É um livro que mistura géneros - biografia, autobiografia, crónica de uma época, cheirinhos a novela e a jornalismo de investigação. Nele, Rosa Montero correu um tremendo risco: escolher Marie Curie, a enorme Marie Curie, como uma espécie de seu alter ego, percorrendo diversos paralelos entre acontecimentos da vida de Curie e dela, Rosa Montero, e do seu falecido marido Pablo. Diga-se que a "mistura" não resulta muito pela grandeza da Curie e porque do casal espanhol que caminha em paralelo no livro pouco relevo se dá (provavelmente, por pudor) aos seus trajectos. e também, é claro, pelas diferenças abissais em estatutos, feitos e efeitos das respectivas obras e cometimentos.
Mas, assim sendo - e tão evitável que era o caminho escolhido pela autora -, trata-se de um livro falhado? Não, longe disso. Trata-se de um livro importante, pelo menos enquanto contributo que muito acrescenta à causa feminista e conhecimento de uma sua figura de proa. De facto, Marie Curie, talvez a maior mulher da história da humanidade, dada a dimensão do seu mito e dos equívocos que envolveram os ecos da sua vida, foi como que petrificada e restando com a sua notoriedade intacta passou a uma espécie de nebulosa na memória da humanidade. Só uma giganta muitíssimo alta em força, pertinácia e coragem, poderia ter sido e conseguido o que foi e conseguiu Marie Curie, numa altura em que para uma mulher vencer numa sociedade e num meio científico profundamente machista como eram no final do século XIX e princípio do XX eram exigidas energias quase sobrehumanas. A somar a isto, para uma polaca vencer nos meios académico e científico na França, pátria maior do chauvinismo, exigia ainda uma outra energia adicional. Agora, Rosa Montero recorda e sublinha, como antes nunca foi feito com a pujança devida, o percurso sentimental e afectivo de Maria Curie. E este percurso, o aspecto mais interessante do livro de Montero, foi também um caminho cheio de agruras e a requerer uma enorme coragem e atrevimento. Tudo junto, e a componente que Montero ressaltou neste seu livro, demonstra a estatura enorme, gigantesca, de Marie Curie. E pelo denodo que Curie colocou em tudo, em todas as frentes e dimensões, fica claro que por muito que se procure na história das grandes mulheres e feministas na marcha da humanidade pela sua libertação, não se encontrará figura comparável. Quanto a Rosa Montero, o seu mérito maior, com este livro de leitura obrigatória para os que confiam na bondade brutal da humanidade, foi ter sublinhado a componente pessoal e afectiva de Curie, sobretudo na sua faceta sensual e de mulher apaixonada, em que ela se comportou apenas como uma apaixonada determinada como qualquer mulher disposta a seguir e consumar os seus ímpetos amorosos e sexuais, correndo os riscos, prazeres e dores inerentes. E, assim, ao ter humanizado Curie, Rosa Montero provavelmente diluiu o mito mas, de certeza, contribuíu para a despetrificação da mulher mais importante da história da humanidade, Marie Curie. Notável.
Os nossos hábitos dão nisto: não conseguimos romper com as nossas rotinas e estereótipos, não arriscamos na descoberta (apesar de ainda haver quem nos chame "povo de navegadores"), somos tristes conservadores de esquerda ou de direita petrificados como pedras de xadrez coladas no tabuleiro, por isso não só não inovamos nos projectos de mudança como rapidamente torcemos o nariz a quem o faz e onde se faz. Na véspera, no dia eleitoral e seguinte das eleições gregas, toda a malta era do Syriza. Dois dias passados e já há polegares em marcha de posição para se virarem para baixo. Ou porque não meteram mulheres como ministras, ou porque se aliaram a um partido de direita (iam-se aliar com quem? com o KKE? só se fosse nas pontas de espingardas...), também porque parecem o Allende e o Pinochet com aquela de darem o ministério da defesa aos aliados fachos, meio caminho andado para se repetir o golpe dos coronéis, ou, porque não, tarda nada vão andar de gravata. Pois é, estão verdes e não prestam. Quietinhos e a debitar as velhas justificações sectárias é que é bom.
Era bem escusada a paródia chunga da afirmação desmentida do ministro Pires de Lima e o tonto frenético do seu secretário de estado dos transportes sobre a aplicabilidade do acordo com os sindicatos dos trabalhadores da TAP. E digo que era escusada porque de há muito se sabia do fanatismo ideológico deste governo e assim esta prova infantilizada de diz mas não disse é uma simples e estúpida redundância. Há décadas que vários empresários tentaram fazer as primeiras aplicações da separação da aplicabilidade de direitos e regalias segundo as filiações sindicais. O objectivo sempre foi claro: premiar o sindicalismo mais amarelo de forma a desencadear no seio dos trabalhadores a corrida, por curteza de medida dos seus interesses, às formas mais incaracterísticas e corruptas de uma espécie de sindicalismo. As primeiras tentativas desses empresários candidatos a compradores de sindicalizações nunca triunfaram e assim o assunto parecia arrumado por força da jurisprudência produzida. Passados bastante anos sobre as tentativas dos empresários à promoção descarada do sindicalismo amarelo (radicalizando no mau sentido um sindicalismo leiloeiro dos direitos dos trabalhadores e que é a principal razão pela qual o PS nunca será ou dificilmente o será, um partido de esquerda), vem agora este governo guloso na fúria ideológica própria de neocons histéricos a tentar repor a marosca por membros de proa do governo. Um espectáculo triste, também pela triste figura da metida do rabo entre as pernas.
Vai acontecendo aquilo que muita gente se recusou a prever: a inevitabilidade da discussão aberta jamais vista sobre se existem limites (e a haver onde estão eles) à expressão da descrença sob as suas mais diversas formas: ironia, sarcasmo, blasfémia. Para alguns, é um desafio à experimentação do prazer do esmagar o dogma, surgindo como uma inauguração do alívio partilhado em grande escala do sufoco dos totalitarismos; para outros, como a escandalizada tríade Papa Francisco, Boaventura Sousa Santos e Ana Gomes, paladinos da sabedoria do medo, a apelarem à autocensura que evite o boomerang e a represália; ainda para alguns outros (demasiados), incomodados que novos alvos desfoquem os ódios sagrados (governos eleitos em democracia e capitalismo, americanos e judeus, à cabeça) a descobrirem conflitos e contradições para se desmarcarem da afirmação civilizacional que foi, está a ser, o repúdio e bater o pé ao terrorismo islamita e aos seus aliados pelo medo. Esta explosão, este pôr à prova convicções, valores e desejos profundos, agora a entrar na sua fase centrífuga, até porque a procissão ainda só começou, é o efeito mais directo, mais admirável e provavelmente nada desejado pelos assassinos, dos atentados em França. Vai haver muitas separações de águas, inevitavelmente. Com a vetusta divisão entre esquerda e direita nos velhos termos políticos a ameaçar ruína e a ser provavelmente substituída por outras distinções em termos de sentidos da dignidade humana, dignidade social, liberdades em todos os sentidos e áreas e ocupando a centralidade do debate político e impedindo que o debate social a menorize. Que se cuidem, pois, os estados-maiores e as vanguardas enfiadas nas suas fortalezas da velha política e velhas identificações de ódios. Provável é eu estar completamente enganado mas se não estiver então Maio de 68 terá sido apenas um começo de algo muito maior que só agora está a começar.
Hoje estarei com eles, juntos, em Paris. Antes assim, a gritarmos juntos pela liberdade que os deixarmos sós e a reunirem-se algures a trocarem impressões para imporem mais da mesma austeridade. E verdade seja dita que não me posso esquecer, desgostando embora de muitas das escolhas, que eles foram eleitos por povos, não se alcandonaram ao poder na ponta dos canos de kalashnikovs. Não faltará muito que o mais provável é que desça à rua para injuriar as suas despudoradas e desumanas políticas sociais. Mas hoje à tarde estarei com eles. Em Paris. A gritar teu nome, liberdade. E a mostrar aos assassinos da livre expressão, tragam na mão uma arma e no lugar da mente uma meia lua, um crucifixo, uma cruz gamada, uma foice e martelo ou qualquer outro emblema, que, esses sim,hoje e sempre, não passarão
1 - Inevitáveis as manifestações do vício da repulsa pela pretensa "demasiada unidade" a propósito das manifestações de repulsa pelos actos terroristas em Paris. Há patrícios que não aceitam o cheiro da companhia de manifestantes de outras cores políticas. Isto tem tanta idade quanto a da velhice do sectarismo. Vão lá estar Passos Coelho, Merkel, Rajoy e quejandos? Então "que passem bem mas sem a minha companhia". Não querem sujar a sua pureza política (mas aposto que não se importariam de marchar, até em ordem unida se necessário e de cravo na mão, com os solidários do gulag e do muro de Berlim) mas limitam-se a aplicar a receita da cegueira de pacotilha marxiana que não consegue distinguir os níveis diferentes de exigência e de intervenção. A liberdade, nomeadamente a liberdade de expressão, é, deve ser, transversal à sociedade de cidadãos livres que queremos fortalecer. Cidadãos que podem discordar, e muito, em aspectos políticos e sociais mas que, por causa disso, não se deixam cegar pelo ódio social em desfavor da amplitude das trincheiras em defesa da liberdade. Se Merkel, Rajoy, Cameron, hoje e amanhã gritam presente na luta pela liberdade eu estou hoje e amanhã com eles porque eles estão comigo. Nesta questão. Por sinal, a principal questão em política. Não perceber isto é mero refúgio do velho sofisma da hierarquia entre liberdade e igualdade. Que já provou à saciedade no que deu.
2 - Custa muito a entender que quanto mais discordarmos, odiarmos até, o conteúdo de uma forma de expressão, mais empenhadamente devemos defender a sua livre existência e o seu direito de expressão? Se não temos interiorizado este princípio elementar de convivência, talvez, afinal, só nos falte uma kalashnikov para andarmos por aí a disparar.
3 - Não tenhamos receio de chamar as coisas pelos seus nomes. A esquerda europeia, incluindo a esquerda que se tem manifestado contra os assassinos de Paris, tem culpas em dois aspectos preocupantes da realidade multicultural europeia. Primeiro, pela condescendência defensiva e acrítica perante as vagas migratórias, abdicando tantas vezes, em nome da permissividade igualitária, da exigência de comportamentos cívicos de aplicação universal (para os nascidos localmente e para os imigrantes). Muito derivado do aspecto anterior, há aqui nítidas responsabilidades (por laxismo e omissão) desta esquerda demissionista (muitas vezes obscurecendo responsabilidades com argumentos de ordem social, nomeadamente os ligados à exclusão) para que a extrema direita xenófoba, chauvinista e racista, se aproprie dos medos relativamente à agressividade das minorias marginais que amplia o medo ancestral ao diferente e aos outros. Os recentes crimes em França mostraram, de uma forma chocante, como se deixou chocar os ovos da serpente nos nossos sítios e a forma despudorada, mas inevitável, como a extrema-direita tenta contabilizar a seu favor (a favor da sua propaganda, para já) os picos dos novos medos. Por exemplo, é aceitável que gente que integrou a luta armada do EI regresse aos seus locais de origem? É aceitável que em algumas mesquitas se pregue o ódio religioso e a jihad? É aceitável que se desenvolvam círculos confessionais prosélitos do radicalismo agressivo? Tomar medidas preventivas do terrorismo não é, não tem de ser, uma manifestação islamófoba. Pelo contrário, pode e deve integrar uma exigência de cidadania que requer para ser aceite um padrão mínimo de comportamento cidadão, mantendo a liberdade religiosa como uma esfera diferente e intocável. Para muçulmanos, judeus, católicos, budistas, ateus, o que sejam. Neste aspecto, os europeus estão até especialmente preparados, por experiência histórica, para meter em prática uma política de tolerância exigente. Porque, nos trajectos europeus, soubemos evoluir dos tempos cavernosos das Cruzadas, da Inquisição e do fascismo clerical, para o laicismo e a convivência inter-religiosa. Não devemos recuar deste patamar civilizacional. Nem deixar de exigir aos que vêm viver connosco que cumpram este caderno de encargos de convívio ou então zarpem para outras paragens. E discursos de exegese às condicionantes sociais que pretensamente explicam a exclusão social é, no caso, poeira para os olhos (como a poeirada que uma eurodeputada socialista levantou ao absurdamente explicar os crimes de Paris com a política austeritária) para esconder as reais motivações de comportamentos que longe da revolta e do ressentimento social são expressões claras de patologias comportamentais desenvolvidas à sombra da permissividade das sociedades europeias. No dia em que a esquerda europeia seja capaz de assumir este discurso de exigência talvez seja o momento em que a extrema direita, o populismo xenófobo, comece a descer a curva da popularidade eleitoral.
4 - É discutível a decisão de excluir a FN da manifestação de amanhã em Paris. Eu preferiria que não tivesse havido precipitação e se levasse a FN a autoexcluir-se pois assim arranjaram um precioso alibi para não comparecerem. E não tenho dúvida que muitos eleitores na FN não são fascistas (embora possam fascizar-se no eventual processo de radicalização da sociedade francesa, o que deve ser evitado) pois sabe-se bem (com base em estudos académicos sérios) que uma parte importante do eleitorado da FN é oriunda dos meios operários e antes votava PCF, tendo migrado nas preferências eleitorais das motivações do ódio de classe para as do ódio aos imigrantes. A precipitação leva a estas coisas. Como também a FN hoje pode dizer que, apesar da onda de indignação contra a proposta da dirigente da FN de reintroduzir em França a pena de morte que afinal foi isso mesmo que a polícia francesa fez ao abater a tiro os terroristas jihadistas.
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