Há pessoas que conhecemos e, depois, o seu olhar fica-nos agarrado á memória. Andamos por aí, circulamos sem lhe sentir o som dos passos e esse par de olhos parece que nos espreita quando sentimos a necessidade urgente de uma boa companhia que nos desaperte um laço incómodo à volta do pescoço. O mais certo, quando se trata de um tímido disfarçado, como eu me julgo, é alimentar-se a tendência para sustentar a distância fátua desse olhar e o pouparmos, para futuros gastos, da presença mais íntima que descomponha a âncora. Era-me assim com o António Manso Pinheiro (*). E sei-o, agora, quando leio que vão tentar cremar-lhe o olhar agarrado ao corpo por causa de uma traição do pâncreas.
Fui companheiro do António em ocasiões curtas e marcantes. Andámos por aí em lutas no mesmo rio durante a noite subterrânea, soube-o preso em Caxias e depois a ver a luz da liberdade entre os presos políticos libertados com o 25 de Abril. Passado pouco tempo, ele foi meu “chefe político” numa empresa especial – coordenar a campanha eleitoral do PCP no distrito de Lisboa para a Assembleia Constituinte, em 1975. Num pequeno gabinete, ao lado do Hospital Dona Estefânia, recebíamos os pedidos de oradores para sessões de esclarecimentos, tínhamos umas fichas com os nomes dos “camaradas e amigos” melhor falantes, e atendiam-se as necessidades compondo-se mesas com um “responsável político” e mais dois “intelectuais”. Os pedidos eram muitos, ainda se usavam e abusavam das “sessões de esclarecimento” e nem sempre a matéria-prima chegava para as encomendas. Quando assim era, avançávamos nós, os da coordenação da campanha. Foi uma campanha frenética, muito amadorística, e a decepção só viria na hora dos resultados eleitorais quando se percebeu que a maioria dos portugueses não queria o socialismo “científico”. Retenho: a nega monumental e sarcástica do Eduardo Prado Coelho, então militante do PCP e que constava das nossas fichas em papel, a mandar-me dar uma curva quanto a falar em colectividades de recreio sobre as bem aventuranças do marxismo-leninismo; de ter amparado o escritor Manuel da Fonseca que apareceu numa sessão mais bêbado que um cacho e recomendar-lhe para só ficar sentado; da Zita Seabra a segredar-me o seu currículo revolucionário e a chamar-me a atenção para não encurtar o número de anos que tinha estado na clandestinidade; de me chamarem a atenção para não dizer a ninguém que o Octávio Teixeira era do PCP pois ele estava então na administração do Banco de Portugal; aturar o Mário Castrim a fazer repetidamente a mesma rábula quando exibia o “avante” clandestino como o único jornal livre; da saraivada de pedrada que apanhei numa garagem na Lourinhã para correr-nos dali para fora. No balanço, o melhor foi o convívio e a amizade com o António, com um nervoso trepidante sempre abafado e um olhar límpido e terno, com uma segurança aflita e sumindo-se discretamente na sua fraternidade inata. Ficou desse tempo uma daquelas amizades sóbrias, as que mais perduram. Nunca mais colaborámos nos mesmos projectos. Íamos encontrando-nos por aí. Com o tempo apenas necessário para o abraço e para recarregar olhares de amigo. E só agora, confirmando que o “avante” e o PCP não lhe deram direito a notícia da sua baixa dos vivos, sei que, afinal, andámos, por linhas tortas, em outras decisões e lutas. Desta vez, sem fichas de papel, sem sessões para esclarecer os esclarecidos e sem a pretensão de querer que os cegos vejam o que não querem ver nem deixem de gozar a dançar à beira dos barrancos feitos de mentiras.
Por causa da traição do pâncreas, vão cremar o corpo do António. Não o olhar. Esse, na parte amiga e fraterna, tomo-o como herança. Sobretudo, agora, que o conheci melhor pela esplêndida evocação que acabei de ler, autêntica obra-prima de pensar de amigo, no Incursões.
(*) – António Manso Pinheiro era Editor da Editorial Estampa e Presidente da Assembleia Geral da APEL (Associação Portuguesa de Editores e Livreiros)
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