Numa campanha, em que a “sociedade civil” preponderou sobre a intervenção partidária, é do maior interesse abordar o comportamento dos partidos perante este semi-interregno na partidocracia. Aliás, na maior parte dos casos, até pela experiência anterior dos efeitos desastrosos das manifestações sectárias e demasiadamente ideológicas numa questão de melindre perante os valores e as consciências, os partidos sabiam do efeito da crispação sobre a abstenção e o sentido do voto. E, assim, terão quase todos preferido ceder a ribalta aos “movimentos cívicos”, sobretudo liderados por médicos e juristas. Resguardando-se os partidos mais para pontuar posições que para encarnar os combates.
Não duvido que esta “inteligência partidária” beneficiou mais o SIM que o NÃO. Desde logo porque expôs o dogmatismo dúctil do NÃO, que já se havia manifestado em forma cavernícola na primeira entrada à bruta dos párocos irredentistas e excomungadores, a uma ginástica argumentativa e demasiado camaleónica ao longo da campanha, evidenciando a distância entre as convicções de base, que já tinham uma contradição com a lei existente e que agora convinha apresentar como aceitável e suficiente, com o liberalismo acrobático final da “penalização não incriminante” a disfarçar os aspectos condenatórios do integralismo absolutista pró-embrião.
O PS fez o que lhe competia – sereno, discreto, mobilizado e firme, gerindo com perícia a anulação da dissidência das duas deputadas penalistas. E Sócrates, brilhantemente, capitalizou um acrescido sentido de Estado. Talvez, com a melhor prestação política desde que governa.
O CDS fez o que podia numa causa que casava bem com a sua natureza ideológica de matriz católico-conservadora mas em que, numa causa vital para a Igreja apostada e mobilizada na vitória, a intervenção do CDS seria sempre pouco mais que uma redundância. Se não fez mais, isso tem mais a ver com a debilidade da sua capacidade de intervenção, para mais minada com invejas e disputas domésticas. E um líder eminentemente frágil e desarmado de hostes, em que a maioria destas já estava automaticamente mobilizada pelos párocos locais, estava condenado a ser irrelevante. E só não o foi totalmente porque, politicamente azarado, somou mais uma derrota no caminho de decadência do seu partido e a aproximar-se da inutilidade política.
O PSD demonstrou a sua natureza intrinsecamente heterogénea de semi-partido urbano e entroncado nas classes médias e letradas, mais o “partidão” das massas rurais e conservadoras, relapsas à mudança e à modernidade. Enquanto umas tantas figuras se demarcaram dos compromissos com a componente ancestral, Marques Mendes não se conteve e, da teórica neutralidade inicial, partiu para a aposta forte nas ginásticas camaleónicas finais dos partidários do NÃO. Pensando talvez que lhe competia também aqui fazer “oposição a Sócrates”, num tique partidário compulsivo e subserviente para com o contorcionismo de Marcelo Rebelo de Sousa, o PSD oficial acabou por contabilizar uma derrota eleitoral escusada.
O Bloco de Esquerda foi o mais surpreendente entre todos os partidos. Foi notável a inteligência política de Louçã, com uma não previsível capacidade de contenção disciplinada dos excessos próprios e típicos da intervenção política bloquista e sabendo amealhar, serenamente, os louros de ter sido um defensor e valorizador da consulta referendária. De tal forma o BE soube gerir a contenção da afirmação histérica que tanto apraz à gritaria bloquista que foram os do NÃO que ficaram com o grosso dos ónus do dogmatismo e dos excessos. Notável, verdadeiramente notável. Tanto mais que muito da vitória do SIM se deveu à serenidade bloquista, ajudando assim à redução do abstencionismo perante uma opção em que qualquer radicalismo pode ser fatal.
O PCP, o partido que mais se bateu contra a realização do referendo, não disfarçou a incomodidade desta campanha e que a fazia a contragosto. O grande desgosto do PCP para com o referendo entende-se bem e tanto que não conseguiu ser minimamente disfarçado. É que, no essencial, uma luta cara aos comunistas (a do aborto, com fundas raízes históricas no combate político e social deste partido) veio na pior das piores alturas, interrompendo o calendário de lutas sociais contra o governo (a CGTP foi obrigada a anunciar que as greves e manifestações recomeçam … em Março), para mais colocando do mesmo lado da barricada o PCP e o PS/Sócrates (o inimigo nº1). Como se dois males não chegassem, o PCP, provavelmente o mais partidocrata dos partidos, viu a cena do debate político a ser ocupado por “movimentos cívicos” e intelectuais a falarem sem consulta prévia aos controleiros, como se não tivesse bastado o susto desagradável da anterior eleição com a candidatura atípica e desencadernada de Manuel Alegre.
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