Quinta-feira, 10 de Maio de 2007

A GRANDE DISSIDÊNCIA COMUNISTA (1)

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A dissidência no PCP ocorrida no final da década de 80, conhecida como “terceira via” (1) (2), cujo manifesto foi subscrito por três centenas de militantes e foi adoptado tacitamente por milhares de outros que entenderam assumir uma “ruptura silenciosa” (com outros a "borregaram" quando foram "chamados à pedra" e a fracção estalinista lhes puxou as orelhas, como foram, por exemplo, os casos do escritor José Saramago e do historiador António Borges Coelho e alguns autarcas comunistas)  foi o grande teste ao figurino da identidade política e ideológica dos comunistas portugueses pós-25 de Abril e reflectiu-se na sua maior sangria de militantes, com reflexo colateral num reforço do absoluto monolitismo estalinista que consolidou o poder de Cunhal (enquanto teve saúde) e a sua corte de bonzos ortodoxos (3) que não pararam de reforçar posições até arrastarem o partido para a sua degradação política e ideológica maior -  a fase actual de “populismo de sociedade recreativa” com o medíocre Jerónimo de Sousa a representar o papel de caricato timoneiro (liderança traduzida em discursos sindicalistas serôdios, beijos e abraços).

 

O factor de influência maior que fez a cama a esta dissidência foi um factor externo (a “perestroika” de Gorbatchov na URSS) onde se deitou a evidência da incapacidade do PCP, no quadro da realidade social e política portuguesa, inviabilizada que estava a hipótese de transformação revolucionária (o refluxo continuado arrastava-se desde final de 1975), adaptar-se ao jogo democrático e à consequente revitalização e reorientação internas em que, antes do mais, pesava o ordenamento estalinista asfixiante da falácia do “centralismo democrático”, essa perversão eufemista para o domínio absoluto da fracção dirigente entronizada na década de 60 após a fuga de Cunhal da prisão de Peniche.

 

A influência decisiva da “perestroika” a perturbar a vida interna do PCP é perfeitamente compreensível num partido marcadamente “moscovita” e educado há muitas décadas (desde os tempos da liderança de Bento Gonçalves no início da década de 30) a prestar vassalagem a uma potência estrangeira (disfarçada numa espécie de dialéctica entre patriotismo e internacionalismo). Por um lado, a direcção do PCP estava entalada perante o PCUS e Gorbatchov, com a inércia da inibição de criticar minimamente o que soprasse do Kremlin. Aliás, houve uma afectividade política especial inicial entre Cunhal e Gorbatchov: este, antes de mandar na URSS, havia estado em “training” no Porto, em 1983, como representante do PCUS ao X Congresso do PCP, tinha sido “lançado” por Andropov e proposto como Secretário Geral para suceder ao falecido burocrata medíocre Tchernenko pelo experimentado e insuspeito Gromiko (essa espécie de patriarca honorário da cúpula do aparelho herdado de Brejnev) e prometia um regresso fortalecido ao “leninismo”. Leiam-se os “Avantes” dos tempos do X Congresso e os artigos após a entronização de Gorbatchov (nomeadamente a entrevista com Cunhal quando este regressa de uma ida de vassalagem a Moscovo para cumprimentar e estreitar laços com o novo “senhor do Kremlin”) e constata-se o nível elevado de culto a esse novo dirigente soviético apresentado como um género de “elixir de revigoramento do leninismo” no formato da “renovação na continuidade”. Como reverso, quando a “gladnost” e a “perestroika” estendem as passadeiras das heresias, revelando a iminência da ruína soviético-comunista em que a “traição Gorbatchov” iria descambar, Cunhal e o seu núcleo engoliam as raivas em seco, impotentes para atacarem publicamente o “amo moscovita”. Entretanto, os “críticos internos”, pela primeira vez, dispunham desse trunfo excepcional e virgem no PCP: contestarem a direcção e o modo de exercício do poder pela fracção dirigente aninhada sob a asa de Cunhal, inspirando-se no PCUS e respectivo Secretário-Geral (!). Quando o exercício do poder por Gorbatchov se degrada e se prepara o golpe de 1991, um factor e outro descambando depois na implosão soviética e do seu império, Cunhal e os seus recompõem-se nas suas referências estalinistas e os “críticos” perdem o abrigo da “referência soviética”, sendo expulsos ou saindo com estrondo ou silenciosamente.  

 

O grande confronto entre a “terceira via” e a direcção de Cunhal verifica-se nos tempos de preparação do XII Congresso do PCP, realizado no Porto. Em 1988 e na fase terminal de Gorbatchov. Cunhal segura o “centralismo democrático”, impede qualquer debate interno e, num Congresso absolutamente controlado, liquida a dissidência. Esta, inicia uma diáspora (uns caminham até ao PS, outros pela Plataforma XXI até ao BE, mais uns tantos a quedarem-se na "esquerda independente") que, em reverso, “purifica” o partido e leva-o à fase transitória de Carvalhas até à sua “normalização”, contando com a colaboração de quadros que recuaram nos anteriores ímpetos renovadores (alguns destes haviam, depois, de dar corpo a uma vaga menor de contestação que deu no grupúsculo da “renovação comunista” atrelada ao Bloco de Esquerda, em que as figuras que mais se destacaram foram Carlos Brito e João Amaral e Edgar Correia, ambos já falecidos). Passada esta última erupção, adicionada com a saída de posições de relevo do grupo dos "intelectuais orgânicos" ligados a Carlos Carvalhas (ele próprio, Octávio Teixeira e Vitor Dias), chegou a fase do unanimismo das lutas por reflexo condicionado e da indigência ideológica e estratégica, do aventureirismo internacionalista e do populismo obreirista, de que a leitura do actual "Avante" é um penoso exemplo de marxismo-leninismo para semi-analfabetos preguiçosos.  

 

Entre as centenas de dissidentes da “terceira via”, contavam-se cinco membros do Comité Central do PCP. Joaquim Pina Moura e Vitor Neto eram os únicos que tinham sido votados em Congresso e eram conhecido, como tal, pelos militantes e pelo público. Os outros 3 membros do CC eram “clandestinos” (um “segredo do Partido” não revelado sequer aos seus militantes e muito menos publicitados), não tinham sido submetidos a votos dos Congressos e eram ritualmente "cooptados" devido às suas tarefas partidárias (António Graça, dos “serviços de informações”; Raimundo Narciso, do controlo dos militares comunistas; José Luís Judas, dirigente da CGTP). Aliás, pelo menos até início da década de 90, para preservar a clandestinidade destes membros secretos do CC do PCP, quando este órgão se reunia, havia o ritual de eles (mais alguns outros “clandestinos”, incluindo o SG da CGTP) só entrarem na sala de reuniões após retirada dos fotógrafos e jornalistas para que o público e os militantes não conhecessem a composição completa do organismo dirigente do PCP.

 

Um dos dirigentes comunistas que, no final da década de 80, lideraram a dissidência da “terceira via”, Raimundo Narciso, resolveu (finalmente!) passar a livro a sua experiência nesta epopeia gorada e que resultou na sua expulsão do PCP. O livro chama-se Álvaro Cunhal e a Dissidência da Terceira Via”, é editado pela Âmbar e é apresentado no próximo dia 17, às 18h30, na FNAC (Chiado) pelo escritor Mário de Carvalho e por Mário Lino (um dos dissidentes expulsos e hoje ministro). Entretanto, Raimundo Narciso tem aberto um blogue dedicado a este livro a que recomendo uma visita.

 

(1)                    – Curiosa é a designação desta onda de dissidência. Autoproclamava-se como “terceira via” como forma de se distanciar, em simultâneo, da direcção controlada por Cunhal e do anterior grupo dissidente conhecido como “os seis” (Vital Moreira e outros).

 

(2)                    – O autor deste blogue foi subscritor do manifesto e membro activo da “terceira via”. A impossibilidade de discutir e propor alterações às teses do XII Congresso e o episódio recambolesco de ser chamado á sede do PCP para prestar declarações perante um adjunto fiel de Cunhal, Domingos Abrantes, o que recusei, sobre o que sabia acerca das movimentações do grupo dissidente, num acto político de nítidos contornos policiais de apelo à delação, levou-me a apresentar a demissão de membro do PCP ainda antes da realização do Congresso de 1988.

 

(3)                    – Como era apanágio das equipas estalinistas que dirigiam os PC’s, um dirigente de envergadura (de grande envergadura, no caso de Cunhal) rodeava-se, sempre, de colaboradores de segunda linha que eram fiéis medíocres, cumpridores dedicados e zelosos mas impossibilitados, por falta de estatura e independência, de disputar a liderança ou perturbar a fidelização subordinada para com Moscovo. Aconteceu assim com Cunhal no PCP, após os afastamentos longínquos (por prisão, por intriga ou por divergência) de Bento Gonçalves, Pavel, José de Sousa, Vasco Carvalho, Fogaça e Francisco Martins Rodrigues. Quando Cunhal ficou impossibilitado, por razões de saúde, de continuar a dirigir autocraticamente o PCP, a direcção do PCP tem navegado sob controlo errático de um envelhecido grupo de bonzos estalinistas formatados por Cunhal mais para obedecerem que para liderarem (hoje restam no activo pleno, José Casanova e Albano Nunes, embora Carlos Costa, Domingos Abrantes, Joaquim Gomes e Jaime Serra, mais velhos, continuem a desfrutar de autoridades decisivas nas grandes opções). A elevação de Jerónimo de Sousa, um populista de paróquia, ao cargo de Secretário Geral constitui um paradoxo e uma inversão no perfil da pirâmide de poder: os bonzos medíocres órfãos de Cunhal escolheram um líder ainda mais medíocre (politicamente) que eles para assim manterem as suas influências como “eminências pardas”.  

 

Publicado por João Tunes às 01:04
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