Um dos grandes paradoxos no movimento operário em Portugal é a história da atitude para com o patronato industrial. Se este soubesse dosear com habilidade o paternalismo com o autoritarismo, e normalmente fazia-o bem, o patrão teria a contrapartida do reconhecimento agradecido pelo emprego proporcionado e os pequenos e médios “ódios de classe” seriam cobrados à pirâmide das chefias sem chegar a chamuscar o culto pelo dono. O caso da CUF, do Barreiro e de Alfredo da Silva (na foto), será um excelente “case study” do mito patronal no meio operário. E oportuníssimo se tivermos em conta que este ano passam 100 anos sobre o arranque do maior parque industrial português e a maior concentração operária de todos os tempos na então vila do Barreiro, sob inspiração e direcção do maior industrial português, Alfredo da Silva.
A obra de Alfredo da Silva, o patrão entre todos os patrões portugueses, a maior de todas as excepções industrializantes concedidas por Salazar à sua visão de predomínio rural e agrícola, é não só glorificada como é objecto de enorme culto agradecido pela esmagadora maioria dos que trabalharam nas suas fábricas. Mais que explorador, ele foi e é recordado como um benfeitor. E, no entanto, Alfredo da Silva foi não só um homem ligado à extrema-direita (apoiou a ditadura de Sidónio e foi amigo de Salazar), como desenvolveu o seu império (industrial e financeiro) à medida do proteccionismo conferido pelo regime do Estado Novo no clássico figurino monopolista, instalou-se no Barreiro pelo seu privilegiado posicionamento na recepção de matérias-primas e exportações, foi base importante da exploração colonial, aproveitou-se das fomes alentejanas para captar mão-de-obra barata, as suas fábricas tinham dentro um posto da GNR, o Barreiro foi, até o 25 de Abril e a par da Marinha Grande, uma vila ocupada militarmente (pela GNR), muitos dos que trabalharam na CUF foram alvo apertado da vigilância da GNR e da PIDE e vários penaram anos nas cadeias políticas do fascismo, por falta de mínima preocupação ambiental, a poluição industrial (sobretudo pelos abundantes fumos ácidos) retirou anos de vida e saúde a todos os habitantes. Por outro lado, a militância comunista sempre foi alta entre os núcleos operários da CUF, ali se realizaram greves duramente reprimidas, o “Avante” clandestino era regularmente distribuído e lido e, ainda hoje, o Barreiro vota maioritariamente PCP (após um curto interregno em que a vitória foi dada ao PS). Nada disto obstando que Alfredo da Silva tenha, no Barreiro, nome em Avenida, dado nome a Escola Secundária, nome em Estádio de futebol, nome em navio da marinha mercante, museu e até Mausoléu (a lembrar os mausoléus de tipo estalinista, ficando incólume e como monumento quando arrasaram o cemitério onde estava colocado). Em todo o processo revolucionário, numa das terras de maior tradição e afirmação revolucionária, autêntica fortaleza comunista, nunca um dedo se levantou para questionar ou atrever-se a desmontar o culto por Alfredo da Silva por parte do povo vermelho do Barreiro. E, no centenário que agora passa, lá temos a Câmara Municipal, dirigida por um membro do CC do PCP, em conjunto com os herdeiros de Alfredo da Silva, a deitarem mãos à comemoração da efeméride da instalação da CUF (agora, Quimigal) no Barreiro. O que demonstra a tremenda força praticamente unanimista do mito reverencial para com Alfredo da Silva, o patrão benfeitor para os seus operários. E que ninguém se atreve beliscar. Como se de um santo padroeiro se tratasse.
Paradoxal e interessante como, ainda hoje, já com a maior parte das fábricas desmanteladas, para as pessoas do Barreiro, as figuras de saudade e admiração mais reverenciadas são, em idêntico nível de dedicação afectiva, Alfredo da Silva e Álvaro Cunhal, o maior monopolista e o principal lutador contra os monopólios. É também de paradoxos como este que se faz o desenho ideológico e mitómano do movimento operário.
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