Na altura mais desavergonhada da orgia neo-liberal que estoirou com o sistema financeiro onde os "Chicago boys" investiam a sua criatividade de parasitagem e agiotagem, os economistas pareciam moscas falantes que apareciam em bandos formando uma nuvem na hora das televisões. Pareciam sábios, todos aqueles senhores, normalmente bem vestidos e melhor engravatados. Eles postavam-se a abrir e fechar cortinas sobre o mundo, indicando onde cortar mais Estado porque menos Estado era a chave dos milagres da prosperidade. Ser economista era, então, o que estava a dar. De repente, com a crise, arrastando a falência de todas as previsões, receitas e sabichices, viu-se que a maioria dos sábios da economia não passava de papagaios vaidosos com pouca ciência e muita opinião. Rapidamente se formou a convicção, naturalmente exagerada, que sobre economia os últimos a recorrer para dar conselhos eram os economistas. Entretanto, a acção política, perdendo referências e substância ideológica, ficou sem carne, restando-lhe, expostos, os ossos e um ou outro nervo a palpitar por hábito. Escorraçados os economistas dos palcos e dos púlpitos, foi altura de os milhares, muitos milhares, de advogados saídos em catadupas das dezenas de antigas e novas faculdades de Direito, ocuparem os espaços públicos da política e do comentário televisivo. Deste render da guarda, desta substituição dos economistas pelos juristas, ganhou o dissecar do pormenor, os jogos florais da oratória, os rodriguinhos infindáveis do que sim mas talvez não a não ser que. No momentoso "Caso Sócrates" não só foram os juristas que ocuparam o cenáculo como transformaram, por osmose televisiva, cada cidadão num estagiário de advocacia. Num caso profano de funda corrupção, branqueamento de dinheiro e fraude fiscal, lesiva do Estado e assim do dinheiro dos impostos dos cidadãos, só novidade porque alguém foi e está a ser averiguado e pelo apurado irá responder, os cidadãos, súbitos advogados ad hoc, em vez de registarem que finalmente a justiça averigua e obriga a prestar contas alguma da ladroagem que nos andou e anda a roubar, perde-se em indignações laterais e bizantinas colocando, deixando os advogados colocar, os pormenores e atilhos de procedimentos e formalidades, com uma indignação tamanha que quase parece que torturaram o pobre do Sócrates, sodomizaram o homem e mantêm-no algemado no fundo de uma masmorra e desprovido de qualquer meio de legítima defesa. E se, antes, olhássemos com atenção para os nossos bolsos vazios e nos interrogássemos um pouco sobre onde andaram e andam os somatórios das notas que nos faltam para levarmos uma vida decente? E deixemos que, desde que não se atente contra o essencial (os direitos humanos e de cidadania) as formalidades tenham o papel que apenas devem ter e se atente a que parece que, finalmente, a prestação de contas toca a todos, ou, pelo menos, a quase todos. Ou seja, que pelo menos quanto ao combate contra a ladroagem, o mundo, não sendo perfeito, pula e avança.
Leio os elogios a rodos dirigidos à memória do Marquês da Fronteira. Excelente pessoa, amigo de tudo, de todos e até das artes. Enfim, um homem notável. Elogios vindos de toda a parte e até, ou sobretudo, de laicos e plebeus. Decerto todas as lágrimas de pêsames são sinceras e merecidas. Mas deixemos-nos de coisas, se o Marquês da Fronteira tivesse sido apenas o Senhor Mascarenhas, nem Conde, nem Duque, nem Marquês, o registo sobre este recente defunto seria tão rasgado e tão alargado? Não, claro que não, porque pelo que veio à tona o defunto fez coisas de pouca ou média monta para tornar este povo e este país com direito a mais futuro. O que, afinal, impressionou o bom povo português, o dos comentários e opiniões, sobretudo os de lágrima fácil, foi que o Senhor Mascarenhas não tivesse sido um sacana de um marquês. Assim se comprova que, para os bem nascidos, é fácil ganharem o reino dos céus.
Vi ontem o filme “A Praça” do ucraniano Sergei Loznitsa sobre a revolução na sua pátria entre o final de 2013 e o princípio deste ano (ou seja, cerca de cinco meses de movimentações permanentes, embora, naturalmente, com altos e baixos), enquadrado num conflito inter-nacionalismos (o russo e o ucraniano) que ainda está longe de terminar e desembocou na actual guerra delegada na região. No género, é uma experiência interessante e única. Sobretudo pela recusa do travelling e o comentário, mantendo semanas a fio várias câmaras em posição fixa em que os movimentos são os dos manifestantes (ou, por vezes, das forças repressivas), ao fim de algum tempo acabamos por nos sentir transportados da cadeira do cinema para o interior da Praça da Independência em Kiev, em frente da câmara, a partilharmos as tarefas do levantamento, com os seus fluxos e refluxos, vivendo o stress e a adrenalina do confronto entre revolução e reacção. Pode-se, politicamente, pedir mais a um filme?
Nota: Fui pela primeira vez ao renovadíssimo “Cinema Ideal” junto ao Largo do Camões, agora explorado pela Medeia. Impecável o resultado, o de uma sala (com plateia e balcão) adequada à projecção de cinema de qualidade. Oxalá faça escola pela programação.
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