Se é natural que se defenda o direito dos cubanos, como qualquer outro povo, à democracia e ao respeito pelos direitos humanos, com o fim de uma ditadura que se aproxima do meio século de existência (se somarmos esta à anterior, a de Batista, teremos ideia de quantas gerações de cubanos viram negados os direitos “naturais” a nascerem, viverem e morrerem em democracia e em liberdade), são muitas as incertezas sobre a inevitável transição em Cuba, dependente como está dos caprichos fisiológicos da evolução do estado de saúde do velho ditador, a luta de poder entre os seus putativos sucessores e a capacidade do regime em se regenerar, abrindo-se à transição democrática, ou apodrecer num marxismo-leninismo crispado em estado de patologia política terminal.
Se o futuro de Cuba depende da forma como os “herdeiros da ditadura” (ou seja, os seus actuais beneficiários) se vão comportar perante a agonia do regime, mais ainda depende da capacidade da oposição cubana construir consensos e alternativas e conseguir instalar os pilares de novos modos de funcionamento cívico e de participação do povo cubano na construção soberana do seu futuro, em cima dos restos podres que sobrem da ditadura. Nas mãos de uns e de outros, está a possibilidade de haver uma desejada transição pacífica em que o voto livre seja quem mais ordena. Ou então, desgraçadamente, teremos o confronto violento e os ajustes de contas. Mas não é fácil (sabemo-lo nós, quando saímos da longa noite de Salazar e Marcelo), que os sofredores pela causa da democracia, da liberdade e do pluralismo, os que pagaram por isso com a prisão, a tortura, a exclusão, o ostracismo e o exílio, aos escapados do fuzilamento, sejam tão generosos que poupem do castigo vingativo os seus carrascos, os que fizeram carreira em cima da morte da liberdade e dos privilégios do poder único e absoluto (essa miríade de pequenos, médios e grandes tiranetes que pululam em qualquer ditadura).
Não há ditadura que permita ou prepare o seu fim (a “transição espanhola” foi a grande excepção e por particularíssimas e conhecidas razões). Muito menos, colabore com a sua substituição. Assim será com os “herdeiros de Fidel”. Que terão os seus émulos simétricos e assanhados entre grande parte (*) da comunidade anti-castrista mafiosa, corrupta e fascistóide de Miami (que estará mais interessada em “ajustes de contas” e “retrocessos sociais” que na transição democrática). Entre uns e outros, os radicais déspotas do regime e os “vingadores de Miami”, a solução da democratização pacífica está naqueles que, nas mais difíceis condições, vivendo o quotidiano repressivo cubano, temperados no quanto custa alcançar um grão de liberdade e civismo, sabendo da coragem necessária para imprimir e distribuir meia dúzia de folhas clandestinas a passarem de mão em mão para que não morra a ideia da liberdade e o valor da ideia de alternativa, capazes de uma pequena marcha pelas ruas de Havana perante o olhar indiferente ou assustado dos seus patrícios desabituados de outra intervenção que não seja encher a praça para ouvir e aplaudir os títeres do mando absoluto. Como sabemos, a “oposição interna cubana” é pequena, tem uma diminuta base popular, está dividida em inúmeros grupos e grupúsculos e é mais comum divergirem entre si que se afirmarem pela unificação de oposição ao regime (a infiltração da polícia política castrista muito bem tem trabalhado neste sentido). Mas esta natureza grupuscular e rivalista é própria de todas as incipiências na luta contra as ditaduras. Se assim não fosse, se a oposição interna adquirisse uma dimensão “perigosa” já teria sido decapitada e depositada nos cárceres (juntando-se às quase quatro centenas de presos políticos que lá se arrastam e definham por terem atingido o estatuto da “intervenção política perigosa”). Por pressão da comunidade democrática internacional (**), pelas condições de decomposição da ditadura, impõe-se que cresça e se estruture uma “oposição interna” (conservando as matrizes das suas infra-diferenças ideológicas e políticas) que se afirme como alternativa à ditadura em estado de putrefacção, apresentando-se ao povo cubano (a maioria esmagadora do qual nunca viveu sem ser em ditaduras) não só como alternativa ao regime, mas igualmente como pré-figuração da vida democrática e suas virtudes e, principalmente, como meio de solucionar os graves problemas económicos e sociais que amarram o povo cubano à indigência e à falta de horizontes quanto a uma mínima qualidade de vida.
Há dias, segundo a Agência EFE, um importante passo foi dado no sentido da coordenação na base de um “programa mínimo” entre os vários grupos internos da dissidência cubana e expresso no documento "Unidad por la Libertad". Neste documento, assinado, entre outros, por Vladimiro Roca, Oswaldo Payá, Martha Beatriz Roque, René Gomez Manzano, Elizardo Sánchez, Laura Pollán, Berta Soler, Miriam Leiva, Héctor Palacios e Oscar Espinoza, defende-se “el respeto de los derechos humanos, la democracia, la justicia social, la libertad y la soberanía del pueblo cubano; reclama la liberación inmediata e incondicional de los presos políticos y el respeto de la pluralidad y diversidad de posiciones”. Aqui está um pequeno passo que só se pode desejar que seja grande em termos de sucesso.
Enquanto aqui na Europa, a muitas milhas das Caraíbas, só lembradas quando folheamos os folhetos de oferta de férias em que abundam as propostas aliciantes para gozarmos sol e mar em Varadero, cansados tantas vezes da democracia, mais indignados com os seus entorses que cientes do seu valor, um punhado de cubanos teimosamente indignados por estarem plantados na Ilha onde Fidel construiu o seu trono e o seu altar, desejando-lhe como futuro que seja também o seu túmulo, lançam este grito que nos ecoa ressonâncias primitivas e serôdias (para nós, têm mais de trinta anos de verdete de velhice em cima): liberdade, democracia, pluralidade, direitos humanos e … libertação dos presos políticos. Vale a pena ouvi-los e ser solidários com eles? Pela parte que me toca, digo sim. Melhor, digo: "Cubanos Sí"
(**) O fim imediato do bloqueio norte-americano a Cuba seria a mais urgente e importante ajuda dos Estados Unidos à causa da democracia cubana. Muito mais que o dinheiro encaminhado para os ultras anti-castristas de Miami que, cristalizados na ideia de “revanche”, muito alimentam a utilização pelo regime cubano da crispação nacionalista como forma de conservar o apoio passivo do povo cubano por temor de uma nova “invasão da Baía dos Porcos”.
Imagem: Despedida numa partida de “balseros” (cubanos pobres que se lançam ao mar em jangadas improvisadas tentando alcançar Miami para fugirem da miséria cubana)
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