Sobre este post, em que alvitrei a importância de se historiar, no contexto da resistência antifascista, o capítulo dos que não suportaram a prisão e a tortura aplicadas pela PIDE, a fim de permitir que também os anti-heróis entrem na galeria da realidade dos tempos do salazarismo porque dela fazem parte, recebi um simpático comentário de Joana Lopes (*) que deu conta de um seu projecto de trabalho neste sentido. Dedico-lhe, como retribuição à sua simpatia companheira e com os votos de sucesso ao seu trabalho, este meu velho post, editado há mais de três anos, que agora republico (com ligeiros retoques):
O João Oliveira (**) era o líder incontestado da acção política antifascista no Porto ao nível do movimento associativo estudantil e das actividades culturais. No último ano de Engenharia, excelente aluno, aparentava mais idade do que a real, corpulento, rosto sulcado por rugas fundas, cabelo cortado quase rente, eriçado e com muitas brancas precoces, enorme coragem física, descuidado no vestuário e com uma calma a toda a prova perante as situações mais difíceis. Tinha sempre um sorriso sincero, os olhos brilhavam-lhe quando ouvia uma boa estória, transpirava energia e afectuosidade disponível, determinação e vontade de viver. Gostava mais de ouvir que de sentenciar, incentivava a discussão e depois guardava uma opinião lá para o fim que quase sempre era adoptada como a síntese perfeita dos nossos debates.
Originário de Aveiro, tinha andado no Técnico onde semeara uma série de discípulos. Depois foi forçado a transferir-se para o Porto e ali tornou-se rapidamente o dirigente aceite dos estudantes antifascistas. De uma maneira informal porque convinha que o João não aparecesse com responsabilidades publicamente assumidas. Formava uma dupla bipolar com o Edgar, também estudante de Engenharia e também activíssimo, mas que era o seu oposto pelos tiques e pela antipatia sentenciosa. No Porto, tal como já tinha acontecido no Técnico, o João era a referência e o guia.
No final de 1968, eu estava em Mafra e no meu segundo trimestre militar, já a tirar a especialidade de transmissões de infantaria, quando o João Oliveira entra como recruta cadete para oficial miliciano. Rapidamente juntámos as pontas da malta do associativismo estudantil que andava por Mafra e formámos um grupo de agitação contra a guerra colonial que reunia em Lisboa aos fins de semana a preparar as nossas acções. Saídos de Mafra, cada um do grupo foi para o seu lado. O João foi parar ao quartel de Bragança e rapidamente mobilizado para bater com os costados em Moçambique. Antes de eu embarcar para a Guiné, soube que o João tinha desertado e passado à clandestinidade. Perdi-lhe o rasto, é claro.
Passados uns tempos após ter voltado da Guiné, em 1971, um sujeito que não reconheci de imediato, vestido tipo empregado bancário, usando óculos com lentes muito grossas e com cabelo preto intenso e bem penteado, bate-me à porta da minha casa em Benfica. Não lhe reconheci o rosto, mas identifiquei facilmente o sorriso sereno e aberto e o modo de falar calmo e arrastado. Os sorrisos não têm disfarce. Pois era o João Oliveira a perguntar se podia entrar. Porta fechada, um abraço demorado e comovido. Apresentei-lhe a minha companheira e a minha filha Catarina, então com os seus dois anos de idade. Conversámos pela noite dentro, sem agenda e sem perguntas indiscretas e desnecessárias da minha parte. Falei-lhe da minha experiência na Guiné, ouviu atentamente e pediu-me que passasse a escrito um ou outro aspecto que lhe pareceu mais relevante. Sabia praticamente tudo sobre a minha vida particular e profissional e as actividades que eu desenvolvia ligado ao cinema. Quis saber quais eram as minhas leituras. Falei-lhe que andava à volta do Lukacs e dos seus conceitos sobre a estética realista, ele desaprovou com um ligeiro abanar de cabeça, o tipo não se tinha portado bem na Hungria em 1956, em que se deixara embeiçar pela "contra-revolução". Ofereceu-me, para "reeducação", um exemplar clandestino do "Rumo à Vitória" do Cunhal e recomendou-me o seu estudo, ao mesmo tempo que me entregava um maço de "Avantes" para distribuir. Pediu para dormir em minha casa, arranjou-se um remedeio e ele partiu manhã cedo sem deixar rasto. Voltou várias vezes a minha casa e os convívios e dormidas foram-se repetindo, passando a contar, como hóspede ocasional na minha casa, um perigoso e procurado "revolucionário clandestino e desertor". A Catarina deixou de o estranhar. Cedo percebi que ele não subia de elevador até ao meu andar. Ficava dois andares acima ou abaixo do meu e depois completava o resto do trajecto pelas escadas. Fui mantendo com ele a relação que alguém tem com a sua referência maior, a figura de um ídolo.
No princípio de
Foi uma tristeza funda ver João Oliveira sair de Caxias, a seguir ao 25 de Abril, cabeça baixa e lágrimas nos olhos, ao lado dos camaradas que ele tinha denunciado e agora eram tratados como (os) heróis, enquanto lhe cabia entrar, quando consumado o essencial do objectivo a que tinha entregue a vida, o melhor da sua vida, na marcha da ala da vergonha maior, a dos "traidores", esses que foram os maiores derrotados de Abril (em muitos julgamentos sumários dos revolucionários radicalizados pela cheiro da tinta fresca da opção comunista, atrás mesmo da fila fedorenta dos bufos e pides).
Andou por aí, na Revolução, a curtir a sua vergonha. Arranjaram-lhe, porque fizera um relato preciso e circunstanciado sobre o que falara quando saíu da sala de torturas, um lugar na assessoria do grupo parlamentar do MDP/CDE. Soube que consumia as noites pelos bares da Praça das Flores. Ainda o encontrei uma vez num bar ao pé da Assembleia da República. Tinha as rugas mais fundas, o sorriso e o brilho nos olhos eram frouxos, o vestir era ainda mais desleixado que nos tempos do Porto e acompanhava um rancho de jovens companheiras desinibidas e apetitosas. Dei-lhe um abraço e tentei oferecer-lhe um sinal de olhar discreto a querer dizer “amigos como dantes”. Mas senti que gostou e não gostou de me ver. Disse-me repentinamente adeus com um gesto brusco e imperativo. Não insisti. Respeitei-lhe o direito a fazer o seu luto. Ainda hoje respeito. Nas epopeias de libertação, também cabem os não heróis, mesmo os anti-heróis, aqueles que cairam engolidos pelas frinchas abertas entre as tábuas da ditadura, da luta e da libertação.
(*) Joana Lopes tem um excelente blogue a que recomendo uma visita e é autora do livro “Entre as brumas da memória – Os Católicos portugueses e a ditadura”, Edições Âmbar.
(**) – Nome alterado.
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