Com uma óbvia oportunidade, o livro recentemente editado sob o título de “Vítimas de Salazar” (*) representa uma súmula de vários aspectos da pesada face negra dos tempos sob a ditadura de Salazar. Obra de uma equipa de historiadores, nela perpassa o essencial de um passado culturalmente (não politicamente?) ainda presente em que, pela distância de uma incerta vivência democrática, não deixa de provocar espanto. Suponho que a admiração maior calhará às gerações pós-abril que terão dificuldade em imaginar-se viverem em tamanho sufoco repressivo. Mas mesmo para as gerações que viveram a ditadura, admito que esta revisita do salazarismo ainda perturbe como retorno de pesadelo.
E se a distância, normalmente um importante factor positivo e essencial para qualquer abordagem histórica, é propícia a uma apreciação mais fria, abrangente e documentada do passado histórico, não é menos verdade que ela é aproveitada pelos gestores do silêncio e do apagamento dos contrastes. Portanto, campo livre para o revisionismo e a recuperação saudosista. Com Salazar, foi isso que aconteceu. O que espreita e é aproveitado atrás dos recuperadores de Salazar, gerindo-lhe e alimentando o mito, é uma mescla de múltiplos vectores: sobreviventes desse tempo que não combateram Salazar (e a maioria dos que viveram o seu tempo não o combateu, por medo, por servilismo ou por benefício); os das mais jovens gerações que desiludidos com o rumo e resultados democráticos, são atreitos a uma projecção negativista radical do presente (fazendo-o para um futuro utópico de revolução libertadora ou pelo retrocesso passadista); os incrédulos, por ignorância, da face negra do salazarismo; os relativistas que se empenham em salientar o cotejo dos limites repressivos do salazarismo com outros fascismos da época.
Numa sucessão de abordagens conformes á metodologia histórica, documentalmente suportada, os autores deste livro revisitam o pesadelo do tempo vivido sob o mando absolutista de Salazar, desdobrado nas várias facetas em que o regime reprimia, controlava e definia os limites das vivências permitidas. Nas quais, só três vias eram consentidas: o colaboracionismo (em grande número, um “colaboracionismo miserável”, como o dos “bufos” e “informadores”); o conformismo (sobretudo o de “a minha política é o trabalho”); a resistência e oposição (para quem o regime usava uma mão pesada e brutal). Os vários capítulos deste livro tratam, sobretudo, deste último (e reduzido) grupo, afinal o sustentáculo das raízes de que saiu a democracia e que depois havia de incorporar activamente os colaboracionistas e os conformistas. Mais, é claro e felizmente, as gerações crescidas ou já nascidas em sociedade democrática (toda ela, uma negação total e absoluta da sociedade salazarista). A censura, a vigilância sobre as conversas telefónicas e o correio, a rede de “bufos” e informadores, a prisão política e a prática de torturas, os julgamentos por juízes-polícias com possibilidade de aprisionamento como “medida de segurança”, os saneamentos da função pública, a deportação e o exílio, os campos de concentração, o controlo político das Forças Armadas, as milícias fascistas, a repressão aos estudantes, a liquidação do protesto sindical, os assassinatos políticos, as fraudes eleitorais, são as faces negras do salazarismo, as vividas pelas suas vítimas, expostas neste livro e atiradas à cara dos saudosistas de Salazar. Impensáveis hoje mas essenciais então para a conservação de um regime hiper autoritário.
Um livro eminentemente útil num tempo em que, pela ignorância e pelo apagamento programado da memória, um punhado de maníacos saudosistas mobiliza, pelo telemóvel, votos televisivos para o ditador nefando como sendo um “grande português”.
(*) – “Vítimas de Salazar – Estado Novo e Violência Política”, João Madeira, Irene Pimentel, Luís Farinha e Fernando Rosas, Edições “A Esfera dos Livros”
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Adenda: Quase em coincidência, também Miguel Cardina faz apreciação deste livro oportuno.
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