Lembro-me bem: na minha primeira visita ao Campo, oito anos idos, esta árvore estava já carcomida mas de pé. Não muito direita, possuía ainda a dignidade possível de uma árvore que, utilizando a terminologia muito do gosto africano, tinha passado ao estado de semi-direita. Entretanto, deu-lhe a última aflição e tombou no campo de Chão Bom. Por lá continua deitada talvez para lembrar os homens que queriam ser direitos e ali tombaram também pela ignomínia maior de Salazar, Adriano Moreira (é dele, quando ministro, a assinatura do despacho que mandou reabrir o campo em 1961 para prisioneiros africanos) e Caetano, na comunhão do mesmo ódio dos ditadores contra a dissonância na escolha dos caminhos do destino. Esse ódio bebido na Gestapo e que levou Salazar a imitar o pior da Alemanha de Hitler ao criar, no ano em que Franco levantou armas em quartéis para assassinar a República em Espanha, copiando Buchenwald nas terras mais hostis do Império, plantando um Campo de Concentração a dois quilómetros da vila piscatória do Tarrafal, na ponta oposta à capital da colónia de Cabo Verde, e com o nome cínico de Chão Bom. Nessa morgue longínqua, no “Campo da Morte Lenta” como ficou conhecido, centenas de homens - anarquistas, comunistas, republicanos, antifascistas sem partido – penaram e foram semeando no chão duro e acastanhado pela míngua da água, o vento quente do Sahara e as queimaduras deixadas pela lava, as suas dores de solidões acompanhadas, a luta permanente pela sobrevivência e pela sanidade mental, os enterros chorados de dezenas de companheiros tombados como as árvores que não morrem de pé. Depois, finda a Segunda Guerra, o clamor antinazi, com o escândalo vivo dos “campos” do Reich, aquela cópia tornou-se um embaraço e uma evidência de que o salazarismo tinha inspiração mimética bem localizada num dos quadrantes ideológicos que empurraram a Europa para a barbárie. Fechado para disfarçar o ponto alto da perfídia salazarista, não ficou desabitado muito tempo pois, com as guerras de libertação em África, voltou a ser utilizado em pleno para o massacre lento dos guerrilheiros com sede de dignidade e independência. Até que o 25 de Abril aquelas portas também abriu. O que não impediu o marxismo-leninismo africano, demonstrando como os totalitarismos gostam de cultivar semelhanças entre si, nas suas breves erupções ocorridas em Cabo Verde, voltasse a abrir portões e celas do Campo de Chão Bom para ali enfiar novos presos, agora os da categoria dos “reaccionários”.
A muitos aprisionados, em levas sucessivas durante as décadas em que o Campo de Chão Bom cultivou morte e ódio, esta árvore deve ter servido de abrigo da inclemência das brasas caídas do céu. E de muitos sonhos terá sido confidente. De raivas também. Chegou-lhe a hora de querer descansar e deitar-se. Ali está caída por incúria de abandono. Sem préstimo nem sepultura. Mas lembra, continua a lembrar. Se a memória quiser saber.
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Imagens: Vistas do Campo de Concentração do Chão Bom (Tarrafal, Cabo Verde), Abril 2008. É uma réplica, a pequena escala, dos campos de concentração nazis (seria cópia do Gulag se a ideologia fosse a simétrica) que foi utilizado pelo Estado Novo de Salazar-Caetano em dois períodos (1936-1954, 1961-1974), no primeiro para desterrar antifascistas europeus e no segundo para internar combatentes independentistas africanos (guineenses, angolanos, moçambicanos, sãotomenses e caboverdianos), tendo ainda sido utilizado em curtos períodos quando do regime marxista de partido único no Estado de Cabo Verde, antes da conversão do PAICV à democracia, para internar oposicionistas. Após a independência de Cabo Verde, as instalações do Campo funcionaram como quartel militar durante um certo período. Actualmente desactivado, o Campo possui um pequeno núcleo museológico, mas, por falta de manutenção, reconstituição e auxiliares de memória, está em progressivo estado de degradação.
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