Adriano Correia de Oliveira, se vivo e continuando a cantar, teria agora feito 65 anos. Tendo-nos deixado cedo, apenas com 40 anos de idade, ficam os registos de memória e da sua voz única numa carreira marcante de um talento excepcional posto ao serviço assumido do canto e da esquerda militante. Por exemplo, a admiração por Manuel Alegre, o Manuel Alegre do grito contra o fascismo e da esperança socialista, o conhecimento difundido da sua poesia, é impensável sem a voz de Adriano. Essa voz que, junto com Zeca Afonso, mas por outra via melódica, regenerou o canto coimbrão, subvertendo-o de tal forma que fê-lo libertar-se do passadismo provinciano e bafiento do romantismo serôdio de estudantes fardados de frades que, libertos do celibato mas não da mesada, mostravam uma ansiedade incontrolada para cumprir a caça doutoral a míticas beirãs tricanas disponíveis para, via um ritual de namoro casamenteiro de “gata borralheira” (que a maior parte das vezes se ficava pelo simbólico), ascenderem socialmente. E o “salto” de Zeca e Adriano, a metamorfose do datado fado coimbrão, de que só lhe sobrou a sonoridade e o timbre romântico, foi absolutamente radical, levando-o, transfigurado, para o canto usado como uma arma militante e revolucionária, primeiro contra o fascismo, depois para cavalgar a utopia socialista (em Zeca, mais próximo do esquerdismo libertário pró-anarco-sindicalista; em Adriano, no caminho dos milagres do Partido). Num caso e noutro, distinguindo-os de tanta fancaria que lhes fez companhia fugaz, dois enormes e diferentes talentos que valem, como património musical, acima e além das encadernações das causas que serviram. Zeca, com o seu canto como obra de talento “total” em que permanentemente reinventou os sons e os poemas e pesquisou novos caminhos e incorporando vivências que têm dentro Portugal e Áfica (Moçambique). Adriano, remetendo-se a cantar, dando voz aos poetas, sobretudo Alegre, os transmuta com uma expressão melódica fabulosa e única e os torna indissociáveis da sua voz e canto. Quem conheceu, conhece e se dá ao tédio de querer conhecer Coimbra, amaldiçoada ao peso medievo de uma Universidade solene, provinciana e atávica, saberá dar o devido valor às excepcionalidades espantosas dos cantos de Zeca e Adriano, devendo usar como “cábula” imprescindível, para superar espantos, o conhecimento das crises académicas de 1962 e 1969, esses tremendos e fascinantes marcos de anacronismos revolucionários (a transformação de estudantes saloios amantes da praxe e da bebedeira em lutadores valentes e criativos contra o fascismo só pode ombrear com o paradoxo do 25 de Abril em que oficiais militares colonialistas se transformaram em oficiais antifascistas e depois em oficiais anticapitalistas, num caso e noutro a deverem muito, em dívidas das fantásticas metamorfoses, a Zeca e a Adriano).
Navegando por aí, encontrei dois interessantes depoimentos sobre Adriano Correia de Oliveira e a efeméride em curso. Um, é um post de M.C.R. que revela um conhecimento saudoso de um companheirismo fraterno que os uniu e caldeou nos tempos de Coimbra. E que aborda um aspecto tabu da carreira artística de Adriano, a do pós-25 de Abril, sobretudo a fase precedente do seu falecimento. Diz M.C.R.:
“Com o 25 de Abril, a carreira dele estava ao mesmo tempo traçada e destraçada. Num primeiro momento, o Adriano e a sua voz alentavam as forças políticas que ele abnegada e graciosamente servira. Depois...depois o Adriano começou a duvidar. Não da esquerda onde sempre esteve, mas daquela especial esquerda dogmática e contumaz que à força de excluir se foi excluindo da vida política e cultural do país. O Adriano foi lentamente perdendo a aura de herói e grande cantor popular para cair no poceirão dos esquecidos ou dos expulsos.”
(…)
“Convém dizer que corria contra o Adriano uma torpe insinuação de origem claramente política mas que se reflectia no aspecto profissional: que ele estava alcoolizado em último grau, que perdera a voz, que não cumpria os compromissos, etc...etc...”
Nunca tendo conhecido pessoalmente Adriano, confirmo que, na última fase do cantor, este se tornara uma espécie de “cantor maldito” nas suas (e minhas) fileiras partidárias. Era considerado um caso de “decadência pessoal”, um bêbado a esquecer (com a “vantagem” de que quanto menos cantasse Adriano menos se cantava Manuel Alegre, o “poeta traidor” que lhe estava agarrado à pele do canto).
José Sucena dá-nos outra versão (mais conforme com a hagiografia apropriadora e a técnica da calúnia disfarçada):
“Pôs a sua casa à disposição do Partido onde se fariam várias reuniões de camaradas clandestinos, alguns dos quais lá estiveram por curtos períodos escondidos da PIDE. De entre eles, um pelo menos, disso se esqueceu quando, já céptico, não prestou a ajuda de que o Adriano precisava.”
“Chegada a liberdade, cantou com o seu Partido, o Partido Comunista Português, em tudo o que era sítio, com condições e sem condições, em pavilhões e ao ar livre, em cidades, vilas e aldeias, para multidões ou para poucas pessoas em que sobressai, entre algumas outras, uma sessão da campanha eleitoral de 1976 numa aldeia do concelho de Viseu, em que cantou em cima de um carro de bois, ao ar livre e sem instalação sonora, para um reduzido número de pessoas que o receberam de forma hostil, mas que soube acalmar e criar as condições para que o cabeça de lista pudesse intervir.”
”Homem de partido, militante incansável e de uma disponibilidade total, forte de convicções, afável e recto, o Adriano voltou a passar por Águeda, num sábado de manhã, a caminho do Barreiro onde foi cantar numa iniciativa do Partido. No sábado seguinte, 16 de Outubro de 1982, partiu. Mas ficou connosco.”
Nesta outra versão de efeméride, repare-se como se silenciam todas as infâmias cometidas contra Adriano pela sua tribo partidária, dando-lhe uma auréola de militante exemplar segundo todos os cânones, relançando-se a lama, cobardemente, sobre um sujeito não nomeado e simplesmente aludido, segundo a arte da calúnia estalinista, como “um pelo menos, disso se esqueceu quando, já céptico, não prestou a ajuda de que o Adriano precisava”. O que demonstra que um “céptico” atirado ao vento que passa dá sempre jeito inestimável para limpar lama acumulada dentro de casa.
Infelizmente, Adriano já não vive, tendo partido muito cedo. Felizmente, Adriano canta. E cantará.
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