Como sugestão de leitura de fim-de-semana, não resisto a propor-vos a desta narrativa, este olhar no espelho de alguém que veio limpo de alma, quietos os tiros e limpa a memória pela dignidade do olhar direito, depois de ter feito a guerra (o autor foi oficial miliciano “comando” na guerra de Portugal contra a Guiné-Bissau – 1963/1974):
“As cordas apertadas demais, os pulsos a inchar, amarrados atrás das costas. Tinha acabado de ser apanhado pelos tugas, ainda nem sabia como, e logo a ele é que deveria acontecer.
Como comandante do PAIGC, sempre fora muito rigoroso com os 10 homens que agora estavam sob o seu comando, sempre exigira que se deslocassem separados uns dos outros, que parassem de vez em quando, escutassem a mata, os olhos a varrerem devagar, da esquerda à direita e só depois avançar outra vez. E afinal, fora apanhado desprevenido, sem arma, sem nada.
Viera a semana passada dos lados de Sano no Senegal. Muito cansado. Estivera com os camaradas do sector, os dias pelas noites fora, analisaram o trabalho do mês, cada um apresentou o seu trabalho, as emboscadas que fizeram, as minas que plantaram, os ataques aos quartéis da tropa.
Fizeram um balanço da situação, leram as directivas do camarada secretário-geral, as orientações gerais para a luta, a referência expressa à luta dos povos da Guiné e Cabo Verde, para a independência nacional, para a libertação, nunca contra o povo português, juntos na mesma luta contra o colonialismo e o imperialismo, depois as orientações locais, o plano para o mês, não descansar a tropa, escrever papel para deixar junto aos quartéis deles, para desmoralizar, e a ordem para mudar, outra vez, o acampamento de Uália.
Enquanto regressava com os camaradas, ia pensando nos locais, escolhera o melhor, bem dentro da mata, umas centenas de metros a seguir à bolanha, um barraco junto a esta para vigiar a entrada.
Sacos de arroz, mancarra, tudo às costas, bicicletas, cunhetes de munições, armas, tanta coisa, casas às costas, tão pouca gente, precisaram mais que uma vez.
Tinha estado a cavar um abrigo, precisava de se lavar. Fora à bolanha para tomar banho e trazer água. Viu-se cercado por dois soldados de arma apontada, sem saber como, os tugas emboscados mesmo à porta das casas de mato, os garrafões na mão dele, que a tropa tinha deixado em Morés da última vez.
Tropa diferente esta, não era a que estava habituado a ver passar. Sem emblemas, sem anéis, sem fios que os outros tugas trazem sempre, ronco nenhum, só lenços camuflados ao pescoço, sem capacetes até, aquele tem barrete diferente, caras pintadas de preto, nunca vira tropa assim. Pára-quedistas, se calhar! Não, não deviam ser, esses são todos altos, têm camuflado muito verde, a bota que usam é de couro, conhecera-os bem quando assentara praça no colonialismo em Bissau.
A farda destes é castanha como a dos outros, uns muito altos, outros pequeninos, todos desiguais, não, estes são outros. Estranhos, quase não falam entre eles, o cano das armas deles também têm olhos, vêem por ele, para a esquerda, para a frente, para a direita, aquele está sempre a olhar para as árvores, tudo muito devagar, assim é mais difícil camaradas apanhá-los.
Abriram-me a boca à força, eu não sabia para quê, um lenço preto nos dentes, atado na nuca, outra vez que me levantasse, sem palavras nem maneiras, corda nos pés, uma à cintura presa ao soldado Papel (1).
Via-os à frente, no trilho para Uália, nosso pessoal descuidado a esta hora da manhã, sem aviso, vai ser uma desgraça, tanto trabalho para nada. Todos não estão, felizmente, mandara o pessoal para Mansabá, uns para montar mina e os outros para segurança.
Aquelas bajudas com os cestos à cabeça vão ser apanhadas, gritai, gritai com toda a força que puderdes, mais alto, mulheres do PAIGC, glória da nossa luta, assim, para camarada ouvir!
Os tugas todos a correr, o traidor Papel amarrado a mim, não deixa andar, se eu pudesse! Aquelas crianças ali também!
A enfermeira de Morés? A mulher do Pedro Ramos com a criança às costas?! Porque não fugiu? Não pode ser! Não, não lhe façam nada, ela trata do nosso pessoal da luta, faz curativos só, os tugas não me ouvem, lenço não deixa.
Não sei, não tenho nada para dizer, meu nome é Ana, sou enfermeira, não sei nada da guerra, trato de feridos só, não pode mexer nesse papel, é carta de meu marido, ouviu? Não pode tirar bilhete de meu marido, não pode! Tenho filhinha às costas, não vê?
É hora de ela mamar, largue-me!”
(1) Etnia da Guiné.
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