A propósito do reboliço com a estatuária em Tallin (citando, em paralelo, a questão do museu de Santa Comba Dão), Rui Bebiano suscita uma interessante questão: em que medida os actos simbólicos de rejeição e apego aos marcos públicos de memória, são ajustes directos de contas com o passado vivido e rejeitado ou, antes, pretextos para imaginar, resolver ou agregar causas aproveitadas. E aventa a hipótese de, por paradoxo, o confronto retroactivo nem sequer significar um retrocesso saudosista, antes esgotando-se na ritualização de um descontentamento.
No essencial, concordo com Rui Bebiano. Mas considerando adicionalmente que não há, não pode haver, um corte absoluto entre a reprodução desejada e a recriação celebrada. Por muito forte que seja a sublimação substituinte. Haverá, pois, um traço de continuidade que funde as suas linhas paralelas (a celebrada e a desejada). Caso contrário, não se explicaria, no mínimo, como é que as crispações envolvem afirmações fanatizadas que não hesitam enveredar pela via da violência, saldando-se, em parte dos casos, em riscos assumidos e consumados de risco de vida, integridade física e privação da liberdade, para além dos riscos grossos de dissonância conflitual traçados no tecido gregário e com marcas que atravessam famílias, amizades, comunidades profissionais e espaços de convívio.
O caso da Estónia é especial e específico. De tal forma que julgo difícil que sirva de paralelo com muitos outros e especialmente com a saga grotesca de Santa Comba Dão, o que não impede que se aceite o desafio de Rui Bebiano enquanto escopo da sua tese. A Estónia é não só um pequeníssimo país (e próspero!) como, em termos relativos, foi submetido a uma “russificação soviética” de grande impacto e num medonho processo de “trocas” [no após-guerra, uns bons milhares de “estonianos maus”, acusados de colaboracionismo com os nazis, foram fuzilados ou remetidos para o Gulag, enquanto uns outros bons milhares de “russos bons” (tão “bons” que eram “soviéticos”) procederam a um povoamento ocupante da pequena e próspera Estónia]. E este “intercâmbio” teve ainda o significado, não despiciente, de se ter processado com troca de mosaicos étnicos bem vincados (nórdicos para o paredão e o campo de concentração, eslavos para a “substituição”). Implodido o império soviético, o mosaico estónio-russo daquele pequeno país ficou feito vidro perante a mais pequena martelada. Os ocupantes de ontem, mas mantendo peso significativo, passaram a minoria exposta ao ressentimento (para mais, a maioria dos russos vivendo na Estónia, mantiveram-se como cidadãos russos e não adquiriram a nacionalidade estoniana). Os acontecimentos à volta do monumento-memorial dedicado aos soldados soviéticos caídos no combate contra os nazis, agora removido, foram o clímax das tensões acumuladas e não resolvidas e demonstram que cada uma das comunidades está longe de baixar os braços na disputa e no confronto em torno do papel dos “russos estonianos” no futuro do país. Pela parte nacionalista estoniana, obviamente que se deseja que, com a “despedida do monumento”, a maior parte dos russos se vá embora. Quanto ao lado dos “russos estonianos” (sublinhe-se que, nas manifestações destes, dão-lhes colorido as muitas velhas bandeiras da URSS), não há vontade alguma de trocarem a prosperidade estoniana, com a maioria instalada em posições de privilégios adquiridos à sombra do mando vindos do tempo da nomenklatura soviética, pela miséria russa dos tempos actuais.
E o que faz, no meio dos veros conflitos, o conjunto de pedra monumental de homenagem ao combatente soviético contra o nazismo plantado em Tallin? Não será, seguindo o raciocínio de Rui Bebiano, um mero pretexto para outros duelos e ajustes de contas? No caso, para erupções de nacionalismo, chauvinismo e xenofobia, doenças políticas (modernas) de que o pobre combatente do Exército Vermelho, empenhado que estava, e apenas, em heroicamente dar a vida para expulsar a besta nazi. O problema é que esta isenção purificadora da estatuária soviética (ao fim e ao cabo, a lida pela parte russófila) é uma parte pequena, muito pequena, da multi-simbologia associada e associável àquelas pedras da discórdia. E com a agravante de, ali, os símbolos se negarem entre si. Se os soldados soviéticos libertaram as terras estonianas do nazismo, mais (!) que a vontade de grande parte dos estonianos o desejaria, não é menos verdade que o nazismo ocupou a Estónia (e restantes repúblicas bálticas) em substituição de uma anterior ocupação soviética acordada entre Hitler e Stalin (constava dos protocolos secretos anexos ao pacto de não agressão nazi-soviético de 1939). Ou seja, a “libertação soviética” da Estónia em 1944, publicamente enaltecida como memória publicamente exposta, feitas as contas, não foi mais que a reposição da repartição imperial acordada em 1939 por dois aliados que, depois, se zangaram e guerrearam. E, neste sentido, o soldado soviético empedrado é, antes do mais, a figuração do soldado ocupante que ali se instalou em domínio em 1939, por vontade de Stalin e com o beneplácito de Hitler. Numa continuidade ocupante apenas interrompida entre 1941-1944 e só terminada em 1991. Para nós outros, encharcados que estamos do efeito dos módulos do antifascismo e da libertação do nazismo pelos soviéticos, a simbologia acumulada do memorial da discórdia em Tallin pode parecer demasiado retorcida para o considerarmos apropriável pelas novas gerações estonianas, inclinando-nos, antes, para aproveitamentos e extrapolações de novas e desvairadas paixões oportunistas. Mas, aposto que, para um qualquer estoniano (excepto para os que comeram à mesa do “aparelho do partido”), a continuidade histórica é bem simples de estabelecer. Pior, de aceitar.
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[Adenda: A não deixar de ler o post complementar colocado pelo Rui Bebiano.]
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