A Internet permite isto: passadas poucas horas da emissão do meu post sobre a ocupação da Censura em 26 de Abril de 1974, recebi, por mail, um depoimento de um “militar de Abril” (um jovem Alferes Miliciano) que participou no mesmo evento (numa fase posterior àquela em que intervim). Permito-me transcrevê-lo (o autor identificou-se mas decidi omitir o seu nome) atendendo à impressividade do depoimento e o valor precioso que têm os olhares (todos os olhares) de memória dos que, em maior ou menor destaque, fizeram de um golpe uma Revolução.
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No dia 26 de Abril, também eu, me encontrei nas instalações da Comissão de Censura, suponho que na rua das Gáveas, no Bairro Alto. E estava lá porque era o "comandante" (veja-se qual o "poder" dum Alferes do Exército Português nos dias desse Abril) da pequena força de "preservação" destacada para essas instalações; e digo de "preservação" porque a de "ocupação" deveria ser a tal comandada pelo "seu" capitão "novito".
O que mais me impressionou nesse dia não foi o estado dessas instalações, às quais voltarei mais tarde, nem o sentimento de vingança para com os ditos "coronéis do lápis azul" e as suas "culturais e pedagógicas tropelias"; o que realmente me impressionou foi as pessoas na rua da Misericórdia, embrulhadas em bandeiras nacionais e celebrando, como agora se diria em "arruadas", das formas mais diversas, o ímpar evento; foram as mulheres do Bairro Alto que, noite fora, foram carregando bolos, cafés, sandes, etc. para os seus soldados aí estacionados. Foi ver o ar de quantos estavam no Quartel do Carmo, face aos militares que, como eu, lá iam levar em segurança e, para segurança os que as pessoas apupavam de "pides"; e, não eram poucos os denunciados mas, suponho, poucos os que realmente lhe estavam ligados.
Mas na sede da Comissão de Censura, quando cheguei com o meu pelotão, reinava o caos. As casas de banho tinham sido alvo da descarga, em sentido real, da ira dos revoltados que lá tiveram acesso; o seu estado de higiene não é comentável. Quanto ao resto, casacos de trabalho pendurados e arrumados, sapatos apartados a um canto porque os donos tinham fugido, lápis e páginas de imprensa, algumas já coloridas de azul, livros e revistas que não tinham sido "analisadas" enchiam, ainda, as mesas e as escrivaninhas (daquelas que tinham uma porta em madeira ondulada de correr). E, pela noite fora, os "telex" (suponho que da marca Victor) teclavam sem cessar, criando uma melodia atordoante, sobretudo agora, que os "dedicados censores" não estavam presentes para os analisar e que, portanto, martelavam inutilmente o silêncio reinante. Descendo pelo meio do corrimão da escada, lá estava esticada a corda, onde, presumo, eram pendurados os escritos para censura prévia. Quem sabe se as suas, como diz, "escrevinhadelas" não foram por ali também puxadas para que alguém as "corrigisse".
Pode parecer caricato, mas há 33 anos era assim.
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Imagem: Parte de um relatório censório (copiado daqui)
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