Como um mal nunca vem só, nesta efeméride desastrada dos cinquenta anos passados desde o assassinato de Humberto Delgado, a RTP 2 passou ontem à noite o "Operação Outono", filme de Bruno de Almeida de 2012. Dificilmente o cinema português, por eventuais maus caminhos que tome e mesmo que todos os despautérios nele desaguem, vai tornar a parir uma pepineira deste tamanho. É que é tudo entre o mau e o péssimo: fotografia, representação, guião. E até não faltam os pides apalhaçados e cheios de caretas para levar ao ridículo máximo este filme muito próxima da porcaria filmada. A coisa é tão ridícula que quando apareceu o Camané com boné de pide de fronteira no alto da cabeça e a fazer de pide idiota e pobre diabo temi que se seguisse uma cena com um pide a cantar um fado. Pobre Delgado que tão mal se lembram de te recordar.
A data é boa como pretexto mas do ponto de vista do rigor histórico e da apreciação de uma personagem política polifacetada, marcante e central da época da ditadura como foi o general Delgado, diremos que a publicação agora do livro de memórias de Iva Delgado, além de um nítido golpe de oportunismo editorial (o que se compreende e aceita) , é um péssimo serviço prestado à necessidade de entender o papel desta figura, cujos restos mortais repousam muito justamente no Panteão Nacional, e fornecer às gerações que nasceram e viveram em democracia os contornos rigorosos do que foi a ditadura e a sua funda natureza, valores e capacidade de praticar e institucionalizar o crime e a perfídia.
Não tenho dúvidas em classificar a edição deste livro - na boleia das comemorações dos cinquenta anos do assassinato de Delgado - como um dos piores serviços prestados à memória do "general sem medo". Isto sobretudo pela afectividade, mais que natural, que contamina a visão do personagem artificialmente biografado. Como é possível que Iva Delgado, para mais uma mulher com a sua formação académica, fale do seu pai na fase pré-candidatura e apague (só podendo ser um acto deliberado) o seu longo papel de fascista destacado e de membro proeminente do regime, tentando concentrar esse mesmo passado na fase em que conviveu e viveu em Inglaterra e no Canadá, apresentando dele uma trajectória de homem de bons e rectos sentimentos, um democrata convicto e estruturado em convicções democráticas pelo convívio com os hábitos políticos anglo-saxónicos? Além, naturalmente, de não aflorar as contradições e ambições frustadas (tal como Henrique Galvão) que explicam, melhor - também explicam, o acto de deserção do campo da ditadura.
Naturalmente que a benevolência e a cumplicidade de Iva Delgado para com o pai é a coisa mais natural deste mundo. E tem todo o direito a que esses sejam os seus sentimentos dominantes. Mas a comemoração dos cinquenta anos de um crime político abominável cometido sobre um homem a quem a ditadura impediu que assumisse as funções presidenciais para as quias o povo português o elegeu, exige, como preito maior a um homem que repousa no Panteão, que seja lembrado com rigor e verdade, toda a verdade. Pintá-lo de santo e de herói é parecido aos que, na altura em que Delgado anunciou a sua candidatura, o tentaram achincalhar chamando-lhe "general coca-cola" (mais tarde correriam a apoiá-lo quando se viu que era com ele que o povo estava).
O atraso da chegada aos nossos écrans deste documentário de Ken Loach só lhe realça a oportunidade. É que assim, com o atraso, "O Espírito de '45" constitui um bom e bem ensopado pano encharcado para atirar na cara do lacaio Passos Coelho e da sua corja de desmanteladores do Estado social. E demonstra que a fúria ideológica deste governantes de direita retardada vem requentada e é filha menor de uma senhora que fez estragos semelhantes há anos atrás no reino de sua majestade.
O estilo do documentário é sóbrio e clássico, pontuado por um maniqueísmo que não ultrapassa o bom espirito fabiano. E é verdade que nos avisa de muitas coisas cuja utilidade já se terá perdido no tempo. Ou seja, devia vir antes do fim da classe operária. Mas avisa de algo que devia termos em frente das nossas pautas: que nenhuma conquista (social, política, libertária) é ganha para todo o sempre e qualquer distracção ou acomodamento pode ser a morte do artista. Além disso, o filme tem pretextos para muitas e urgentes discussões à volta do estado a que chegámos e com lhes dar a volta. Agora com Seryza.
Com toda a franqueza não entendo como é possível que alguém interessado nos nossos tempos, nos seus ventos e marés, possa dispensar um salto ao Cinema Ideal para ver este "O Espírito de '45" do velho e lúcido Ken Louch.
Na minha vida de muitos anos em muitas lutas, com militâncias diversas e normalmente do lado radical, o cartaz foi sempre um elemento muito presente na mobilização e na denúncia. Perdi a conta à enorme quantidade de cartazes que me encheram os olhos na inspiração da luta. No entanto, só agora, perante este cartaz da Amnistia Internacional contra a mutilação genital feminina, me apercebi que nos cartazes como em tudo há o vulgar, o mau e o bom. E o melhor, este. Uma maravilha de criatividade.
Por aquilo que foi feito a Alan Turing (1912-1954), com uma das mais malvadas "recompensas" jamais feitas por um Estado a um seu iminente cientista, e apesar do recente acto simbólico de reabilitação e pedido de desculpa da rainha inglesa, ainda falta que o preito devido tenha a medida certa para a ingratidão criminosa com que o estado e a sociedade britânica pagarem uma parte da dívida para com ele, pelo menos pela sua ajuda à libertação do nazismo e a criação das bases tecnológicas para a criação dos hoje corriqueiros computadores, aquelas máquinas sem as quais não conseguimos conceber os dias de hoje. E não é com o filme de Morten Tyldum ("O jogo da imitação") que a justiça fica feita. Longe disso. De facto, o filme é ligeirinho na tentativa de criar tensões dramáticas com a pessoa, a pessoa de Turing, a ser uma amostra aguada e estereotipada. É isso, Turing merece mais e melhor.
"Condor", um livro de João Pina (com outros contributos), editado pela "tinta-da-china" e com apoio da Gulbenkian, é o que se pode chamar um luxo editorial e assim uma enorme excepção nos nossos hábitos editoriais cada vez mais depauperados. Ele é uma assombrosa viagem, sobretudo através da imagem (com fotografias de uma força e significância extraordinárias), à memória da sinistra e criminosa "organização Condor" que envolveu os serviços secretos de um conjunto de ditaduras latino-americanas (Chile, Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Brasil) no período 1975-1980, de cujas operações assassinas terá resultado a tortura e liquidação de 60.000 pessoas. Em alguns países, caso da Argentina, conseguiu-se o julgamento de alguns dos torcionários e algumas centenas dos carrascos cumprem actualmente longas penas de prisão. No final do livro, desfiados rostos e locais magnificamente fotografados por João Pina (cuja sensibilidade para o drama dos sobreviventes e os familiares das vítimas ele reconhece que muito deve ao facto de ser neto de dois presos políticos do salazarismo, com longo tempo de clandestinidade, tortura e clandestinidade), confesso que me senti prisioneiro de sentimentos profundamente contraditórios: não podendo deixar de me impressionar esteticamente com as fotografias, senti-me disso envergonhado por um tão admirável resultado estético ter sido atingido "por causa" de dores e crimes tão medonhos.
"Sono de Inverno" do realizador turco Nuri Bilge Ceylan, até por ter ganho Palma de Ouro em Cannes e explorando como explora o impacto paisagístico da Capadócia, para mais com filmagens feitas em pleno inverno, tanto que o filme mais parece patrocinado pelos serviços de turismo turco, tem bastantes ingredientes para ser um sucesso. Mas se Ceylan consegue muito bom cinema em momentos de abordagens de conflitos afectivos e nos pontos de interpenetração de tradições culturais e religiosas, é de uma simplificação indigente nas abordagens sociais (a cena da queima de dinheiro é de uma gratuitidade atroz) e absolutamente rebarbativo no seu arrastar em tempo De facto, três horas e meia (sem direito a qualquer intervalo) de narrativa permanentemente passada em décor de frio e nevão é um desafio para que o sono passe a pesadelo e despertando uma vontade imperiosa de nos libertarmos da pressão de especulação turística que nos empurra para uma qualquer excursão a Capadócia. Mas, quanto a mim, e depois de "Sono de Inverno", digo não muito obrigado.
Hoje é aniversário do início de uma guerra, a guerra de libertação dos povos sob domínio colonial português. Uma guerra que durou treze anos, com um elevado preço pago em vidas perdidas, estropiadas ou perturbadas pelos jovens portugueses da década de 60 e primeira metade de 70. E que culminou em fins inglórios e paradoxais: um exército que percebendo que estava a perder a guerra a virar-se contra os mandantes políticos e passar do papel de exército d...e ocupações coloniais a exército de libertação contra o fascismo e a guerra; a massa dos colonos, aqueles para quem a guerra era a defesa dos seus interesses, a meter os bens que podia em caixotes de madeira e a regressar à metrópole com tristeza, rancor e inglória, alimentando o ressentimento nacional com uma grande fornada de ódio.
Vivi a guerra colonial em duas modalidades; fazendo-a (na Guiné, 69 a 71) e lutando politicamente contra ela, mesmo quando estive nas frentes de combate. É das fases da minha vida de que menos gosto tenho em recordar. Mas que é impossível esquecer. Até porque as memórias da guerra, os seus ecos em forma de pesadelos, sobem-me à tona com uma frequência cada vez mais frequente e aguda. Provavelmente, a catarse da experiência da guerra constará de um dos meus projectos que levarei para o crematório.
Foto: Estou à esquerda, em acção de reconhecimento no rio Cumbijã no sul da Guiné-Bissau (entre Catió e Cacine), 1970, em plena "região libertada" pelo PAIGC.
Na comemoração dos 70 anos da libertação de Auschwitz talvez nada, não se saindo daqui, seja tão evocativo como assistir-se ao "O último dos injustos", um documentário (três horas e quarenta minutos) da autoria de Claude Lanzmann que já havia realizado a enorme obra "Shoah" (nove horas, que vi em dvd e que causa uma funda impressão, quase nos esmagando com a enormidade da maldade nazi e do sofrimento judaico). Na altura em que filmou "Shoah", 1975, Lanzmann efectuou esta entrevista com Benjamin Murmelstein (1905-1989) que foi o último decano dos judeus do célebre gueto de Theresienstadt, a 80 quilómetros de Praga, na ex-Checoslováquia, a que juntou recentemente imagens actuais das ruínas do gueto.
Murmelstein, um judeu austríaco (homem de imensa cultura, enorme carisma, antigo rabino e professor universitário), é, ainda hoje uma figura muito controversa sobretudo nas discussões sobre ele travadas entre judeus (a ponto de Murmelstein nunca ter pisado o chão de Israel) e estudiosos do holocausto. Porquè? Porque muitos o consideram um colaboracionista por se ter prestado a ser um chefe do gueto em estreita ligação com os carrascos do povo judeu. Enquanto ele se defende e justifica invocando que conseguiu, mantendo o gueto, evitar que muitos milhares de judeus se tivessem juntado nos crematórios nazis aos seus patrícios assassinados. E usa como argumento importante em seu abono que, quando do final da guerra, se apresentou às autoridades checoslovacas para ser julgado pelos seus eventuais crimes, tendo sido absolvido e libertado. E na polémica (apesar de haver muitos judeus que defenderam que ele devia ter sido enforcado) , julgo muito difícil que alguém tenha uma frieza simplificada para decidir em pró ou contra.
O grande interesse desta peça, que apesar de longa se vê muito bem e quase sem se dar pelo tempo a passar, é, mais do que ser pró ou contra Murmelstein, rever a odisseia da perseguição aos judeus pelos nazis através dos relatos e análises do próprio Murmelstein, uma figura de um fascínio e fulgor impressionantes. O que resulta no grande e interessante paradoxo desta notável obra: uma das melhores análises ao holocausto, particularmente a enorme farsa cruel de Theresienstadt (ou Terezin, em checo) , é feita por um homem odiado por judeus radicais e acusado por muitos deles como colaboracionista maior.
O filme passa no Cinema Ideal (junto ao Largo de Camões, Lisboa).
Sim, a culpa é do Tózé, o Tózé Seguro. Continuasse ele à frente do PS como bem tentou e hoje era um ver se te avias na varredela do PS para fora do cenário eleitoral alternativo à direita malvada que nos governa. E assim, podíamos sonhar, à esquerda, com uma espécie de Syriza/Podemos à portuguesa. Com Tózé no leme, o PS era "pasokado" em duas penadas. Assim, com Costa, o PS parece ter capacidade de resistir e prolongar a fixação na alternância do centrão, o que só garante o prolongamento do desfasamento da política portuguesa face às alternativas necessárias e que o Syriza abriu portas. Costa, de uma forma indolente, lá vai fazendo uma gestão sonolenta de alívio perante as responsabilidades do PS (e seus homólogos) na política austeritária e sem estancar as romarias diárias e estúpidas de personalidades socialistas até Évora para visitas ao preso 44. E Costa só é ajudado pela esquerda à esquerda do PS, pobrezinha, sem criatividade nem carisma, mais interessada em jogos de personalidades que em mobilizar vontades e esforços como acontece nas bandas da esquerda radical e com o PCP petrificado no seu oscilar errático entre o radicalismo antieuropeu (a saída do euro, a saída do euro, a saída do euro) e o conservadorismo pelos muitos milhares de postos de trabalho que alimenta no partido, em sindicatos e em autarquias. De qualquer forma, o certo é que numa Europa a virar costas ao bipartidarismo e a inventar alternativas, com a Grécia a virar páginas e a Espanha e a Irlanda a caminho de réplicas, aqui o que temos é Costa, o simpático mas indolente Costa, o que, eleitoralmente, pode levar ao pesadelo da re-vitória da direita ou um Costa em maioria relativa e a pescar em arranjos pífios. Syriza à portuguesa é que, quase certo, não. A única vantagem da bloqueada situação política portuguesa é que não é preciso procurar muito para encontrar o bode expiatório. Porque a culpa, toda a culpa, é do Tózé.
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