O meu amigo e camarada Luís Graça lançou um desafio aos ex-combatentes que andaram na Guiné aos tiros e à morteirada, os sobrevivos daquela guerra sem sentido, a fazermos um texto alusivo ao Dia Internacional da Mulher que amanhã se comemora.
Como não costumo baldar-me à parada, matutei um ror de coisas, olhando o teclado a ver se, entre a formatura das letras, me surgia inspiração ou ideia pífia mas sincera que fosse.
Pensei na viúva de Amílcar Cabral, lembrando-me o drama do assassinato a frio e à vista do companheiro e um dos maiores líderes africanos de todos os tempos. Que nos combateu e tanto nos esforçámos por combater. Não encontrei dados que me inspirassem. Nem sei se está morta, viva ou onde pára. Desisti.
Passei às comandantes e guerrilheiras do PAIGC, algumas insignes e heróicas. Não encontrei dados. Foi-se o motivo.
Julgava safar-me a pensar nas “nossas” bajudas, nas “nossas” lavadeiras, nas guineenses que vimos curvadas sobre a lavra e a safra enquanto acartavam os filhos nas dobras dos seus lenços. Fiz as contas ao horizonte médio de vida das e dos guineenses e restou-me a tristeza funda de prever que a maioria já não terá um centímetro de vida para receber homenagem que seja. Passei à frente.
Restaram-me as “nossas mesmo”, as portuguesas – as noivas, as esposas, as mães e as irmãs dos mancebos camuflados que fomos, a quem “trocámos” a companhia por uma G3, essa gaja volúvel e mais puta que a puta rainha das putas. E aí defendi-me da emoção, tanta que me levava, pela certa, à lamechice pimba. E disse-me: basta, não vou por aí.
E festa é festa, até no Dia da Mulher. Haja baile até, se para tanto aprouver. Siga a dança então e com o riso da paródia que é o melhor dos exorcismos. Numa boa paródia, não há memória em que diabo entre que até a ele não lhe apeteça dançar. E enquanto o diabo dança, antes lhe dê para dançar que para guerrear, as diabruras esmorecem e nós descansamos. Até na memória, dando-nos calma de repouso e mesmo preguiça de sesta. E não é disso que estamos precisados? A merecida sesta dos guerreiros?
Com inspiração falida, cansado de esperar inspiração vinda do teclado, fui ao baú dos textos blogo-publicados e desenterro este que julgo valer, pelo menos se festejado no gozo da antinomia:
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“Tropecei nas Senhoras do Movimento Nacional Feminino por duas vezes. Eram uma espécie das Tias de hoje (Lili Caneças lá não faltaria, estou convencido disso), normalmente casadas com dignatários do regime salazarista-marcelista. Ocupavam o tempo a acarinhar a rapaziada que ia para a guerra colonial ou já lá tinha batido com os costados.”
”Na primeira vez, estava eu perfilado e em sentido, comandando o meu pelotão, no Cais de Alcântara, a aguardar o embarque no Niassa que nos ia levar para a Guiné. Imaginem o estado de espírito. As famílias amontoavam-se nos varandins da Estação a acenar com lenços porque as despedidas estavam feitas. A tropa em formatura a gramar o discurso patrioteiro de um General qualquer. As lágrimas a caírem por dentro. Cada um a olhar de soslaio para os varandins, com uma tristeza infinita nos olhos ao ver a bruma dos lenços a acenarem sem se distinguirem os rostos. E uma raiva contra a sorte do destino a subir-nos até à garganta. A certo momento, avançam as senhoras do MNF, todas com aspecto de terem vindo directamente do cabeleireiro, sorrisos afivelados como os que fazem as meninas de um qualquer balcão de recepção, com saquinhos de pano a tiracolo para oferecerem a cada militar do Império um maço de cigarros de marca Aviz. Eu olhei o rosto da senhora que se postou na minha frente e senti uma navalhada da hipocrisia da situação em estar a ver aquela cara e não os rostos que eu queria ver mas não distinguia entre os lenços dos varandins. A senhora entende-me um maço Aviz e diz-me sorridente “parabéns senhor alferes, por ir defender a pátria”. Senti a raiva crescer-me. Mas tinha que estar perfilado e
”A segunda e última vez que contactei o MNF, foi no primeiro Natal passado na Guiné, em que a malta do Pelundo teve direito à visita da Presidenta da coisa, D. Cilinha Supico Pinto
”Com o passar dos anos, vêm-me os remorsos. Tantas ofensas a tão respeitáveis Senhoras. Sabendo todos que as suas pudicas partes anatómicas não foram feitas para armazenarem maços de tabaco ou discos, mesmo que sejam da marca Aviz ou transportem a voz da Amália. Espero bem que outras prestações gloriosas as tenham compensado dos insultos da tropa chateada. Ainda para mais, fomos, com o apoio delas e dos seus esposos, defender a pátria e o império. Felizes, fomos. Patriotas também. Como o caraças! Só que, às vezes, na tropa, as palavras resvalam para a ordinarice. Acontece. As minhas atrasadas desculpas, na parte que me toca.”
(O texto transcrito é uma singela Homenagem ao MNF – Movimento Nacional Feminino, organização criada sob a égide de Salazar, durante a guerra colonial, destinada a apoiar os militares e as suas famílias, para lhes levantar a moral e exacerbar o patriotismo, constituída sobretudo por “senhoras” de “boas famílias” com muitos tempos ociosos, na maioria esposas de dignatários do regime, dirigidas por Cecília Supico Pinto – esposa do Presidente da Câmara Corporativa e amigo pessoal de Salazar, Supico Pinto)
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