos em conjunto com profundidade sobre aquilo que cada um de nós entende, beneficiando da distância no tempo, sobre esta dissidência em cuja "luta fraccionária" estivemos no mesmo barco e que, através do convívio com o saudoso António Graça, um querido amigo de ambos e impulsionador destacado da "conspiração", nos tornou depois em bons amigos pessoais mas sempre com vivas discordâncias, recheadas de indestrutível "fair-play", acerca de muitas das questões políticas nacionais e internacionais. Assim sendo, não faço a mínima ideia se as minhas teses, as que exponho neste e no anterior post, coincidem ou divergem com as defendidas por Raimundo Narciso. Do livro, tratarei quando o ler e se ele me der algum motivo para voltar à abordagem do tema.]
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