Concluo a série de posts (*) motivados pelo centenário da instalação da CUF no Barreiro e ao mito persistente sobre a figura de Alfredo da Silva, com um depoimento de cunho pessoal.
Fui criado e educado no Barreiro, razão pela qual me considero filho adoptivo daquela terra, a que me ligam fortes laços afectivos. Foi ali que me treinei para ser homem, lá adquiri o mais persistente na minha maneira de ser e estar no mundo. Tendo ido para o Barreiro em criança e já depois do desaparecimento de Alfredo da Silva, cresci perante o paradoxo daquela concentração fabril que gerou uma comunidade operária predominantemente adversa ao salazarismo, antifascista e reivindicativa, onde o “avante” clandestino circulava massiva e pontualmente, vigiada e reprimida sob a forma de ocupação militar (atribuída à GNR), enquanto havia uma deferência de culto intocável para com o patrão entre os patrões, Alfredo da Silva, e que se projectou para os seus descendentes (os Mellos), como se repartissem o altar da maior consideração com Lenine, Estaline e Cunhal.
Naturalmente, o mito de Alfredo da Silva (e dos Mellos) resultou da conjugação de vários factores – o “autoritarismo paternalista” praticado por Alfredo da Silva e continuado pelos Mellos e que os eximiam ao efeito do odioso da exploração; o empenhamento com que o patronato cuidava e difundia a sua imagem; o operariado do Barreiro, correspondente a um “boom” de industrialização nos anos 30 e 40 do século passado, ser de recente origem camponesa e transportarem com eles, culturalmente, o atavismo reverencial para com os poderosos e os notáveis. Todos estes elementos fundindo-se num quadro social de baixa qualidade de vida, baixos salários, baixa qualificação profissional, falta de emprego (em que um emprego “na CUF” era assumido como uma “sorte de vida” a merecer penhor de gratidão, particularmente tendo em conta as “regalias complementares”).
Tirando um sector comercial e de serviços, os empregos na actividade ferroviária e na indústria corticeira, as gentes do Barreiro viviam essencialmente da CUF e dos seus empregos (que chegou a ter 10.000 trabalhadores). O Barreiro era, sobretudo, então, uma “vila CUF”. Até o ambiente e o ar que se respirava tinham a “marca CUF”, pois numa época de total desresponsabilização para com a saúde pública, os abundantes e permanentes fumos ácidos das fábricas da CUF, formando um “smog” altamente corrosivo para os pulmões, eram uma componente importante do ar que se respirava. Na minha família, dominavam os empregados da CUF e eu próprio fui mandado estudar para uma escola (com o nome de Alfredo da Silva!) subsidiada pela CUF e destinada a criar operários e empregados especializados para trabalharem na CUF (como a família achou que seria bom eu vir a ter um emprego num laboratório da CUF, mandaram-me tirar o Curso Industrial de Química na Escola Alfredo da Silva, curso que conclui com aproveitamento, embora por aí não me tenha quedado e nunca tenha vindo a trabalhar na CUF). A empresa tinha também um forte grupo desportivo, generosamente financiado pela empresa, destinado a enquadrar clubisticamente os seus milhares de empregados de forma a que, mesmo no lazer, a “camisola CUF” não fosse despida (era o Grupo Desportivo da CUF que participou vários anos na 1ª divisão do futebol e cujo estádio se chama de Alfredo da Silva). Apesar de generosamente financiado pelo patronato, o “Grupo CUF” nunca conquistou a maioria da população e, provavelmente, terá sido o principal fiasco na estratégia da “paz social”. Os barreirenses, incluindo a maioria dos empregados da CUF, mantiveram-se fiéis ao clube histórico da vila (o Barreirense), o que não lhes evitou que, como contrapartida da cedência de parte do terreno, tivessem de torcer pelo seu clube do coração (caso meu e seguindo tradição de família) num estádio com o nome de D. Manuel de Mello (genro de Alfredo da Silva e seu continuador à frente da CUF), pelo que da reverência relativamente ao Patrão não havia que escapar.
No quadro do Estado Novo, evidentemente, a desmontagem do “mito Alfredo da Silva, dos Mellos e da CUF” era empresa impossível. Haviam mecanismos suficientemente brutais para jugular qualquer tentativa de contraditório. O que é espantoso, hoje, passados trinta anos de regime democrático, a maioria das fábricas obsoletas e enterradas, com um Barreiro agigantado como dormitório, um outro Barreiro radicalmente diferente do velho Barreiro fabril e “cufista”, com uma Câmara Municipal de maioria comunista, é a persistência dos velhos mitos reverenciais que são particularmente salientes em ano de centenário da instalação da CUF no Barreiro. Fico-me por consolidar a convicção que tenho sina de, tanto tempo passado diante dos meus olhos, parte das minhas raízes se declarar em irredutível greve de imobilidade.
Imagem: Navio mercante “Alfredo da Silva” que pertenceu à frota da SG (Sociedade Geral), a empresa de transportes marítimos do grupo CUF, essencialmente vocacionada para as rotas coloniais (durante a guerra colonial, serviu ainda para o transporte de militares).
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