O livro de Edmundo Pedro sobre a figura de Pavel (ontem apresentado publicamente em Lisboa), editado pela Parsifal, suscitou-me, quando da sua leitura, uma série de sentimentos contraditórios.
Por um lado, avulta a grandeza da figura de Pavel a par do efeito de tremendo absurdo do seu desconhecimento por parte da grande maioria dos portugueses, atingindo o patamar do absurdo trágico-maquiavélico na medida em que o desconhecimento de Pavel é consequência de uma estratégia de premeditado silenciamento por parte da máquina partidária mais eficiente e mais experiente a silenciar factos e figuras históricas (o PCP), constituindo uma das heranças vivas do estalino-cunhalismo. E, nesse sentido, o livro de Edmundo Pedro tem um valor de rectificação e justiça histórica para o qual não há encómios poupáveis.
Entretanto, e à medida que se avança na leitura do livro, as suas fragilidades sobem á tona. Afinal, Edmundo Pedro só conheceu Pavel na juventude de ambos, ou seja, antes do ostracismo de Pavel consumado pelo Komintern e pelos seus rivais no PCP e em duas fugazes visitas que o antigo dirigente do PCP fez ao nosso país (mas já em fase de auto-silenciamento) após 1974 e já tendo entrado este na sua velhice. Infelizmente, no que falta a Edmundo Pedro de conhecimento directo dos factos escondidos no “mistério de Pavel” (aquilo que revela já J P Pereira havia, grosso modo, escrito na sua biografia de Cunhal), sobra em sentimentalismos e em recurso a exageros e espraiamentos quer em polémicas mal conseguidas e um pouco indecentes (como a inútil contestação, com alguns remoques ofensivos à mistura, a Ludgero Pinto Basto, já falecido) como ainda em exageros em insinuações de subjectividade evidente sobre o papel de Cunhal na ostracização de Pavel. Felizmente, o livro termina com um belíssimo texto da filha de Pavel (Zinia Rodriguez) que nos dá os contornos da obra intelectual e artística de Pavel na sua segunda identidade criada e desenvolvida no México. Isto embora, infelizmente, Pavel, na sua vida mexicana, não tenha partilhado com a família a reflexão sobre a sua trajectória política (excepto, talvez, o seu choque e desgosto perante a revelação dos crimes do estalinismo no XX Congresso do PCUS), pelo que o texto de Zinia inserido neste livro é centrado na figura do intelectual Rodriguez (o segundo Pavel) e nada adiante sobre o apagamento, por comunistas, de um comunista eminente e heróico.
Fechado o livro, a sensação dominante que fica é a da contradição viva inicialmente referida. A satisfação perante um acto de justiça histórica e pela oportunidade bem conseguida do labor editorial da Parsifal. E a contrariedade impaciente por o labor de uma escrita dedicada a Pavel não ter sido cometida, suportando-se naturalmente também da memória e das dicas de Edmundo Pedro mas investigando muito para além daí, a um historiador capaz de lidar, equilibradamente e distanciadamente, com os factos em apreço. Resumindo: com este livro, Pavel deu “um sinal de vida” saindo do túmulo do esquecimento em que o quiseram sepultar mas falta ainda a façanha de o recuperar, na sua grandiosa dimensão, para a história do combate político em Portugal e no mundo durante o século XX.
Lendo as indignações com ironia escaldante à mistura sobre um caso passional entre uma senhora do PS e um tipo neo-nazi, repugnante como todos os da sua laia, que serviu de crónica promocional ao lançamento de um pasquim que dificilmente conseguirá melhor que os dos melhores tempos da "Voz de Povo", não posso deixar de me lembrar do magnífico romance de Ana Cristina Silva, o injustamente pouco (face ao que merecia) celebrado "Cartas Vermelhas". É que meter avaliações políticas e até partidárias em casos de afectos e de paixões amorosas, é lance de elevadíssimo risco pois os sacanas dos corações gostam de se abster das opções ideológicas, preferindo outras sem que se saiba quais. Notou-se que muitas alfinetadas que serviram a onda promocional do "Observador" tinham a ver com o facto da senhora, a traidora no caso, ser do PS e portanto acartava-se areia para a camioneta do repúdio por uma outra traição associada e maior (a do PS, ele mesmo). Não tenho dúvidas que foi este poder de associação que sintonizou (servindo a promoção do pasquim) J M Fernandes e a multidão de indignados. Por isto mesmo, talvez fizesse bem, acrescentando-lhes tino, munirem-se de um aparelho de medida apropriado, caso exista, para compararem este caso com o que uniu Carolina Loff (dirigente do PCP e funcionária do Komintern) e um agente da PIDE. É que além da útil comparação, talvez ajudando a moderar ódios de justicialismo partidário e imediatista, lendo a Ana Cristina Silva ganham um prazer literário que ultrapassa, de longe, o prazer menor dos paparazzis úteis.
Não partilho o sentimento de espanto e sensação de ridículo manifestado por alguns com a hipótese dada pelas sondagens de Marinho e Pinto ser eleito no domingo. Com esta entrada do populismo nas opções eleitorais consumado, além do mais, num deputado eleito que é intrinsecamente estapafúrdio, tonitruante e imprevisível, digamos que ainda vamos com alguma sorte. Não acho Marinho e Pinto pior (no sentido do disparate, da demagogia e da capacidade em saltar pocinhas) que Fernando Nobre e tantos outros mais que já tomaram assento nos parlamentos votados. E de um público votante que consome sobretudo o CM e os jornais desportivos e polue as ondas sonoras com os foruns indigentes da TSF e etc, acho que, com Marinho e Pinto, a procissão do populismo só vai dar, se der, uma voltinha ao adro. Uma voltinha que, convenhamos e face ao fortalecimento sem freio da extrema-direita europeia em quase tudo quanto é sítio, é um consolo de alívio. Pequenino, mas é.
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