O livro recentemente editado pela “Assírio & Alvim” sobre ex-presos políticos portugueses (*) tem a particularidade primeira de ser da autoria de dois jovens, o que confere aos seus olhares (pela fotografia ou pela obtenção dos depoimentos) uma componente de “descoberta” perante os tempos em que se era preso por se combater por ideias, um quase absurdo nos tempos que correm (pela ausência de repressão e porque são muito escassas as ideias). Depois, apresenta a singularidade de ser um livro a quatro mãos, pelas fotos e pela escrita, apresentada em registos separados, e disso resultar uma estética da memória sofrida. Finalmente, a escolha do leque dos resistentes lembrados e entrevistados demonstra um invulgar critério selectivo em que se constata que, afinal, a luta contra o fascismo não foi toda do PCP, embora lhe tenha cabido a parte maior.
A opção na parte fotográfica de João Pina resulta em sugestivos registos da passagem do tempo, em que à impressividade fotogénica sob o medo e o terror dos carcereiros nas fotografias tiradas nos primeiros momentos das prisões pela PIDE (antes de os presos serem torturados), se somam as marcas dos tempos passados em que a velhice dos retratados desponta sobre o inexorável desgaste de mais de trinta anos acumulados de liberdade e uns tantos sonhos gastos (dois dos retratados/entrevistados já faleceram entretanto: Emídio Guerreiro e Sérgio Vilarigues).
Os depoimentos têm um registo sintético-biográfico que nos dão uma dimensão bem real do que foram, em iniquidade e continuidade, o salazarismo e o marcelismo. Como costume, os depoimentos de comunistas ainda alinhados no formato partidário vindo dos confins em que Cunhal o moldou, tornando-o num dos mais “moscovitas” entre os partidos irmãos, são os expectáveis – o mesmo apagamento individual, o mesmo enaltecimento colectivo da causa, a mesma reprodução em poupanças quanto a registos humanos variáveis em que “sombras” possam espreitar e prejudicar os mitos partidários. Mais interessantes, porque mais soltos, são os vários depoimentos de não comunistas ou que o foram e deixaram de ser, como se a amplitude humana ganhasse sem a canga da moldura do auto-estereótipo.
Particularmente interessante, além das sagas aventureiras fascinantes de Edmundo Pedro, Varela Gomes e (sobretudo) Emídio Guerreiro, é o depoimento de Nuno Teotónio Pereira, militante católico, na medida em que é um dos poucos casos em que assumiu publicamente não ter resistido à tortura da PIDE e ter denunciado, acarretando-lhes a prisão, os seus companheiros de conspiração. Este acto dorido de confissão de traição, com descrição dos martírios de consciência que isso acarretava e que prolongava infinitamente o próprio acto de tortura da polícia, é não só corajoso como derrama sobre a epopeia dos presos políticos um banho de humanidade credível. Assim, a excepção de Nuno Teotónio Pereira, quando sabemos que foram muitas as centenas de pessoas que, tendo lutado contra o Estado Novo, não suportaram a tortura física e psicológica aplicada pelos esbirros da PIDE, levanta a questão de quanta parcialidade e composição do retrato histórico do antifascismo é difundida através dos depoimentos oficializados e considerados correctos na absolutização da dicotomia de heróis para um lado (os resistentes) e diabos para outro (Salazar e pides). Como se fosse possível uma tal grandeza universal numa qualquer comunidade clandestina, género “fábrica de heróis”, para mais sujeita aos tratos brutais extremados aplicados por Salazar e Caetano aos seus oponentes para os excluir de qualquer ponta de dignidade humana. Quando se perceber que a revelação da extensão e profundidade do leque abundante dos que baquearam na PIDE, é sobretudo reveladora da perfídia maior da máquina repressiva do regime fascista, talvez os que “traíram” comecem a falar. Hoje, mais que julgá-los, o que está em causa é libertá-los do fardo do silêncio que amarfanha os seus sentimentos de culpa, enquanto a saga antifascista ganha em credibilidade, ao tornar-se humana.
(*) – “Por teu livre pensamento”, Rui Daniel Galiza (texto) e João Pina (fotografia), Edições “Assírio & Alvim”
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