Por este post, recebi um comentário de um amigo em que aludia um livro produzido por uma equipa académica coordenada por Miguel Figueira de Faria (*) e que constitui a obra mais completa de análise da obra do industrial Alfredo da Silva (em que avulta a CUF que, no Barreiro, chegou a constituir o maior pólo industrial da Península Ibérica e a empregar 10.000 trabalhadores). Diga-se, também, que é muito escassa a produção de base histórica e analítica sobre os grandes conglomerados empresariais no período do Estado Novo e, assim, ser recorrente resultar em meros clichés as referências à forma como Salazar construiu e geriu o edifício económico e financeiro que sustentou a superestrutura do fascismo português. Referem-se o “capitalismo monopolista de estado” e as “grandes famílias” e pouco mais se adianta de substancial sobre as formas como os grandes grupos capitalistas se desenvolveram e se tornaram em pilares do regime e, nomeadamente, como a teimosia na guerra colonial se deveu em grande parte aos fortes interesses coloniais das grandes empresas associadas ao regime. Esta lacuna, responsável pela forma ligeira como o “fascismo económico” é realçado e concentrando-o miticamente nos dotes de gestão financeira de Salazar, é também da responsabilidade da nossa historiografia e dos nossos historiadores que, dedicados ao período do Estado Novo, se concentram nos fenómenos políticos e ideológicos do regime, como se eles existissem sem uma base de sustentação da longevidade do regime e da sua capacidade de superação das crises. E, neste sentido, a obra académica liderada por Miguel Figueira de Faria é uma notável excepção.
O livro tem lacunas e debilidades, algumas delas graves. Além de não ter escapado a um pendor panegírico derivado de um fascínio evidente pela figura de Alfredo da Silva e, nesse sentido, a contribuir para o prolongamento do mito a que aludi no meu post anterior. O facto de os capítulos terem sido escritos por “várias mãos” não lhe permite uma unidade de enfoque e, nitidamente, os académicos fugiram, quanto puderam, da evidência da ligação profunda de Alfredo da Silva a Salazar e vice-versa e da ligação entre os meios internos de controlo dos operários da CUF com a utilização dos mecanismos de vigilância e de repressão, nomeadamente a PIDE e a Legião Portuguesa (havendo, decerto, farta documentação ilustrativa nos arquivos de Salazar, da PIDE e da LP), bem como a abordagem de como os meios sindicais e do PCP se posicionaram perante a construção do império CUF e por ele foram combatidos e reprimidos . Assim, o autoritarismo paternalista de Alfredo da Silva, prosseguida pelos seus herdeiros (os Mellos), é uma imagem não só parcial como exageradamente simpática e até reverente. Uma ou outra nota identifica Alfredo da Silva como um autoritário determinado e brutal que não permitia a mínima contestação laboral, embora ressalte sobretudo a sua componente paternalista e assistencialista na criação de infraestruturas de fixação da massa laboral e o apoio à sua subsistência (bairro operário, dispensa, assistência médica, grupo desportivo e cultural, etc). Mas se Alfredo da Silva, até ao 28 de Maio, era não só uma das figuras mais odiadas pela sua violência repressiva, levando-o a sofrer vários atentados e agressões que forçaram o seu “exílio” entre 1921 e 1927, ele só regressou e se instalou quando o regime se estabilizou e foram criados, sendo postos ao serviço da sua “paz social”, os mecanismos repressivos que Salazar implementou para liquidar a divergência política e reprimir qualquer veleidade de autonomia operária. E que Alfredo da Silva, e depois os Mellos, sempre utilizaram como “pau” ao lado da “cenoura” do assistencialismo paternalista.
Mas, diga-se, o livro de Miguel Figueira de Faria, apesar das lacunas e do pendor panegírico, tem méritos e muito interesse. Pela evolução patrimonial de Alfredo da Silva e dos seus antecessores, compreende-se como foi construída a acumulação capitalista em Portugal na fase da industrialização tímida, pelo exemplo do seu maior caso de sucesso. Sobretudo, de que forma, uma burguesia incipiente vinda do comércio e do artesanato (a família iniciou a sua fortuna a fabricar e vender albardas e colchões na baixa pombalina), sempre com apoio decisivo de comerciantes, financeiros e agiotas estrangeiros vindos para Portugal á cata de fortuna (que marcam o pendor germanófilo de Alfredo da Silva, aspecto que o fez constar permanentemente da lista negra dos serviços secretos britânicos), se introduziu numa pequena indústria inviável, construindo um império industrial, comercial e bancário. Também significante que, construído o seu primeiro e incipiente pólo industrial em Alcântara, a entrada e o domínio no percursor do Banco Totta, se tornou fundamental para financiar a expansão empresarial e industrial (na indústria dos adubos, nos transportes marítimos, nos tabacos, nos têxteis, nos estaleiros navais), beneficiando, com Salazar, do proteccionismo industrial que arredava concorrências, na exploração de matérias-primas coloniais, obtendo favores financeiros, via Salazar, do Banco de Portugal e da Caixa, até o Totta conseguir a pujança da sua autonomia. Aliás, é na passagem à fusão entre o capital industrial e capital financeiro, que se vive a hora dramática e decisiva do empresário e do seu império, incapaz de controlar a crise do Totta e, sem o Totta, impossibilitado de prosseguir os seus empreendimentos penhorados, é Salazar que salva Alfredo da Silva e a CUF (quando o ditador ainda era ministro das finanças). Depois, é Alfredo da Silva que vai retribuindo os favores a Salazar e servindo de esteio ao regime – nomeadamente, como procurador à Câmara Corporativa, e cumprindo, a pedido de Salazar, o mais relevante dos serviços de Alfredo da Silva prestados ao fascismo português (o apoio financeiro, logístico e em mercadorias a Franco, nomeadamente quanto à estratégia militar ao colocar a sua frota marítima ao serviço do transporte dos “mouros” para liquidarem a república espanhola, também, internamente, sendo o suporte de Botelho Moniz nas emissões do Rádio Clube Português e na mobilização dos legionários “Viriatos”). Ou seja, Alfredo da Silva e a CUF não teriam sobrevivido sem Salazar, enquanto Salazar dificilmente sustentaria o seu regime sem o apoio amigo de Alfredo da Silva.
Tendo morrido em 1942, o império de Alfredo da Silva foi continuado e consolidado, sempre no mesmo rumo de casamento com o regime e na táctica das relações laborais do paternalismo autoritário, pela dinastia dos famosos Mellos (primeiro, pelo seu genro Manuel de Mello e, depois, pelos netos Jorge de Mello e José Manuel de Mello). O império CUF esboroou-se com o fim do seu ciclo tecnológico, a abolição do proteccionismo industrial e com a revolução. Uma indústria altamente poluente e envelhecida dificilmente sobreviria com a crise petrolífera de 1973 (embora Marcello Caetano tenha permitido a entrada dos Mellos no complexo petroquímico de Sines, juntamente com Bullosa, rompendo o monopólio da Sacor). A nacionalização salvou temporariamente a CUF (rebaptizada de Quimigal) e satélites, da agonia anunciada. A sua reprivatização, e o pagamento das indemnizações pelas nacionalizações, permitiram o reconstituir do “grupo Mello”, hoje gerido pelo neto de Alfredo da Silva, José Manuel de Mello, actualmente centrado no negócio da saúde, na gestão dos restos da Quimigal e da Lisnave, com capital entretanto enriquecido na curta existência do Banco Mello. O que não deixa de ser uma ironia sinalética da mudança na sociedade portuguesa que o que resta hoje de mais próspero e rentável do grande império empresarial do maior "capitão da indústria" seja a venda de serviços médicos privados que, ironia reforçada, utiliza a marca "Cuf" e foram construídos a partir de uma componente do "paternalismo" de Alfredo da Silva para com os trabalhadores das suas empresas (a assistência médica prestada pelo "Hospital da CUF").
(*) "Alfredo da Silva – biografia, 1871-1942”, Miguel Figueira de Faria, Bertrand Editora. O autor é docente da Universidade Autónoma de Lisboa. Colaboraram nos capítulos do livro
Imagem: Os três Mellos, continuadores do império de Alfredo da Silva desde 1942 aos nossos dias. Hoje, em plena actividade, sobretudo próspera no lucrativo negócio da saúde privada (que mantém a designação emblemática de “Cuf”), o herdeiro do meio – José Manuel de Mello (neto de Alfredo da Silva, filho de Manuel de Mello, irmão de Jorge de Mello).
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