Terça-feira, 26 de Janeiro de 2010
A não perder a leitura da entrevista dada por Sidi Mohamed Barkat, professor e investigador do Departamento de Ergonomia e Ecologia Humana da Sorbonne e antigo director do Colégio Internacional de Filosofia de Paris, ao “El País”. Nela, este académico franco-argelino aborda as transformações ocorridas nas últimas décadas no mundo do trabalho e explica o processo destrutivo produzido pelas fricções de classe e de relacionamento laboral transferido, agora por rotina, das relações externas e relativamente programadas, onde há conflitos mas também margem de solidariedade e de consensos, para o interior da pessoa do trabalhador, num conflito íntimo muitas vezes explosivo e insuportável, o que explica que os combates reivindicativos de classe tendam a dar lugar à desintegração do próprio trabalhador como pessoa, ao interiorizar perversamente na sua personalidade e na vivência, os dois polos da luta de classes e fazendo oscilar em conflito, dentro de si e para si, as pulsões próprias do empregador e do assalariado, de que a tendência do aumento de suicídios de trabalhadores no activo é uma trágica demonstração. Barkat assinala ainda, com clareza, como este processo galopou porque o patronato, coincidindo com a mudança de “dono do capital” para os rostos “invisíveis” do capital financeiro e deixando a visibilidade hierárquica entregue aos gestores maníacos por objectivos e resultados, permanentemente em subida de exigências, conseguiu a quase totalização laboral da vida do trabalhador (“oferecendo-lhe” telemóvel e computador portátil, pondo-o “sempre a trabalhar”, inclusive em casa e com a família, terminando com o horário de trabalho, centrando a vida e o humano do trabalhador nas tarefas e exigências profissionais). E, neste processo de totalização, um “problema laboral” transforma-se facilmente, se afectar a autoestima e desintegrar a coexistência interna do indivíduo, num “problema de vida” (ou “de morte”). Mas Barkat não deixa de apontar o dedo ao efeito convergente do esgotamento, por inércia da segmentação reivindicativa, de um sindicalismo que, centrando-se nos salários, no horário de trabalho e na contratualização colectiva, acabou por deixar cada trabalhador entregue a si próprio no que concerne ao âmago da "vivência laboral", acumulando dentro de si as tensões da “luta de classes” dos tempos modernos, resolvendo-os ou com eles rebentando dentro da sua pessoa. Em termos da psicologia e sociologia do trabalho, no nosso rotineiro mundo académico onde predomina a alternância entre a vaidade do domínio das modas importadas e a procura do impacto pelos alertas estrondosos e apocalípticos, que espremidos pouco mais dão que conselhos de flexibilidade e moderação salarial, sobressaindo, para a opinião pública, a ideia mestra que o posto de trabalho cada vez é mais uma regalia ou mesmo benesse, transformando as relações laborais num tabu, era bom que trocassem uns minutos de vaidades e gritos catastróficos por um escutar atento das palavras de Barkat. Já quanto a patronato e sindicalistas, dos que temos (e sindicalistas temos muitos, até no governo a tutelar a pasta do trabalho e, criatividade maior, a dirigir os patrões), o apelo a escutarem Barkat deve ser poupado, pois eles vão continuar alegremente nos seus caminhos paralelos a reproduzirem clichés que a realidade laboral há muito colocou no museu da luta de classes à antiga portuguesa.
Segunda-feira, 25 de Janeiro de 2010
Mais de quatro milhões de pessoas (e admite-se que este número possa ter chegado aos seis milhões), incluindo crianças, velhos e mulheres, foram assassinadas pelos nazis em Auschwitz, na Polónia, entre 1940 e 1945. Estes dados acabam de ser confirmados pelos arquivos do FSB (ex KGB) da Rússia (quando o Exército Vermelho libertou Auschwitz, nem todos os arquivos tinham sido destruídos pelos nazis). A cadência do assassínio em massa em Auschwitz era alimentado, segundo o historiador Vladímir Makárov, pela chegada diária, em média, de 10 combóios, cada um com 40 até 50 vagões, cheios de presos, transportando cada vagão entre 50 a 100 pessoas. 70% dos prisioneiros, logo que chegados a Auschwitz, eram imediatamente exterminados, com os restantes, os seleccionados por serem fisicamente resistentes, a serem encaminhados para trabalhos em fábricas militares nazis ou sujeitos a experiências médicas. Entretanto, para assegurar a eficiência da chacina programada e industrializada, funcionaram em Auschwitz, inisterruptamente, cinco crematórios com uma capacidade de incineração de 270.000 cadáveres por mês.
Nota: Recorde-se que a Assembleia Geral da ONU (resolução de 26/1/2007) proclamou “27 de Janeiro” (o “campo” de Auschwitz-Birkenau foi libertado pelo Exército Vermelho em 27 de Janeiro de 1945) como “Dia Internacional da recordação das vítimas do Holocausto” como forma, também, de se lutar contra o negacionismo pró-nazi hoje alimentado pelas hostes cúmplices de ódios convergentes contra o Estado de Israel.
Imagem: Foto de 27 de Maio de 1940 com mulheres prisioneiras internadas em Auschwitz.
(notícia aqui)
Alí Hasan al Mayid, “Alí, o Químico”, foi vítima mortal das experiências laboratoriais que realizou com os curdos. O pior de tudo, além da nefanda aplicação da pena de morte, é que Alí se arrisca a que, na memória entre os químicos, seja, amanhã, menos evocado que Lavoisier. E o mais provável é que, daqui por uns anos, só os curdos lhe lembrem o nome. Como químico.
Digam lá se não parece um ventríloco espiritual do Marocas:
Mas, sendo o que for, o certo é que não foi só Cunhal que acordou um dia, voltando depois a adormecer, com uma espinha na garganta. Querias, nós sabemos que querias, mas habitua-te porque sapos é do que mais há. Sapos e não só. Também lembra uma quadra cantada nas noites da resistência:
Quem te pôs na orelha
essas cerejas, ó pastor?
São de cor vermelha,
vai pintá-las de outra cor.
Do impagável César das Neves que um dia vai conseguir dizer dois disparates por palavra:
Domingo, 24 de Janeiro de 2010
Sábado, 23 de Janeiro de 2010
Com a contundente vitória de hoje (79-54) sobre o seu mais directo opositor (a valiosa Ovarense), o Benfica terminou invicto (11 jogos, 11 vitórias) a primeira volta da Liga Portuguesa de Basquetebol. No desporto da bola no cesto, a história ameaça repetir-se.
Obviamente que, pautando-me por inclinações e opções, não é o apoio do Bloco de Esquerda à candidatura de Manuel Alegre que faz questionar, nem reforçar, o meu apoio já antes decidido e declarado ao Bardo no seu caminho para a Presidência. A esquerda só é esquerda se for ampla e plural. E se os preconceitos têm direito à vida, isso não transforma, longe disso, o sectarismo em regra ou caminho para a vitória. O Bloco fez o que lhe competia. Se o apoio madrugador do Bloco causa engulhos, então dispam o pijama e dissolvam o apoio bloquista com outros, mais sonantes e mais determinantes, que ajudem a libertar Belém do cavaquismo. Porque, nas contas, são os votos que votam.
Gosto, muito, do Porto (cidade). Até porque vivi lá a exaltação de dois dos melhores anos da minha juventude. Em luta, estudo e namoro. Aquela cidade está-me enfiada nos dedos da mão, os que batucam no tampo da mesa da memória. E, ainda hoje, lembrando-me que não há outro lugar no mundo melhor para se enamorar e namorar, quando me sento num qualquer Café em qualquer lugar é dos Cafés do Porto (com altares maiores no Diu e no Ceuta, desconheçendo se ainda sobrevivem) que me lembro e a que acrescento a regressão da ideia fixa de que não há passeio parecido e muito menos competitivo para se ir com uma namorada a abraçar-nos que descer da Boavista até à Foz. Confirmado o dito e o que mais não se diz porque não se conta, acrescento que não entendo a razão porque na minha mail box repousam regular e intensamente todos os comunicados da JS do Porto. A ideia dos jovens socialistas do Porto, ao incluirem este respeitável tri-avô na sua lista de endereços, é encomendada, subliminar ou perversa? Sejam claros e frontais, jovens camaradas, estão a cumprir alguma missão de eventual senhora, hoje tão madura quanto socrática, a que não dei, no tempo e lugares idos, a devida atenção? É que eu quero morrer justo, sem contas para saldar.
Sexta-feira, 22 de Janeiro de 2010
Para um adepto irremediável do futebol e com dois (!) clubes no peito como eu sou, olhar a capa de um livro de um académico sobre as coisas da bola (*), natural seria que me levantasse, em simultâneo, uma tosse seguida de espirro. Mas foi só quase. A consagrada tese dos “3 Fs” que um antifascismo primário colou à relação entre a ditadura e o futebol, acompanhando-o de um fenómeno tão distinto como o fado mas tão similar como foi e é Fátima, é bem conhecida, tarde ou cedo este estereótipo salta, servindo o verniz da alergia a muita gente em bicos de pés no status cultural, e por isso merece ser estudado e verificado. Assim, foi de uma forma dócil que meti o livro de Ricardo Serrado (**), uma reprodução da sua tese de mestrado, na minha alcofa das compras. E, diga-se, sem lamentos vulgares e próprios de tempo de poupanças.
Parece-me que Ricardo Serrado (RS), na sua tese esforçada de desligar o futebol do fascismo, é mais veemente que convincente. Embora equilibre o efeito distorcido do estereótipo difundido e aceite pelo politicamente correcto na preguiça corrente com que se interpreta o fascismo português, o dos “3 Fs”, RS parte de um lugar comum académico e só triunfante porque insuficientemente contraditado: o de que o salazarismo-marcelismo não foi um fascismo (o que leva muito boa gente a adoptar o termo “Estado Novo” com que Salazar baptizou o seu regime ditatorial, e normalmente sem o pudor mínimo de lhe meter aspas). Sendo uma das comprovações deste “aligeiramento” na categorização (sugerido com resultando do amor ao rigor) a ausência (ou reduzido a esporádicas erupções), na longa ditadura portuguesa, do “fenómeno de massas” e levantando, para abono da tese, o carácter de homem solitário que habitava o Botas, o seminarista adverso às multidões. Obviamente que Salazar odiava as multidões quando não as controlava e odiava os ajuntamentos e o povo, por desconfiança atávica, quando este não se reduzia a suar a cavar batatas. E, assim sendo, um eremita bêbado de poder, Salazar não podia entender e muito menos gostar de futebol, espectáculo e paixão de multidões. Mas, ao mesmo tempo, nunca permitindo intimidades ou proximidades que o seu nojo pelo povo não permitia, Salazar sempre encenou ou mandou encenar celebrações de multidões, até para legitimar a ditadura, sobretudo nos momentos críticos para o regime. E comparecia nelas, muitas vezes. O Jamor aí está como demonstração, esse estádio que é a última grande perpetuação (continua a ser o palco exclusivo das finais da Taça de Portugal) da ligação profunda (propagandística, estética) entre o fascismo português e o futebol. Julgo também como certeira a defesa de RS de que foi mais o futebol (e os clubes) que se impôs à ditadura que o inverso. Embora, como não nega, a ditadura tenha aproveitado sempre e ao máximo todo o desvio de motivações e exaltação nacionalista que o futebol português proporcionou aos ditadores. E esse mesmo aproveitamento foi o mais significante em termos de ligação entre política e futebol de que o regime beneficiou mais que o próprio futebol (o qual, sintomaticamente, se consolidou muito mais em tempos de democracia, “fogachos” do Benfica e da selecção no Mundial de 66 à parte).
O capítulo mais interessante do livro de RS é o dedicado à final de 69 da Taça de Portugal em que os estudantes de Coimbra, em luta cerrada e valente contra o fascismo, transformou a “festa do Jamor” numa jornada política de luta (a que aderiu, maioritariamente, a massa de adeptos do Benfica ali presente). Trata-se de um capítulo bem documentado e o melhor tratado. Mas não serve, como parece ser destinado, como prova válida de que, como fenómeno, o futebol não só não foi amado pelo fascismo como enfrentou ou corroeu o regime. Foi um acto isolado, mesmo que dos mais vivos em termos de reversão dos rituais do fascismo português. Nunca aconteceu nada igual nem parecido, antes ou depois. Aliás, a invasão coimbrã do Jamor, essa grande jornada de vergonha para a ditadura, está, na memória colectiva, se esta pretender ser justa, “empatada” pela monumental ovação que Marcello Caetano recebeu em Alvalade pouco antes do 25 de Abril e já dada a tentativa do 16 de Março vinda do quartel das Caldas.
Um historiador ter-se dedicado ao estudo e história do futebol, é uma novidade e excelente notícia. Para além das repulsas, o futebol é o futebol. Se a história o desprezasse, seria a história que perderia, passando ao lado do maior e mais importante espectáculo de massas de todos os tempos.
(*) – “O Jogo de Salazar – a política e o futebol no Estado Novo”, Ricardo Serrado, Edição Casa das Letras.
(**) – Ricardo Serrado é licenciado e mestre em História (Universidade Nova de Lisboa), ainda investigador do Instituto de História Contemporânea da FCSH e do Centro de História da FLUL, bem como director do Centro Histórico do Futebol e Desporto.
A tradução portuguesa do livro da autoria de Victor Sebestyen, um jornalista inglês de origem húngara, sobre a queda em dominó dos regimes comunistas europeus (*), constitui não só o resultado de uma aturada investigação sobre as essências das desagregações de cada uma das peças do dominó, pelo acesso e estudo dos arquivos disponíveis, como a mais completa e profunda análise do fenómeno da implosão do comunismo disponível nas livrarias portuguesas. Estas são razões suficientes para que, pela raridade e profundidade, seja já uma obra de referência para os estudiosos do comunismo. A que acresce, como valor de fascínio, o estilo de grande reportagem, possível porque vindo de um jornalista veterano e rigoroso, o que nos conserva o prazer de leitura da primeira á última página.
Sebestyen percorre os vários ambientes políticos, sociais e partidários na URSS e nos países europeus parceiros no Pacto de Varsóvia na fase pré-terminal da falência dos regimes, detectando em cada um as suas características peculiares (o que permanecia assim por baixo da uniformização do modelo) e as suas taras degenerescentes, as comuns e as particulares. Depois, o autor, acentuando os pontos críticos e vulneráveis da decadência da forma comunista de governar (particularmente sensíveis na Polónia, na RDA e na Hungria), percorre os factores de contaminação que vão alargando as incapacidades de os regimes enfrentarem os seus povos saturados e cada vez mais impacientes, em que os ditadores e as cliques partidárias, degenerados pelo poder absoluto prolongado, ficam sem soluções defensivas e ou cristalizam no pânico e na paralisia ou simplesmente tentam sobreviver através dos golpes palacianos ou da transferência para a “contra-revolução”. Fica também a tese de que Gorbatchov, a perestroika e o processo interno da URSS e do PCUS, em vez de terem sido elementos activos e catalizadores do desmoronar do comunismo leste-europeu, versão que é corrente nas “teorias da conspiração” aplicadas ao fim do comunismo, impulsionaram-no sim e apenas ao manterem uma neutralidade militar e repressiva de tipo expectante, recusando-se a repetir Budapeste de 56 e Praga de 68, o suficiente para paralisar a capacidade de resistência das cliques partidárias perante a “contra-revolução” e incentivaram as acções libertadoras dos povos oprimidos pelo comunismo implantado na Europa como resultado do final da II Guerra Mundial. E se, na Polónia, pelas acções do “Solidariedade” e da Igreja Católica, se detectaram as primeiras brechas, estas contaminam rapidamente os alemães de leste que formaram uma enorme massa humana em movimento contínuo de fuga da RDA e, perante o Muro em Berlim, inundaram os “países irmãos” (Hungria – pela fronteira húngaro-austríaca e Checoslováquia – embaixada da RFA) num êxodo para Ocidente, procurando meios e fronteiras por onde pudessem escapar-se até que, perante a impossibilidade de todos fugirem, se viraram contra a clique partidária já impotente. A insolvência económica e financeira dos sistemas de funcionamento das sociedades e a força dos exemplos de polacos e alemães de leste, acabaram por levar os dirigentes húngaros a tomarem a iniciativa de “renegarem” a hegemonia comunista. Depois, foi a contaminação rápida e fulgurante, até atingir os povos mais amedrontados e pessimistas, com uma velocidade de decomposição dos regimes que espantou todo o mundo porque ninguém previa que os alicerces dos regimes, todos transformados em estados policiais, irreformáveis, desde logo os seus partidos isolados nos seus rituais, estivessem tão cancerosos e tão de costas voltadas para os seus povos e problemas. E, no final, como se confirma, todos cairam vítimas da doença senil do marxismo-leninismo.
(*) – “Revolução 1989 – a queda do império soviético”, Victor Sebestyen, Editorial Presença.
Quinta-feira, 21 de Janeiro de 2010
Tudo se encontra nem que seja no infinito. Mas, por norma, antes. Quando do anúncio da composição do actual governo, o então presidente da CIP, conhecido como ocupando a função de “patrão dos patrões”, deu um grito público de pânico perante o mau prenúncio de uma “sindicalista” ocupar o cargo de ministra do trabalho no governo “relativo” de Sócrates, Helena André (a qual, como se fosse noviça nas questões laborais, confessou a sua enorme surpresa com a dimensão do número de desempregados em Portugal). Mas Francisco van Zeller, demonstrando um bom jogo de cintura patronal perante as ofensivas sindicalistas de Sócrates-UGT, passou rapidamente do escândalo à manha, transferindo a pasta da presidência da CIP para um herdeiro com um passado também ele dedicado ao serviço da classe operária, tendo sindicalizado na Lisnave, nada menos que o ex-serralheiro mecânico António Saraiva. Se à frente dos sindicatos ainda estiverem sindicalistas (decerto que estão, a menos que, para fintarem governo e patrões e tudo baralhando, fazendo boomerang, os sindicatos tenham passado a ser dirigidos por patrões), temos um estranho e irónico Conselho de Concertação Social, com três experientes sindicalistas, do passado ou do presente, a chefiarem as três partes (governo-patrões-sindicatos) do triângulo da dinâmica laboral. O que dá uma aparência exoticamente soviética à instituição que é pilar da gestão da paz social e num país regido pela economia de mercado. Para já, da confluência cúmplice e camarada, de facto ou prospectivamente, as oratórias vão-se aproximando: enquanto Helena André apela a que se “refresquem” as apreciações sobre o desemprego (que demonstra ao assegurar que “o desemprego vai continuar a aumentar até que desça”), António Saraiva apela a que se “congelem” os salários. Sintomático é que estes sindicalistas, um despromovido a patrão e a outra a ministra, não fazem esquecer que a paz social está agora entregue a sindicalistas vindos do frio. Brrrrr...
Quarta-feira, 20 de Janeiro de 2010
Nesse dia 20 de Janeiro de 1973, o colonialismo português fez a PIDE e a traição assassinarem Amílcar Cabral. Com isso, não ganhou o regime de então, entrando na fase da derrota irreversível nos combates na Guiné e caminhando a passos largos para o golpe militar que o derrubaria. Não ganhou Portugal regressado à democracia e convertido ao respeito pela autodeterminação, pois perdeu um interlocutor de altíssimo nível que ajudaria, provavelmente, a que uma outra descolonização fosse possível. Não ganhou África que perdeu um dos seus mais eminentes líderes. Muito menos ganhou a Guiné que nunca mais se curaria das sequelas e réplicas da traição que disparou sobre Cabral. Com o assassinato de Cabral, como antes o de Mondlane, dois crimes entre uma montanha de atrocidades que queimou vidas, inteligências e energias de muitos milhares de africanos e portugueses, numa estúpida e prolongada guerra colonial, o colonialismo português, usando a PIDE para os actos de maior perfídia, mostrou a sua face pior e mais autêntica: a estupidez, gerada pelo instinto assassino, no lidar com a história.
A propósito desta efeméride, leia-se aqui um excelente e esclarecedor texto de Diana Andringa.
Na refeição, os víveres devem condizer com os beberes. Só que um bom vinho pode salvar uma refeição medíocre mas o contrário é impossível. Aproveitei o proibicionismo de se fumar nos restaurantes e que me remeteu ao exclusivismo, quase total, das refeições in house para compensar o investimento de tempo agora derramado na culinária (ou no take way) para acompanhar as refeições com néctares a preceito, comprados a gosto e inspiração mas impensáveis para a minha bolsa magra se fossem transaccionados em qualquer restaurante, onde teria de beber fraco ou médio mas sempre exorbitante no preço relativamente à qualidade. Assim, por regra, no novo regime de pureza fumígena, puxo do cigarro enquanto bebo o café à moda do Clooney e compenso os meus fracos préstimos - embora esforçados - na culinária e tentando beber bem na qualidade (porque beber demasiado é apanágio de bêbados, fadistas, fascistas, infelizes e vadios). Se desta minha mudança se queixam as micro, pequenas e médias empresas da indústria da restauração, então lamuriem-se disso aos líderes espirituais e legais do proibicionismo antitabágico e à indústria dos comes-e-bebes, ela mesma, que fez das alcavalas escandalosas do peso da parcela dos vinhos na conta da refeição a aposta gorda na ganância espetada nos bolsos dos comensais (olhem a difundida estrutura dos preços de uma refeição e confirmem a regra seguida por todos, de uma forma perversa, exagerando nas entradas, nas bebidas e nas sobremesas, parecendo que “o prato até não foi caro”). E nada tendo feito para corrigirem o rapinanço ainda acrescentaram a docilidade com que se vergaram ao fundamentalismo antitabágico de importação. Por mim, amanhem-se. Até porque, feito o balanço, só lhes tenho - aos legisladores e aos gananciosos da restauração - que agradecer, brindando-lhes com tinto, do bom e valente, comprado num supermercado perto da minha morança.
A experiência obriga à pedagogia tentada. Daí que aconselhe os comparsas internautas a experimentarem, se nele ainda não repararam, um excelente tinto de Estremoz (para mim, o melhor triângulo vinícola tem os vértices em Arraiolos-Estremoz-Portalegre), um “novo” sublime de 2007, que se designa com o endereço rotulado de .beb, uma criação bem pensada e melhor conseguida por Tiago Cabaço (*) e com uma equilibrada relação preço-qualidade. Além do mais, pela escolha da designação e pelo design da imagem da garrafa, constata-se que o excelente lagar e acompanhamento enológico se equilibram com um marketing à altura, dirigindo-se a um público alvo de cibernautas também devotos a Baco. Experimentem. Mas, por favor, não esgotem o stock.
(*) Castas: Alicante Bouschet, Touriga Nacional, Syrah e Cabernet Sauvignon; Cor: vermelha intensa e profunda; Aroma: a fruta madura mas composta e elegante aparece de imediato, logo secundada pelas notas especiais a pimenta e cravinho, acompanhadas por leves sensações de chocolate e gengibre; Prova: a boca surge tensa e precisa, ampla mas harmoniosa, poderosa mas contida, com um final fresco, prolongado e vivo.
Terça-feira, 19 de Janeiro de 2010
Com a devida vénia, transcrevo da prosa de Sérgio de Almeida Correia:
Ao olharmos para a galeria de medalhados do regime, para o número verdadeiramente indecoroso de agraciados e para os progressos que o país registou à custa desses mesmos medalhados (e isto é que importa sublinhar), facilmente concluímos que se esses medalhados tivessem metade do mérito que as palavras que lhes foram ditas lhes atribuíram, e o alto nível das condecorações oferecidas deixa perceber, o País não estaria como está.
De que serve ter um português à frente da União Europeia, outro ex-primeiro ministro como Alto Comissário para os Refugiados e milhares de medalhados por altos serviços prestados, se o Estado está como está, se temos mais de meio milhão de desempregados e se são cada vez mais os portugueses que não têm para pagar o aquecimento ou comprar uma posta de peixe?
Aquilo que deveria servir para manifestar o reconhecimento de todos, todos, os portugueses pelos relevantes serviços prestados à Pátria, ao Estado e à Nação pelos cidadãos condecorados, tornou-se num gesto corriqueiro destinado a agraciar funcionários públicos, ainda que bem pagos, e clientelas políticas e empresariais, sendo cada vez mais raros os casos em que a atribuição de uma medalha é consensual e de inteira justiça. Não aos olhos de quem atribui, mas aos olhos em nome de quem elas são apostas, único critério que deveria estar presente na hora da decisão.
Por tudo isso, enquanto português e cidadão, sinto verdadeiro asco quando vejo serem agraciados políticos profissionais - enquanto agraciado Pedro Santana Lopes não tem culpa nenhuma - e nojo sinto quando o critério da atribuição da honraria reside, inclusivamente, no facto de, in casu, como foi por diversas vezes referido, Santana Lopes ser o único primeiro-ministro que ainda não tinha sido condecorado. Como se tal critério pudesse valer entre gente inteligente, responsável e consciente do seu papel, ou como se houvesse condecoração maior, honra maior, do que ter servido Portugal e os portugueses como primeiro-ministro ou ministro da República.
Aliás, as mordomias inerentes a algumas funções, e a forma como o poder político retribui os seus pelo exercício de funções de Estado, promovendo esses servidores, alguns simplesmente medíocres, sem currículo, obra ou sequer qualificações que os guindassem aos lugares que ocuparam (e ocupam), a administradores de empresas públicas e participadas e banqueiros, num vergonhoso carrossel de lugares e recompensas até à sua reforma, muitas vezes à custa de erros políticos que deviam dar cadeia pelos custos que representam, parece-me forma de compensação mais do que suficiente, e já de si suficientemente indecorosa, que deveria bastar para que os medalhados sentissem alguma repulsa, já não digo vergonha, pelo recebimento deste tipo de condecorações.
Transformar um mandato sofrível, um desastre orçamental, um desconchavo governativo permanente que até mereceu acusações de traição em directo por parte de "amigos do peito" e companheiros de partido, por sinal o mesmo onde militou Cavaco Silva, que mais pareciam amigos da onça, num "acto de justiça", só pode ser entendido como um acto de pública ignomínia. É, pois, natural, que o anúncio da candidatura de Manuel Alegre à Presidência da República, com tudo o que isso significa para um presidente em exercício, no seu primeiro mandato e a um ano de vista das próximas eleições presidenciais, não esteja no rol das preocupações de Cavaco Silva.
Hoje ficou-se a perceber um pouco melhor porquê. É que no rol das preocupações de Cavaco Silva, Presidente da República, estava exactamente condecorar Pedro Santana Lopes, ainda que para preservar uma "longa tradição", que tem tanto de paroquial quanto de atávica, mas que muito honra a Chancelaria das Ordens Honoríficas Portuguesas, se tenha acabado de espetar mais um prego no caixão deste regime. Estranho o silêncio de uma certa direita, sempre atenta quando se trata de defender os seus valores, alguns dos quais não são seu exclusivo, mas que nada diz perante tamanha afronta à dignidade do regime, talvez ciente de que o seu silêncio ainda poderá vir a ser recompensado com uma aliança no futuro que lhe permita de novo ascender ao sacrossanto poder.
Seria bom que o próximo Presidente da República, e já agora o secretário-geral do Partido Socialista, fossem pensando nestas coisas para quando chegar a hora, não do Juízo Final, que isso é com outro rosário, mas de acertar contas com a República. E mesmo assim não sei se algum dia ela estará disposta a perdoar-lhes.