Quase nunca as narrativas da vida clandestina dos combatentes contra o fascismo e as suas peripécias são literariamente interessantes (o que não invalida a importância histórica dos testemunhos). Porque aos antigos clandestinos não se exigia que tivessem dotes narrativos e talentos na arte da escrita e estes demonstravam-se melhor a conspirar, disfarçar e contornar a repressão, como convinha, que como contadores de histórias. Também porque a cosmovisão comunista enformada no centralismo democrático empurrava os clandestinos para um atrofiamento do “eu”, para o recalque dos sentimentos e até da sua e alheias humanidades, empurrando o épico para a glorificação concentrada no “colectivo” e no “partido”, resultando, na maioria das vezes, numa seca, árida e estereotipada “linguagem de madeira” tão própria dos comunistas quando falam e quando se dispõem a escrever. Por todas estas razões, a maioria do memorialismo publicado sobre a saga antifascista é enfadonho, incaracterístico em termos de humanidade, pouco credível como retrato completo pois nota-se, em cada frase bem medida partidariamente, o constrangimento autocensório de se escrever conforme os cânones comunistas de continuar a servir a “causa” em que o militante nunca passa de mero instrumento circunstancial e seguindo a máxima “tudo pelo partido, nada que prejudique o partido”.
Assim, a autodesumanização comunista, pela sua assumida condição de militante que se apaga para que a única luz que brilhe seja a do Partido, nunca passando da ambição de ser uma modesta e insignificante molécula na colmeia do exaltante “corpo revolucionário”, a quem resta apenas o prazer de pertença emocional a uma superioridade moral de que a sua seita se arroga mais a “certeza científica” na vitória final, leva a que sejam poucos os comunistas que escrevem para o público e entre os que o fazem, por profissão ou por cumprimento de tarefa comunicacional, têm mais de enfadonhos, de repetitivos, mais ocultantes que reveladores, são pouco interessantes quanto ao conhecimento da “humanidade comunista”. E, deste desiderato, resulta que o mais interessante publicado sobre a vida e acção dos comunistas, enquanto pessoas e enquanto organização, seja produzido por quem nunca o foi ou deixou de o ser. Casos de a biografia mais interessante e completa (apesar dos inúmeros erros, omissões e confusões) sobre Cunhal estar a ser produzida por Pacheco Pereira e o melhor retrato da militância comunista dos anos 30 e 40 do século passado se encontrar no primeiro volume publicado das memórias de Edmundo Pedro. A que se poderiam juntar, sobre épocas posteriores, os depoimentos de Cândida Ventura e o livro biográfico sobre Flausino Torres. E pouco mais (as obras literárias de Cunhal, esse enorme talento castrado, são mais manuais indutores de boas práticas partidárias, tipo zdanovismo lusitano sobre engenharia de almas, que boa e sincera literatura).
Raimundo Narciso, antigo clandestino, antigo chefe guerrilheiro e antigo dirigente do PCP (até à sua expulsão), nosso companheiro da blogosfera, amigo discreto que muito estimo e admiro, iniciou uma série de relatos sobre a sua experiência de clandestino e as peripécias das suas passagem a “salto” das fronteiras. A sua qualidade de escrita e a distância proporcionada pela sabedoria da idade e pelo avivar crítico, numa espécie de rehumanização comunista, tornam a sua série “Passar a Fronteira a Salto” como uma leitura absolutamente recomendável para quem queira saber mais sobre a vida dos clandestinos na fase terminal do Estado Novo.
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