Segunda-feira, 4 de Maio de 2015

Nas cavernas da arqueologia social

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É de uma grandeza surpreendente o resultado da queda do comunismo, particularmente no que se refere à sede do império, a URSS. E são enormes as vagas de decepção, de orgulho ferido e de nostalgia que com o tempo, e a par do enorme alívio dos que conseguiam viver em comunismo e aspirar à liberdade, se juntam às cicatrizes daquela hecatombe política e sobretudo social. No fundo, a grande surpresa comunista foi que a queda do regime que construiu foi o facto mais tranquilo da sua prática, a qual assentou sobretudo nas violências da guerra e da prisão e que criou, além do hábito de viver na pobreza quando não na miséria, várias gerações de conformistas e de religiosos políticos. Acresce que o que se seguiu foi, na maior parte dos sítios, coisas feias de se verem - uma recriação capitalista assente sobretudo na pilhagem, e que a par de legião de deserdados e abandonados ficou nas mãos de políticos de carreira e de gangsters. Esta realidade violentíssima em termos sociais gera em termos humanos uma multiplicidade dramática que como fonte de conhecimento da decepção humana é inesgotável enquanto fonte de saber.

Svetlana Aleksievitch, uma conceituada escritora e jornalista bielorussa faz com "O Fim do Homem Soviético" ("Porto Editora"), livro com que ganhou em França o prémio para o melhor livro publicado em 2013, uma monumental recolha de depoimentos orais de vários ex-soviéticos (com vários posicionamentos sobre o fenómeno da queda do comunismo) que traçam um enorme fresco da grande decepção de uma multidão de cidadãos que habituados a viverem sob o medo, a pobreza e a norma, de repente viram-se no papel de excluídos e sem as âncoras construídas para sobreviverem e sem margem de aspiração a autonomia e liberdade.

Sendo pelas pessoas e para as pessoas que se faz a política e se constroem regimes, com ou sem revolução, o conhecimento dos sofrimentos dos homens e mulheres que viveram sob a opressão e a miséria do comunismo e depois foram castigados quando do seu fim (em vez da liberdade e da prosperidade que muitos imaginaram que sucederia ao fim do comunismo), o testemunho destas pessoas, as suas vozes de tristeza e sofrimento e por vezes nostalgia, é o melhor retrato que se pode fazer do regime deposto por evaporação. Ou seja, a demonstração de como os soviéticos (e os outros cidadãos dos países da órbita da URSS) pagaram com fome, prisão e tortura não só enquanto o comunismo foi a ordem interna nos seus países mas também nos tempos prolongados do pós-comunismo.

Publicado por João Tunes às 18:04
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