Nasci e cresci em ditadura. Tendo vivido e tornado adulto no Barreiro então sob regime de ocupação militar pela GNR, com a PIDE e outros rafeiros do regime desde muito cedo à perna, obrigado a participar numa odiosa guerra colonial, o meu asco fundo por uma ditadura que durou 48 anos (mais de 1/16 avos da história de Portugal) não me permite, ao contrário de tantos, descobrir coisas boazinhas, compensadoras e justificativas em Estados de partido único e de poderosa e omnipotente polícia política, perseguindo cidadãos pelo que pensam e desejam exprimir. E numa ditadura, qualquer ditadura, não há esquerda nem direita, apenas ditadura, ponto. E se abomino ditaduras, claro que só posso abominar uma ditadura que conseguiu, em longevidade, ultrapassar a ditadura portuguesa, a que sofri e combati. Portanto, sobre a ditadura cubana, estamos conversados.
Com a ditadura portuguesa, lutando contra ela, aprendi muitas coisas. Algumas delas que pareceram esquecidas na euforia libertadora após o 25A. Por exemplo, a forma paralela como a maioria dos portugueses conseguia viver na ditadura, com a ditadura. Na família, aprendi cedo a não ligar aos repetidos conselhos disparados e repetidos de todos os lados de "não te metas em política". Fora, primeiro nos estudos e depois no emprego, os mesmos conselhos e a mesma abstinência na larga maioria das pessoas. E verifiquei e sofri por isso que só uma pequeníssima parte da sociedade portuguesa se rebelava e arriscava perder o medo, dispondo-se a pagar um preço, fosse ele qual fosse. Não há glorificação antifascista, incluindo a que criou o mito do povo democrata e lutador, que esconda esta realidade: a ditadura portuguesa aguentou-se porque a larga maioria da sociedade portuguesa o permitiu, alheando-se do problema essencial do regime e, para isso, muitas vezes desculpando-se com o medo (quantas vezes a PIDE não foi agigantada a proporções irreais porque assim convinha para justificar renúncias e cobardias). A verdade é que a larga maioria do povo português não queria a ditadura mas não se dispunha a arriscar-se para que a ditadura terminasse. Tanto que a ditadura caiu não porque o povo se levantasse e a deitasse abaixo mas sim, e apenas, porque um escalão dos oficiais do exército (capitães e majores) já não aguentava tanta guerra colonial e com derrota à vista. Desta vivência tirei a lição que é possível um povo adaptar-se a uma ditadura e viver com ela, estabelecendo-se plataformas tácitas e compromissos com uma largura tal que impossibilite a reversão do regime. Daqui não me convence dizer-se que, em substância política, uma ditadura é saudável, legítima ou tolerável porque o povo a consente e não quer construir alternativas.
Sempre fui contra o embargo a Cuba. Porque o considerei uma medida estúpida e ineficaz, com a consequência maior de dar um alibi ao regime para desculpar-se das consequências do descalabro da sua política económica e social. Se a administração norte-americana o está a perceber agora, o único comentário que me merece é de que mais vale tarde que nunca. Quanto à ditadura cubana, propriamente dita, o meu asco mantem-se inalterável. Mas, obviamente, que caia a ditadura quando os cubanos o entenderem. Esse problema é deles, só deles. E sem o alibi do embargo, a responsabilização cidadã dos cubanos torna-se mais nítida e transparente. Ora bem.
Se há vantagem alguma no inquérito parlamentar ao estoiro do BES uma delas é conhecermos os rostos de alguns dos nossos banqueiros, os que são e foram donos disto tudo e a quem pagamos as asneiras e os rapinanços. Nos poucos momentos em que os vejo pela tv não ligo ao som e fico-me a olhar-lhes as fuças para lobrigar os meus detestados vigaristas, aqueles que para ajuda das suas orgias financeiras me sacaram bocados e mais bocados da minha reforma para a qual descontei em décadas de trabalho e levaram à pobreza e à indigência milhares de famílias portuguesas. Entre os visualizados, escolho este, a quem já esqueci o nome. Mas o nome também não interessa, porque a carantonha diz quase tudo. Ele disse que não se lembrava de quase nada do que assinou e aprovou no BES, incluindo quem lhe pôs um milhão de euros na mão. Pudera. Este olhar bovino numa cara de susto pela imensidão da estupidez percebida joga perfeitamente com amnésia e outras coisas mais. Só deve saber meter mãos em bolsos, o grandessíssimo banqueiro...
A preguiça intelectual e cívica que tem a importante vantagem emocional de proteger a inércia da tranquilidade das opções ideológicas tomadas (muitas vezes pelas mais generosas intenções) impede muitíssima gente de aplicar os mesmos critérios de análise perante os factos ocorridos em todos os lados das barricadas, evitando encarar sequer aqueles que causem desconforto. Neste aspecto, nenhuma outra corrente além do estalinismo foi capaz de aproveitar tão bem a importância política dos idiotas úteis. Por cá, os apoiantes da CDU-PCP dão-nos ricos e variados exemplos deste fenómeno (um dos mais interessantes para estudo em termos de politologia). Exceptuando a sua direcção, os seus empregados partidários, municipais e sindicais (os quais defendem, além do mais, o pão para as bocas que sustentam, o que lhes retira liberdade de pensamento e acção), e um ou outro paranóico político (também há) que gostaria de ter sido tchekista, estes cúmplices por interesses próprios quando não pessoais, o que acontece com a grande massa eleitoral e simpatizante da CDU-PCP, ou seja, os estalinistas cândidos e inocentes da nossa terra? Só pelo separar de águas entre o "nós" e o "eles", julgando com a máxima severidade o imperialismo capitalista e afins e com a máxima condescendência os pedaços sobreviventes da patologia leninista (relevando as conquistas sociais, como a saúde e a educação), consegue conciliar a valorização de um património de luta contra a opressão, em que se inscrevia inevitável e automaticamente a luta pelas liberdades e pela dignidade humana, com um silêncio cúmplice para com um passado de atrelamento a um império odioso e poderoso de que se cumpriam as tarefas geoestratégicas, a defesa de estados policiais assassinos e torturadores e a alimentação no presente de uma nostalgia pelo "querido muro de Berlim", isto enquanto se vota tranquilamente na representação eleitoral do estalinismo à portuguesa.
No último romance de Lobo Antunes ("Caminho como uma casa em chamas", Dom Quixote), o seu sempre igual olhar pessimista de lucidez que primeiro dói e depois nos envolve e aquece porque somos animais de carne quente mas, no caso, com o culminar da maturidade feita obra maior. E tal como aos velhos e aos camponeses, aos escritores maduros também se lhes topam as manhas desde que se saiba dar-lhes a volta ou perceber essas neles. Assim, Lobo Antunes, com a sua cena pessimista, já a poucos "enganará". Ele vai por aí, pelo descarnar das nossas misérias e descrenças, para nos chegar ao osso e ao nervo. E depois, sabichão é o tipo, sabe bem que não temos outro remédio que para sairmos daquele mau estado na fotografia do que voltarmos a nós, que se temos sombras (e temo-las, é claro) é porque não nos falta luz. E, no final (não do livro, mas de cada parágrafo, senão não sobrava fôlego), recompomos as coisas dizendo para nós (e para o escritor): «pois, dás-me um lado porque sabemos, nós e tu, que há outro, o que achas desnecessário mostrar».
Neste romance, obra de mais velho, Lobo Antunes repete o estilo da "escrita incompleta" pronta para ser feita a quatro mãos, ele e o leitor. E só assim se consegue lê-lo. Ou seja, ele como que come nas palavras (aparentemente, sim) para que nós, os leitores, possamos também completar-lhe o livro. Em resultado, ler Lobo Antunes dá trabalho mas premeia, e que bem, o esforço em o ler, levando-nos para dentro do acto literário. Ele não nos dá leituras grátis. Só lhe podemos agradecer por isso. A quem quiser leitura sossegada deixo-lhe uma dica de amigo: parece que o Miguelito (também conhecido como MST) pariu mais um livrito para vender como prendinha de natal.
Foi preciso tirarem o feriado do 1º de Dezembro para assistir a um gargarejar polifónico de patrioteirismo liderado por um deputado da extrema direita parlamentar. Ao coro quase só faltou a indignação tonitruante da finada Vera Lagoa que nessas datas descia a Avenida à frente do desfile da sua corja de saudosistas do 24 de Abril. De facto, temos espantosas facilidades em nos dividirmos por lanas caprinas ou nos comportarmos como numa aula de canto coral. Que tirarem a folga de um feriado foi uma malandrice, estamos de acordo. Pelo direito sagrado ao lazer, ponto. Agora quanto ao presumido heroísmo português associado à data, estamos conversados. O que o 1º de Dezembro de 1640 representou foi tão somente uma golpada oportunista em boleia forçada dada pelos catalães. Não tivesse havido coincidências de aspirações conspirativas (no caso, entre facções portuguesas e catalãs), tendo Castela concentrado as forças repressivas a dar na tola dos catalães em função de uma prioridade óbvia na escolha dos domínios prioritários e os Braganças podiam continuar a apanhar azeitona e cortiça em Vila Viçosa mas não tinham alçado o rabo para cima do trono.
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