Segunda-feira, 26 de Março de 2007

O "LEGADO REVOLUCIONÁRIO" DE SALAZAR

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[Nogueira Pinto dizia ontem na televisão, procurando encontrar um “legado” de Salazar, que este, com as prolongadas guerras coloniais, havia contribuído para a unificação e estruturação dos povos coloniais através das suas experiências guerrilheiras. Pode acrescentar este: graças a Salazar, entrámos em democracia pela porta da revolução. É isso, o PREC deve-lhe muito.]

 

O principal significado do Dia do Estudante de 1962 e da crise académica que lhe sucedeu, esteve no rompimento declarado e irreversível de Salazar e do fascismo português com as elites. Daí para a frente, pese embora um número significativo de estudantes universitários ter preservado a sua carreira e extremar-se um punhado de aguerridos “nacionalistas”, Salazar e o regime nunca mais contaram com a Universidade como uma fábrica dócil de quadros. Pelo contrário, com fluxos e refluxos (os "picos altos" de mobilização e politização foram 1962 em Lisboa e 1969 em Coimbra, mas mesmo nos refluxos a contestação nunca desapareceu), a agitação estudantil manter-se-ia e iria até agudizar-se nos últimos anos do mando marcelista. Ou seja, a partir de 1962, mais que um fornecedor de quadros qualificados para uma sociedade incompatibilizada com as baias caducas do sistema sócio-económico, a Universidade passou a ser um importante centro de tirocínio de quadros politizados apostados na substituição radical do regime. Dito de outro modo, gerador de uma elite para o combate, mais ou menos empenhado, contra o regime e, ainda mais importante, uma elite alternativa para a regeneração democrática. Tanto assim foi que, na geração política que esteve activa após o 25 de Abril e agora está em banho de veterania ou em vias de reformar-se, encontramos grande parte dos “filhos das crises académicas de 1962 e seguintes” (*).    

 

A resposta de Salazar à crise estudantil de 62, não foi uma sapatada unida da base de apoio do regime. Antes, foi uma brutal reacção radical de Salazar e dos ultras à crise aberta na sua fábrica de elites. E, sintomaticamente, encontramos Marcello Caetano “no outro lado”, a ser humilhado e ultrapassado pela dinâmica da repressão cega. Este factor terá tido um contributo decisivo para impossibilitar, depois, uma “transição pacífica” do regime quando, Salazar afastado, Caetano voltou a ser condicionado pelos ultras que o manietaram na tentativa tímida de “abrir o regime” e, da parte da oposição, contar com poucas mãos estendidas (a “ala liberal” foi um mero amontoado de meia dúzia com 80% de corporativismo e 20% de espírito democrático, e Soares rapidamente entendeu que a CEUD não tinha espaço nem do lado do regime nem da radicalidade da oposição). Assim, de certa forma, ao ordenar a cega e brutal repressão aos estudantes mobilizados em 1962, Salazar impôs a Revolução que, por acaso de circunstâncias, ocorreu em Abril de 1974. E, neste aspecto, Salazar conseguiu que, por obra sua, liberdades, democracia e partidos, nunca sairiam do fascismo a que ele deu cunho pessoal e tornou irreformável. Ou ele ou a revolução, cumprindo-se-lhe o pensamento, o desejo e a herança.

 

A “crise de 1962” dotou igualmente a oposição ao regime de uma nova radicalidade, disponibilidade e nível social e cultural. Até ao momento, esta oposição, centrada no movimento operário e do proletariado agrícola, mais um conjunto desconjuntado de personalidades intelectuais com projecção urbana, vivia dos fluxos e refluxos da luta do PCP. Era, assim, um caso de polícia que a polícia controlava, posta esta à prova em alguns grandes sustos (final da 2ª Guerra Mundial e campanha de Delgado em 1958, quando se alargava a frente de repulsa pelo salazarismo). Mas com o início da guerra colonial, em 1961, o regime, ao cristalizar-se num fanatismo colonial, aceitando o desafio da guerra, não só endureceu e rigidificou-se, conglomerando-se como um corpo de ultras à volta de Salazar e transformando a guerra colonial num dogma, e empurrando qualquer veleidade dissonante para a radicalidade oposicionista. Em 1962, um mero Dia de Estudante (se lermos os seus objectivos programáticos, veremos como são brandos e incaracterísticos os seus pontos de não conciliação possível com o regime) é motivo para uma desastrada e impiedosa repressão no pior estilo caceteiro típico de hordas fascistas. E, como saldo final, daí para a frente, as universidades portuguesas não mais pararam de fornecer ao combate ao regime centenas de novos activistas jovens, radicais, letrados e com suporte social. O PCP agradeceu (entretanto, Cunhal, no exílio, tinha recomposto uma direcção monolítica e submissa, com disciplina e absoluta obediência ao líder), incorporando nas suas fileiras revolucionárias centenas de quadros estudantis treinados na luta contra a polícia nas universidades e indo resolvendo a custo um novo “problema partidário” (o do equilíbrio entre a sua tradição operária e um número cada vez maior de filiações e funcionários políticos vindos do meio estudantil, não fáceis, à partida, de formatar como bolcheviques com culto de deferência complexada para com a “classe operária”) (**). E quem não era, só tinha que ser “companheiro de jornada” do PCP, mais ou menos conscientes dessa condição. Só Maio de 68 em França, a invasão de Praga pelos tanques soviéticos e o cisma sino-soviético, iria levar a que as sucessivas vagas estudantis fossem centros de estágio político não só para o PCP como para os movimentos esquerdistas, sobretudo maoístas e trotsquistas. Entretanto, no centro da questão central do regime (a questão colonial), milhares de oficiais milicianos eram enviados para a guerra colonial comandar tropas e acabadinhos de serem politizados nas universidades. Foi demais. O antifascismo radical, melhor ou pior trabalhado na retórica marxista, dos oficiais milicianos rapidamente contaminou os oficiais profissionais de patente baixa e média e quebrou a inércia destes em manterem uma guerra prolongada, sem solução e sem justificação. E deu-se o “segundo milagre” do regime (o “primeiro” havia sido a transformação de estudantes burgueses destinados a serem a “nata da nação” em oposicionistas radicais): transformar oficiais colonialistas em oficiais antifascistas. Pum, revolução.

 

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(*) - Olhe-se para a actual faixa dos 50 aos 70 anos de idade dos que estão e estiveram nas esquerdas política e intelectual, contabilizando a revolucionária, a reformista, a académica, a literata, a artística e a jornalística, incluindo algumas fugas para o centro, desde a Revolução até hoje, e atente-se ao peso determinante das elites políticas saídas das fornadas de antigos activistas estudantis que lutaram contra o fascismo nas Academias no período 1962-1974. Ao fim e ao cabo, seguindo o pensamento de Nogueira Pinto, a democracia portuguesa foi também, através dos seus mais importantes actores constituintes e consolidantes, um "legado" de Salazar e Caetano. 

 

(**) Quanto à influência e organização das lutas estudantis pelo PCP (quase exclusiva até 68) é uma evidência. Muitos quadros estudantis destacados eram membros do PCP e muitos outros foram ali recrutados. Mas há uma tragédia, pouco e mal contada (e que merecia investigação), muito pouco abonatória para a segurança conspirativa da organização, associada a este facto: a infiltração genial da PIDE de Nuno Álvares Pereira no posto máximo do comando da organização dos estudantes comunistas em Lisboa e que levou (em 1964, 65) à prisão de todos os estudantes comunistas filiados que actuavam na legalidade, enquanto a PIDE, dando-lhe uma falsa identidade, colocou Nuno Álvares Pereira no Brasil. Ainda hoje persiste esta dúvida legítima: como foi possível a PIDE infiltrar no topo da organização estudantil comunista, como controleiro dos estudantes comunistas de Lisboa, um seu agente, passando todas as malhas do controlo conspiratório e, conseguindo vencer as clássicas barreiras da regra da "compartimentação", conhecendo os dados de todos os filiados no PCP e, com uma "limpeza", permitir à PIDE prender todos os estudantes comunistas filiados em Lisboa?

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[Um esclarecimento: Supõe o estimado M.C.R. que eu sou da sua geração de luta estudantil, a de 62. Na altura, eu ainda andava no secundário, pelo que acompanhei a “crise de 62” pelos ecos. De 63, já em refluxo, até 68, é que foi um permanente pegar fogo à peça. Portanto, o mais natural é que tenham havido bordoadas que acertaram nos costados de ambos. E nos "educaram" politicamente. Ele em Coimbra. Eu por Lisboa e Porto.]

Publicado por João Tunes às 19:22
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5 comentários:
De Anónimo a 28 de Março de 2007
Este estimado mcr sente-se honrado em ter partilhado algumas bordoadas no lombo. Mas não grato. É que as bordoadas doíam..
De todo o modo gostaria de lhe dizer que este texto seu, é excelente, pesem embora divergencias de pormenor que não alteram o essencial.
69 foi também um belo ano. posso dizê-lo porque estive em ambos.

creio que o Nuno Alvares Pereira não começou pide, traiu depois o que não é menos relevante. Mas já antes, e depois, o PC apanhou muita bordoada no sector estudantil graças á fraca qualidade de muitos dos seus controleiros...Por exemplo: Em 61/62 o sector estudantil de Coimbra foi arrazado.
um abraço
mcr
De João Tunes a 28 de Março de 2007
Sei dessa dúvida sobre se NAP era um agente infiltrado ou simplesmente traíu quando preso. Mas, ultimamente, têm sido publicados dados que apontam para a primeira hipótese (que adoptei). Isto porque NAP tinha dado nas vistas pelo seu zelo em fazer um levantamento exaustivo de todos os militantes em Lisboa e ter consigo um ficheiro desse tipo que levou a PIDE a prender de A a Z. Há também indicações que (absolutamente fora da sua competência partidária) tentou recolher a listagem de todos os militantes comunistas em Coimbra e não a obteve porque a isso se recusou o então controleiro de Coimbra (Valentim Alexandre). Uma e outras atitudes revelam um zelo típico do infiltrado, tanto mais que a regra que então cada um tinha mais que interiorizado era não "saber demais" paranão acumular matéria conhecida a ser posta à prova no caso de prisão. Mas, evidentemente, não tenho certezas. Por isso, referi que se impõe um trabalho sério de investigação a ser feito por profissionais (jornalista ou historiador). As consequências do "dossier NAP" foram de tal forma catastróficas (para a PIDE foi uma página de glória, por traição ou por infiltração) que mereciam um cabal conhecimento. Naturalmente, hoje, só o PCP não está interessado no aclaramento deste caso e por isso, apesar da miséria do sujeito, é quase absoluto o silêncio do PCP sobre NAP (tenha sido o que foi, é sempre uma clamorosa derrota e falhanço, em regras conspiratórias, do PCP). Abraço.
De Anónimo a 29 de Março de 2007
eu desconhecia o facto de ser o valentim o controleiro. Conheci-o muito bem, éramos até dass mesmas mesas no Mandarim. Ele veio de Lisboa, expulso em 62 e demorou-se bastante por coimbra. Não duvidava que fosse do partido só lhe desconhecia a função. Pode ser como V. diz e o NAP ter sido sempre um infiltrado, não seria o único e muito menos o primeiro. Eu nunca estive no pc (mas andei pela banda da FAP desde o início até 68/69) e portanto não poderia estar tão dentro dos segredos. De facto dizia-se depois que o NAP era um traidor mas a malta m-l achava que isso era quase co-natural aos "revisas". claro que na FAP também os houve, também quem desse com a lingua nos dentes enfim, o habitual. A clandestinidade política não era pera doce e a firmeza ideológica nem sempre dava para aguentar tudo. De facto eu pensava que entre 63 e 65 a grande figura do pc entre os estudantes de coimbra seria o Eurico Figueireso, outro expulso de Lisboa para Coimbra. Vamos lá a ver se o Pacheco Pereira adianta alguma coisa sobre estes anos no próximo volume da biografia política do Cunhal.
Um abraço

nota: eu ponho sempre como anónimo mas assinando porque não atino com a outra maneira de me identificar

mcr
De João Tunes a 29 de Março de 2007
Caro mcr, aconselho a leitura do capítulo 13 ("os estudantes na mira do Estado Novo") da autoria da historiadora Irene Flunser Pimentel incluído no livro "Vítimas de Salazar" coordenado por João Madeira e editado há pouco pela "a esfera dos livros" (se me permite esta preferência, dou mais apreço aos resultados das investigações de Irene Pimentel que do JPP). Como constato que o tratamento histórico sobre este tema é pouco conhecido, inclusivé por quem nele participou, irei fazer uma transcrição-resumo neste blogue. Abraço.

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