A parte mais penosa da exposição do deserto de ideias nos discursos políticos oficiais que encadernam a maquete da representação multipartidária está aí, nos debates televisivos a dois. Logo que desbobinadas as primeiras conversas a dois, de formas absolutamente previsíveis, as mentiras, os recursos demagógicos, as fantasias, as teclas a martelar, os apelos aos medos e à inevitabilidade, como se de uma enxurrada discursiva incluída num catálogo se tratasse, saíram das mangas dos fatos dos truques e esgotaram num ápice as imaginações dos líderes partidários. Julgo que os eleitores ficaram fartos, saturados até de tanta mediocridade, de saberem que a escolha do dia 5, por acordo tácito entre todos os partidos do arco parlamentar, será entre aceitar passivamente a penúria de uma não solução ou a substituição da realidade pelo refúgio numa fantasia mal amanhada e realíssimo pechibeque enquanto redenção. Daqui para a frente, até se votar, as palavras, os argumentos, servirão apenas para entreter a espera no medo que deprime os portugueses na campanha e na votação mais tristes e desconsoladas desde que a democracia voltou. Pois que como se a penúria não nos bastasse, todos se uniram para nos injectarem medo e desesperança (e a esperança estúpida feita de cartolina colorida das esquerdas radicais não passa de um tique rotineiro de se traçarem riscos no ar assobiando para cima da realidade). Faltou o trovão e os relâmpagos que o 12 de Março ensaiou e que murcharam no ovo. Assim ficámos entregues, devolvidos, a estes líderes que lembram espantalhos bem maquilhados, uns novos e outros veteranos, mas todos gastos, manhosos, repetitivos, uns estúpidos e outros estupidificados. Do que resulta que "12 Março" ainda não foi, irá, terá de vir, acontecer. Algo como um trovão cívico, necessariamente descoincidente do ritual eleitoral (insubstitível, diga-se para dúvidas não restarem), um rasgo de cidadania contra a mentira, a rotina, a manipulação e o jogo que reduz a democracia à alienação. Ou seja, depois do voto temos de nos encontrar por aí. É que desmontado o circo da demagogia há que sacar das vassouras. É por estas e mais que por outras que, para o dia 5, é este o meu apelo e não pró voto útil ou pró voto inútil, no partido A ou contra o partido B, dado que a fraude foi colectivizada. Que cada um castigue o sistema partidário viciado e bloqueado como entender procurando ser o mais livre que lhe for possível na escolha do objecto de justa embirração pois os deméritos estão criteriosamente muito bem distribuídos.
Já referira várias vezes a admiração que me merecia Manuel António Pina enquanto poeta de primeira água. Como cronista no JN, o número de transcrições e remissões aqui feitas de escritos de MAP, tinham-no transformado numa espécie de co-blogger “emprestado”, o que diz do muito apreço para com a sua argúcia no olhar sobre a sociedade que as crónicas do JN confirmavam diariamente. Oxalá o Prémio Camões traga muito mais gente para a leitura de Manuel António Pina.
O antes pouco previsível aconteceu no primeiro debate eleitoral na RTP (sexta à noite): Portas a arrumar Jerónimo, desafinando-lhe a máquina (oratória), com uma pergunta cínica, directa e terminal, sob a forma de convite para que desse um exemplo de sociedade comunista bem sucedida. Não ocorreu ao SG do PCP citar uma das muitas páginas do “Avante” onde se tem vindo a recuperar os velhos mitos da mais velha propaganda pró-soviética. Nem refugiar-se num ditado popular, numa quadra de Aleixo ou num piropo de baile de associação voluntária de bombeiros, artes declamatórias em que é vezeiro. Nada. Pior, quase nada, pois apenas lhe saíram uns murmúrios engasgados. Paulo Portas, cirúrgico, após ter passado o debate a representar a ilustração do seu civismo de “convívio e respeito democrático” com o seu oponente ideológico (a seguir, confessaria na RTP 2 que a estima que tem para com Jerónimo de Sousa é alimentada nas sessões conjuntas de tabagismo nos interregnos parlamentares), decidiu, pois, pegar na adaga no encerramento da conversa. E mostrou, com um cinismo mortífero, que sabe aquilo que Jerónimo de Sousa sabe muito bem de experiência feita e acumulada: - os comunistas são formidáveis a apontarem e a combaterem as chagas do capitalismo onde os trabalhadores sofrem tanto, são tão explorados, que só poderiam piorar de situação caso os comunistas substituissem os capitalistas na direcção da sociedade. Mas pedir a alguém, do proletariado metalúrgico, que assim se confesse é, verdadeiramente, de uma crueldade inaudita.
Ouvi o discurso de Louçã no congresso bloquista. Considero um equívoco total a focalização do odioso político-eleitoral em Sócrates. Quando o PSD diz que quer fazer no governo muito pior que a troika, o ordenamento dos alvos do combate não pode deixar de ter isso em conta, não pegando a teoria dos “três iguais” (PS, PSD, CDS) e muito menos uma hierarquização de culpas de pendor essencialmente anti-socialista (exactamente onde se situa o eleitorado flutuante PS/BE, um segmento muito sensível ao apelo do voto útil). Em termos políticos, particularmente em eleições onde se pretende definir linhas para o futuro próximo com uma carga dramática sobreposta, contam muito mais as decisões próximas que os julgamento sobre os caminhos percorridos. Assim, mais que avaliar os culpados de pecados maiores, há que construir projectos, escolher aliados, contornar os perigos maiores. Não perceber isto e apelar contra o voto útil no PS, é dar tiros nos pés enquanto se encomendam sapatos novos.
Parece que no Bloco de Esquerda se anda agora a descobrir o perigo do “voto útil” no PS que ameaça penalizar o Bloco e inaugurando a sua regressão eleitoral (pelo menos Rui Tavares e Ana Drago publicitaram esta preocupação). Ou seja, teme-se o “regresso às origens” dos votos que desandaram da banda esquerda do eleitorado tradicional do PS e que, por descontentamento com a viragem centrista socrática, rumaram para o Bloco. Naturalmente que o susto provocado pelo desaforo descontrolado e inepto do PSD que eleitoralmente promete (!) fazer pior e mais gravoso que o FMI tende a encaixar na táctica eleitoral armada por um Sócrates em perda de todo o decoro mas com uma estratégia eleitoral muito bem esgalhada em termos de polarização das culpas. Mas o próprio Bloco em vez de procurar culpas alheias devia repensar os seus disparates políticos, em particular a forma progressiva como tem descaracterizado as suas diferenças e se entranhou num processo de mimetização com o PCP como que em penitência pelo “desvio” da campanha por Alegre (que o PCP retribui, com manha de urso velho, suspendendo as diatribes sectárias dirigidas ao BE mas dando-lhe um papel de mero candidato a futuro Verdes II). A recusa de se encontrar com a “troika”, um acto de radicalidade inteiramente estúpida, foi a demonstração acabada da forma bloquista de se remeter para as margens do jogo político, comprometendo-se na representação da duplicidade democracia/revolução. O Bloco ao querer parecer-se com o PCP perde o apelo da sua marcha de identidade que foi o seu principal património eleitoral, o que liquida o seu papel de depósito de votos volantes (descontentes, de protesto) dos incapazes de hierarquizarem os valores da justiça social e da liberdade. Têm, naturalmente, o direito a sonharem integrar uma “CDU +”. Mas na hora de pedirem contas pelos efeitos do voto útil, não se devem esquecer que há sonhos que matam a vida. Na medida em que a tornam senil sob a forma de doença precoce.
Rui Bebiano:
Em quase todo o espectro partidário saltaram os disfarces. A direita que temos, «democrática» e pluralista, deixou cair a verborreia antieuropeísta e os ímpetos «nacionalistas» e ultraliberais que ainda há pouco tempo sobejavam no seu vocabulário. Activamente ou por omissão, tornou-se radical na defesa do intervencionismo externo. A esquerda à esquerda retomou alguns devaneios, queixando-se da crise mas olhando-a ao mesmo tempo como antecâmara da tomada do poder em nome revolta das massas. Por ela, aceita mesmo associar-se àqueles que da democracia apenas têm uma concepção instrumental. Pelo meio, os socialistas tornam-se ainda mais pragmáticos, tudo fazendo, sem disfarce, para conservar o seu núcleo identitário mais essencial: aquele que gere a conservação do poder pelo poder. Lá atrás, e como sempre, só os comunistas permanecem iguais a si próprios, uma vez que nunca procuraram enganar ninguém com apologias de uma «Europa europeia» fundada numa democracia não adjectivada.
Nesta paisagem, a dificuldade está em nos mantermos lúcidos, na claridade, e não nos deixarmos levar pelos ímpetos. Uma vida melhor, mais digna e mais democrática jamais se construirá tomando a linguagem do instinto como princípio de comunicação.
Este é uma espécie de acordo “bem articulado” do ponto de vista sócio-laboral. Garantidos: 1) aumento de desemprego; 2) aumento da precariedade para os “sortudos” que escapam aos 13% dos deserdados laborais; 3) diminuição das prestações de auxílio aos desempregados, no acto de despedimento e durante o desemprego. Tudo a condizer, portanto coerente. Valeu a pena ter uma sindicalista profissional à frente do ministério do trabalho.
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