Quarta-feira, 25 de Abril de 2007


Estava de vigília nessa noite. Não porque sonhasse que o regime ia dar o berro ou sequer abanar mas porque a Catarina, então com três anos e porque de tão afeiçoada aos micróbios volta e meia emprestava-lhes a garganta como abrigo, teimava em não deixar que a febre baixasse. Ainda o sol não tinha rasgado pela manhã, um meu vizinho e amigo desatou aos murros à minha porta e, muito pálido e cheio de tremuras, deu-me as novas e ligámos o rádio. “Estamos lixados, o Kaulza saltou!”, concluímos rápido. Mas qualquer coisa nos comunicados dos militares não condizia com o susto. Os comunicados e as canções.
Tudo voltou a piorar nas expectativas com o aparecimento sinistro da figura patibular do Spínola na televisão e como comandante da coisa. Ao Kaulza não o conhecia, só sabia que era um ultra. Ao general do monóculo tinha-o aturado como comandante na Guiné e sabia bem demais da sua catadura militarista prussiana a puxar para o nazistóide. “Estamos fritos, e a mim só me faltava apanhar com o Spínola outra vez”, foi a análise política mais completa que consegui fazer.
Como andava metido nas coisas do cinema, cineclubismo e crítica de cinema, telefonaram-me para ir urgentemente ajudar a ocupar a sede da Censura em São Pedro de Alcântara. Foi a minha primeira tarefa revolucionária. Fui, com gosto, para mais os tipos daquele covil apalaçado não falhavam semana em que não me cortassem ou retalhassem as minhas escrevinhadelas para o semanário em que colaborava. Escadas subidas de roldão, misturado com cineclubistas, realizadores, malta da câmara e do som, jornalistas, escritores, críticos, dou de frente com o comandante militar da ocupação, um capitão novito. O nosso cumprimento descambou de imediato num abraço forte. Ele havia sido, ainda tenente, meu instrutor militar em Mafra. Então, seis anos antes, tínhamos enturmado bem – ele ensinava-me as tretas marciais e eu pagava-lhe a minha militarização forçada com umas noções de marxismo e tentava explicar-lhe as lutas dos estudantes, mais as dos operários e dos camponeses. Ali, na sala solene onde na véspera se dirigia a Censura, agora deserta de censores, abraçado ao jovem capitão meu antigo aluno de rudimentos de marxismo explicado a militares, percebi que Spínola não era tudo. Até podia dar numa revolução. A acreditar no exemplo dos meus méritos pedagógico-doutrinários a que estava abraçado, dava de certeza, convenci-me a mim próprio, cheio de vaidades revolucionárias.
De Ty_Logic a 25 de Abril de 2007
Tinha 5 anos e sete meses...e as recordações da infância são aquelas que nunca mais esqueçemos. Lembro-me como hoje, mas mesmo como hoje, de a minha mãe ir buscar o livro "Portugal e o Futuro" desse tal senhor, que estava escondido na gaveta e colocá-lo na estante e dizer para o meu pai : "agora já pode ficar aqui" e lembro-me, com seis anos, que desenhava soldados, espingardas e agricultores na minha 1ª classe porque a professora dizia que tínhamos que desenhar isso. E lembro-me algum tempo depois disso de a minha mãe dizer que as coisa não eram bem como ela julgava. E lembro-me de a minha mãe me dizer para ser uma pessoa boa e decente. E esta é a idéia que tenho dessa altura, que embora tivesse cinco anos vivi. E foi isso exclusivamente que me ficou, se dissesse o contrário estava a mentir, e desde essa altura a esta parte a nível de mentiras considero-me catedrático...não é licenciado na Independente, é mesmo catedrático.
Obrigado pelo depoimento. Visto à distância, é deveras interessante como as então crianças fixaram os acontecimentos. E ainda bem que é um anti-mentiras catedrático.
Grande João,
Talvez hoje mais do que nunca seja o dia indicado para te agradecer por este e tantos outros textos que aqui tens publicado.
São memórias preciosas de quem acredita e luta por uma sociedade mais justa, mais equilibrada. É um testemunho de quem tem consciência que o Portugal que vamos construindo é um país que vamos deixar aos nossos filhos.
E os nossos filhos merecem o melhor.
Um grande abraço!
Obrigado Marco pela simpatia. Tu ainda só falas em bom futuro para os filhos, eu agora já me preocupo, sobretudo, com o dos netos pq o meu já é mais velho que os teus rebentos. É a vida, em três dimensões e em três gerações. Abraço forte de amizade.
De ana a 25 de Abril de 2007
Há quem mereça, sabemo-lo, ter vaidades revolucionárias.
E mereça, igualmente, um abraço amigo de quantos beneficiaram de tantos ignorados actos de coragem contra a opressão.
A vaidade aqui referida é mesmo uma "vaidade", uma vã vaidade. As condições objectivas que levaram os oficiais de média e baixa patente a virarem-se foi a guerra colonial e perceberem no corpo (com comissões acumuladas) que não se ganhava nem tinha fim a não ser a derrota (na Guiné, ela estava à vista). A doutrinação dos milicianos saídos da luta estudantil só deu o empurrão subjectivo. Não houvesse guerra colonial e ela não sendo como foi e bem podíamos, os ex-activistas estudantis, pregar o nosso latim que ele entrava-lhes por um ouvido e saía por uma orelha. Injustamente, muitas vezes esquece-se que é ao PAIGC, ao MPLA e à Frelimo, que devemos 95% do 25A. Por paradoxo, na década de 60 fomos para as colónias para arrasar os pretos e acabámos com um país libertado. Abraço.
o momento que lembro melhor desse dia foi a frae de um tio meu:"agora já posso morrer". pensei , porque diabo quererá o homem morrer? afinal parecia com melhor aspecto que nunca...:)
tinha 11 anos. foi a primeira vez que ouvi palavras como política, liberdade, direitos,fascismo, comunismo....mas ainda fui a tempo, acho.
beijinhos
tb querida Cristina. E eu a pensar que tinha nascido bem depois do 25A... (como a jovialidade nos engana!)
Um abraço
Abraço retribuído com juros, caro Luís.
De marcelo ribeiro a 27 de Abril de 2007
O 25 A verdadeiro foi um gozo!
valendo-me duma frase de um tio de uma correspondente aí em cima acho que terei pensado: agora já posso viver.
E estava com mau aspecto: noites em branco, claro...
De Anónimo a 28 de Abril de 2007
O meu depoimento é muito pobrezinho...
Há algo de que nunca me esqueci. Nesse dia, andava eu na 3ª classe, arranjaram-me, vestiram-me a bata e de pasta às costas, lá fiquei à porta do prédio à espera da carrinha da escola. De repente a minha mãe grita, vem para cima que hoje não há escola. Subi e percebi que algo se passava. A minha mãe, grávida do meu irmão e com a minha irmã de pouco mais de um ano nos braços, só dizia, ai meu Deus, algo aconteceu, porque a Grândola Vila Morena está a tocar. Não percebi nada daquela história de Grândola que tão bem conhecia, por ser a terra do meu avô. A minha mãe estava em pânico, porque o pai tinha ido trabalhar e a minha avó estava em casa dela. Senti medo, muito medo, por todo aquele reboliço, as vizinhas falavam em guerra. Dias depois, tudo voltava ao normal e na escola cantava-se "o ovo cozido, jamais será comido", lol.
RosaLatina
Quando leio depoimentos dos e das que eram crianças no 25 de Abril, é como ouvir histórias substitutas da minha filha que tinha então 3 anos e a única que ela contaria sobre esse dia, se localizasse o dia na sua memória, era que estava doente e cheia de febre. Obrigado pela partilha.
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