Agora é o Lutz que o renega como colega de ofício. E até que as casinhas castiças, se todas tivessem janelas de tabuínhas com cortininhas de chita a condizer com os mosaicos das frontarias, nem desfaziam nos méritos projectistas de Sócrates I, O Engenheiro.
Rui Bebiano, escrevendo sobre a evocação do centenário do regicídio, lamenta:
Como a maioria dos portugueses com os ouvidos abertos, tenho andado um tanto empanturrado com as evocações do Regicídio. Escreve-se muito, por vezes demais e de um modo empolado ou redundante, para o interesse que o tema poderá despertar hoje no cidadão comum. Percebe-se a razão: monárquicos carentes de oxigénio, chefes de redacção à procura de assunto e circunspectos académicos com reduzido público confluem numa evocação que torna mais visíveis as suas crenças, que responde às suas necessidades ou que projecta o seu trabalho. E aproveitam-na enquanto podem.
E, insurgindo-se sobre o maniqueísmo de aproveitamento historiográfico, alimentado por um profundo défice de conhecimento histórico de um povo muito mais habituado, e adaptado, à lenda e ao boato que ao facto, a uma versão simples em que facilmente se descortinem o “bom” e o “mau” que ao prazer da descoberta do paradoxo e da contradição, Rui Bebiano faz este apelo “programático” na “caixa de comentários” do seu post:
Existe um lado que nos escapa se não formos capazes de usar - a par dos documentos e da sua crítica - a emoção e a empatia. Sempre que o conseguirmos fazer, desaparecerão os juízos absolutos, as caricaturas - como aquelas que estas comemorações nos trazem sempre - e sobressairá aquilo que de mais profundamente humano conteve o passado.
Julgo que esteja aqui, exactamente, a chave da paixão histórica (que, por vezes, mas só por vezes, coincide com a paixão pela história). Embora, no meu caso, a perceba num sentido oposto à hierarquização proposta por Rui Bebiano. É que se a emoção e a empatia (ou o seu lado gémeo da antipatia) nunca mingua à mesa das considerações aceites e transmitidas, o nosso défice maior, na lide dos portugueses com a sua história, tem a ver com os documentos (mais concretamente, os factos) e a sua crítica. Por carências de ensino, de edição e de leitura, sobretudo. Mas, como agravante maior, pelo império cultural, essa tirania do simples, levantado no semi-deserto da ileteracia dominante: uma tradição fortemente ideológica em que a ditadura afunilou as mensagens, empenhando-se em as filtrar e em que a democracia, mesmo quando em contra-cultura com a herança salazarista, persiste em semear a disposição em cena dos santos, heróis e vilões, baralhando-lhe os papéis quando acha ser caso disso
As evocações do regicídio foram habilmente exploradas, quase até à náusea, por monárquicos e conformistas. Para tal, exploraram duas veias favoráveis no encontro com o senso comum: 1) o repúdio moral automático para com os assassínios e os assassinos (e, no caso, os monárquicos foram as vítimas); 2) a defesa da República estar em postura defensiva (má governação segundo alguns, autocracia segundo outros, pouca ou nenhuma dignidade de Estado segundo a maioria) e nem sequer merecer qualquer abono da parte dos radicais dos tempos actuais, para os quais a necessidade de apressar a chegada ao destino da igualdade não se compadece com delongas em salamaleques perante a reconstrução institucional da burguesia, a sempre exploradora. E assim, de uma penada, em bela oportunidade, comemorando o regicídio, mas sobretudo parasitando as emoções provocadas pelo evento, reduzindo o binómio monarquia-república à equação de dois assassínios, enevoando que as figuras reais vitimadas governavam então em ditadura intermediada por Franco, os monárquicos marcaram pontos em termos de aceitação relativa. A que acrescentaram não só uma operação descabelada de propaganda do candidato ao trono (um “produto” difícil de vender dada a tonteria do personagem e com o handicap de nem sequer ser o herdeiro), vingaram-se com juros ganhos da desfeita da ida de Aquilino para o Panteão e anteciparam-se em forte propaganda de descrédito das próximas comemorações do centenário da implantação da República. Aos monárquicos, somaram-se, nos ganhos, os conformistas. Estes vindos de dois géneros de conformismo: a) o da reverência perante os poderes enquanto poderes, a que Cavaco Silva deu representação em Cascais e o Patriarca em missa solene (tendo falhado por uma unha negra a junção dos acordes oficiais de uma banda militar); b) o da projecção para o passado por simulação da via autoritária (real ou subentendida), como necessidade implícita para reprimir abusos das sucessivas plebes, em que confluem, de formas subliminares, tanto a saudade salazarista (tem outra dignidade, até direito a honras académicas com Rui Ramos em cátedra maior, a defesa de D. Carlos, comparativamente com a do antigo seminarista fasciszado vindo de Santa Comba Dão) como o ímpeto da apologia da “energia socrática” de governar longe do barulho das ruas e em sua contra-mão (em que os apelos a Sócrates para que não ceda “à rua” lembram o pânico expresso por Marcello no Carmo quando passou a pasta a Spínola para que o poder “não caísse na rua”).
E, nesta orgia efemérica, o que sobrou em entendimento quanto a Costa, a Buiça e à própria República (como se República já não sejamos)? Ou, como referiu Rui Bebiano, que trabalho foi feito para “compreender a dimensão intensa, ainda que efémera, das suas certezas”? Lá iremos, talvez depois de assente a poeira desta festa com enfeite necrófilo. Quando for altura de menos retórica interesseira e mais história.
Imagem: Cartaz alusivo ao regicídio divulgado na Internet.
Abel, após o jogo com o Belenenses e com a sua equipa a regressar ao quarto lugar:
Quem diria que o maior arraial de pancadaria escrita dada em Mário Soares, numa peça fanático-jornalística em que o ódio ferve, vem de quem já votou nele e contava fazê-lo de novo nas últimas eleições presidenciais (se as contas não tivessem saído furadas):
Soares adoptou há muito, como meio de vida, a defesa do capitalismo explorador
Nuno Brederode Santos, no DN, explica o elementar aos que, repentinamente, entraram em pânico com a “vitória da rua”:
Um povo que barafusta e protesta, mesmo quando não tem razões para isso, não é um povo chato, é um povo livre. Livre e escaldado por meio século em que não pôde protestar quando as tinha. Um povo que escolhe mandatários e que, em boa hora, deixou de aceitar iluminados.
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