Vem aí uma semana programada para rasgar a rotina. Na Sicília, se os deuses e o Etna permitirem. A escolha deveu-se a várias razões, duas delas absolutamente confidenciais mas que aqui partilho convosco: a primeira de todas, muito pessoal e até conjugal, tem a ver com a minha tendência para as equivalências facilitantes e não me ocorrer destino mais apropriado que este para viajar com a Cecília; a segunda razão, esta ponderosa e estruturante, além de ser social e de massas, advinda da minha intrometida mania de que ando por cá para ajudar a salvar a pátria, sonhar com sentido de missão que, neste destino, vou encontrar por lá um administrador disponível e com bom currículo, a quem os carabinieri ainda não tenham deitado a mão, para resolver de uma vez por todas o “tira, rapa, põe” do preenchimento da nova administração do BCP, o que seria una buona opus para desconto nos meus pecados anti-clericais e bom serviço às finanças público-privadas.
Volto ao blogo-convívio logo que os Reis Magos iniciem as suas viagens de regresso. Desejo a todos uma excelente entrada no Novo Ano, com um bom (baixo, baixíssimo) défice e muitos, mesmo muitos, computadores portáteis distribuídos, façanhas estas que são as mais "de esquerda" que se podem esperar de Sócrates e seu PS. Divirtam-se. Muito.
O quadro político paquistanês é demasiado sortido, confuso e complexo para que me sinta à vontade para disparar sentenças. Mas crime é crime. Terror é terror. E a repulsa pelo assassinato de Benazir Bhutto é, só pode ser, de nojo radical. Sabemos que Benazir Bhutto tinha uma legião de seguidores e outra de gente que a odiava. Com réplicas repartidas de fanatismo pelo meio. O que não ajudava à saúde da democracia no Paquistão. Mas tudo, como tudo, devia ser decidida pelo voto, nunca ao tiro e à bomba.
Além do mais, da questão política e da questão da ética, Benazir Bhutto era uma mulher corajosa e muito bonita. Esteticamente, ela merecia, em vez de um assassino à sua espera, alguém que lhe oferecesse uma flor.
O conselho político mais estranho que já li:
Penso que Sócrates deveria fazer uma mini-remodelação logo na entrada do ano que vem (…) sobretudo, para dizer claramente que não substitui os seus ministros mais contestados pela oposição (…).
Que, no entanto, casa na perfeição com o destinatário da mensagem. Confirma-se: o mensageiro conhece-o bem. Muito bem.
Antes que o da ASAE se vire e apreenda o bacalhau e os acepipes, ficam os meus votos para que todos os companheiros e as companheiras de convívio blogosférico tenham uma lauta e livre consoada.
Passados 90 anos sobre a tomada do poder pelos bolcheviques na Rússia (Novembro de 1917) e 16 sobre a implosão do império que construíram, com a propaganda a ir repousando, é mais que tempo de se ir procedendo a um deslindar histórico sobre um dos acontecimentos mais marcantes, e mais traumáticos, da história da humanidade e que talvez a tenha marcado tanto como o advento do cristianismo. Para tal, necessita-se de um acalmar de paixões ideológicas, saber-se contornar os estereótipos longamente construídos na historiografia manipulada pelos sovietistas e as análises redutoras que negam a importância excepcional dos acontecimentos em Petrogrado em 1917 e a nova ordem social, política e partidária construída sob a liderança de Lenine.
Desde logo, tendo cristalizado a praxis marxista, os acontecimentos de 1917 na Rússia (estendidos ao império russo), passando a moldar a prática comunista internacional, foram uma não confirmação da teoria marxista sobre a conquista do socialismo e de grande parte do anterior pensamento de Lenine sobre a realização da revolução. Neste sentido, Outubro foi uma concretização herética do seu suporte teórico. Assim sendo, em vez de uma realização programática da doutrina de referência, Outubro e a construção e desenvolvimento da URSS representaram uma sequência de improvizações pragmáticas, muitas delas heteredoxas relativamente à teoria marxista, cedendo espaço ao pragmatismo da conquista do poder, primeiro, e sua conservação, depois. Tudo em condições particularíssimas, no tempo, no espaço e nas circunstâncias. E a grande tragédia partidária do movimento comunista internacional foi, não tendo em conta o “anti-marxismo” de Outubro e da construção da URSS, nem os aspectos dominantes da excepcionalidade do entorse histórico e político que levou Lenine ao poder e Estaline a conservá-lo, ter aceite a rigidificação dos acontecimentos russos de 1917 e nos anos posteriores, universalizando o que foi particular, subjugando-se a eles como modelos, degradando-se na mimetização de um marxismo-leninismo que não é mais que um manual-repositório de uma experiência particular e excêntrica, dogmatizando o marxismo numa variante pervertida. O que, além do mais, inibiu a hipótese de os trabalhadores, as massas populares, nos países desenvolvidos, se aproximarem da concretização das previsões de Marx, relegando a probabilidade revolucionária para o quadro de revoltas camponesas, parasitismo de ocupações militares do Exército Vermelho ou aventuras esquerdistas de focos guerrilheiros (todas em absoluta dissonância com as teses marxistas).
Os acontecimentos da tomada de poder dos bolcheviques em 1917 suscitam, desde sempre, uma querela sobre a catalogação do fenómeno. Para uns, os sovietistas, o que se passou foi uma revolução, dirigida pelos bolcheviques e apoiada pelos operários e soldados radicalizados de Petrogrado. E para alimentar esta versão muito contribuiu o filme-embuste de Eisenstein que, no seu filme “Outubro”, recria fantasiosamente o cenário da tomada de poder dirigida por Lenine, falsificando-o quase de fio a pavio. Para outros, tudo não passou de um puro e duro golpe de Estado, urdido e consumado pelos fanáticos bolcheviques. Peter Kenetz (*), um dos mais consagrados estudiosos da realidade soviética, apresenta uma terceira classificação dos acontecimentos: o que se passou foi a completa desintegração do poder russo, criando-se um “vazio absoluto de poder” a que os bolcheviques responderam com a sua usurpação (um género de “pisar de fruta podre”). É partindo desta teoria base, que Peter Kenetz, num livro recentemente editado em Portugal (**), arranca para a sua interessantíssima história-síntese do poder soviético desde a sua erupção até ao seu desaparecimento, caracterizando-lhe as diversas fases de transformação, degradação, degenerescência e agonia. Trata-se de um excelente contributo para a discussão por fazer, longe da gritaria das propagandas cruzadas, sobre um acontecimento marcante e cujas sequelas e fascínios muito demorarão a serem apagados.
(*) Peter Kenetz é professor de História na Universidade da Califórnia e considerado um dos sovietólogos de referência.
(**) – “História da União Soviética”, Peter Kenetz, Edições 70
Lendo-se:
O presidente da Conferência de Bispos Católicos de Inglaterra e País de Gales, Murphy O'Connor, voltou hoje a defender que o Vaticano deveria permitir a ordenação de homens casados, numa entrevista ao jornal Financial Times.
Fica-se a matutar: Será que Tony Blair, acabadinho de se converter ao catolicismo, quer fazer carreira na sua nova Igreja, abraçando o sacerdócio e indo por aí fora?
Em 1980, num devaneio turístico montado colectivamente num Fiat 127, fiz um tour turístico Europa dentro que incluiu estadias na então Checoslováquia e na então RDA. Lembro-me de entrar na Checoslováquia pela então República Federal Alemã na zona das Sudetas e constatar, na passagem fronteiriça, quer o riso de escárnio dos guardas fronteiriços alemães ocidentais como ter de lidar com a obtusidade de entendimento dos guardas checoslovacos que, de todo, apesar dos passaportes e dos vistos, não percebiam como dois casais de portugueses ali desaguavam numa pequena viatura carregada de material de campismo. Para mais, os guardas demonstravam, ou isso invocavam, não conhecerem a existência do país onde tínhamos nascido. Passadas duas horas em jogo antipático de desconfiança, a invocação do nome de Eusébio fez luz no cinzentismo burocrático e deu-nos entrada dentro das fronteiras do socialismo real. Na passagem da Checoslováquia para a RDA, que se supunha fácil pela permanência dentro das mesmas fronteiras políticas, tudo piorou e a seca de formalidades durou várias horas até que pudéssemos arribar a Dresden, constatando que a antipatia agressiva (adquirindo uma componente marcial na RDA) ia aumentando consoante se ia progredindo terreno no “paraíso dos trabalhadores”. De Berlim Leste, “apreciámos” o Muro que nos seguiu até à bela Potsdam. Na sensação de saída do bloco socialista, dominava, apesar da “miséria capitalista” a cujo seio regressávamos, um imenso alívio de fim de claustrofobia própria de habitação em espaços aprisionados.
Se agora me lembro desta velha aventura turística, a culpa é da emoção de ter visto a forma como a abolição de fronteiras que leva o espaço Schengen até ao Báltico despoletou em cidadãos entusiastas numa aparente festa serôdia pelo levantar de barreiras a dividir povos e nações, alargando a Europa por, simplesmente, a europeizar mais. É que, dificilmente, quem lá não passou antes saberá apreciar o que representa o passar tranquilo de fronteiras. Ali, onde uma rede de ditaduras policiadas e comandadas por um centro, metia povos em redis vigiados, a única igualdade que o comunismo “acrescentou”.
Do sorriso irónico da chanceler de uma das pátrias da tecnologia a ouvir, com a benevolência que um provinciano contente concita, a exaltação de Sócrates, na cerimónia do alargamento do espaço Schengen, à excelência tecnológica de ponta de Portugal por ter fornecido um qualquer software para combinação de dados. Esteve bem Ângela Merkel, pois à chancelaria alemã fica bem a condescendência paciente com os arroubos patrioteiros dos “mais pequenos”, inchados nos seus “feitos”, mesmo que perfeitamente avulsos.
Nem uma eminência académica resiste aos apelos do consumismo editorial. Com a boa desculpa, quase sempre confirmada, que não descura o conteúdo do publicado em seu nome, não permitindo seu mau uso. Ela dá o verbo em resumo de sapiência, a editora faz o resto, o consumidor paga, para ler ou como prenda, negócio feito. Tudo bem, tudo perfeito. Antes assim que acartar as resmas dos telegénicos com descargas literárias compulsivas.
É deveras curiosa a visitação a Lisboa feita por Fernando Rosas na sua foto-geografia revolucionária comentada (*). Com uma descrição completa das convulsões que, mesmo adormecidas, fizeram a identidade da cidade. Permitindo comparar os locais de hoje com o que foram antes quando furados por balas, entulhados com barricadas ou pisados por canhões e pelo povo marcial com armas emprestadas por marinheiros. No fundo, a Lisboa que é reverso da pacatez neo-burguesa que, para a maioria, é a imagem retida da capital. Mas que não seria o que é se palco compulsivo de revoluções não tivesse sido. E admirável o apontar das linhas de conservação dos confrontos entre classes armadas como constância no ritual revolucionário – os governos acantonados no mesmo quartel de refúgio, o povo a ir aos mesmos sítios buscando armas, dando apoios ou sabotando acções, com tudo a decidir-se no conflito maior entre a Rotunda e o Tejo. O grande senão da obra tem a ver com o conceito estreito que foi vazado de revolução, reduzindo-a à condição necessária de haver fogachada e estoiros de granadas, com castrenses a desfilar e mortos e feridos para contar. Fosse o conceito mais amplo, como julgo que devia ser, e o povo a comemorar a vitória dos “aliados” em 1945, Humberto Delgado a incendiar Lisboa em 1958 e as calçadas da baixa pombalina a saltarem no 1º de Maio de 1962 fariam boas companhias aos fraticídios republicanos, caminhadas revolucionárias e reaccionárias, mais os desesperos dos reviralhos, todos tão bem tratados e retratados.
Concebida como “prenda de Natal” para a malta de esquerda, a da nostalgia revolucionária, o resultado é satisfatoriamente feliz. Cara mas recomendável.
(*) – “Lisboa Revolucionária, roteiro dos confrontos armados de século XX”, Fernando Rosas, Edições Tinta da China.
Aqui, o Cavalheiro d’Oliveira fala bem, embora já tenha falado melhor. Deu-lhe para uma de estadista, daqueles que, de régua e esquadro desembainhadas, fazem a quadrícula dos países versus povos, etnias, culturas e vontades. Como aqueles outros que, em Conferências que a história nos guarda na memória, para garantia de paz e equilíbrio, construíram países e os impuseram, como, em exemplos, a Checoslováquia e a Jugoslávia. Ou como outros ainda, os de Ialta, que definiram o que devia ser a Polónia passada de vencida a liberta tutelada (encolhendo para a Rússia e compensando com bocados alemães), ou a Roménia que viajou de vencedora até vencida (comendo à Hungria o que perdeu para a Rússia), ou a Alemanha, a grande vencedora transformada em grande vencida, a que não só encolheu em vários lados como teve de absorver os muitos milhões de retornados corridos a pontapé pela Ialta consumada. Mais o grande tabu de que todos os arranjos de vencedores eram ponto assente quanto a fronteiras. Pela paz, pelo equilíbrio e pelo risco dos maus exemplos e dos processos em cadeia.
De facto, Berlim, Ialta e a guerra fria, reconfigurada a Europa, cristalizada em sílica trabalhada da Boémia em vários fóruns de vencedores, ofereceu a ditaduras a gestão das fronteiras críticas. E os gajos tiveram mão rija a lidar com as veleidades relapsas, com o único senão de não conseguirem durar sempre. Caídas as ditaduras do equilíbrio, surgem os problemas. E salta o ai Jesus que vem aí o dominó mais o seu conhecido efeito. De caco em caco, tarda nada temos problemas no Algarve ou na Ribeira portuense.
Mas, por mim, o que acho mais admirável nesta Europa actual (cada vez mais amanuense por mor de Bruxelas), quando as utopias, as réguas e os compassos se desusam por mau uso, e que me perdoe o Cavalheiro d’Oliveira, é que os do Kosovo, sabendo perfeitamente que o seu país não é viável (Tito e Milosevic disso trataram), queiram ser independentes e sobre isso não admitam discussão. E vão ser. Pese embora (admirável utopia nova), tratarem primeiro da libido da independência e só depois dos negócios da solvência. Irracionais estes kosovares. E perigosos, pelo exemplo inflamatório. Mas são kosovares. Essa é que é essa.
Há qualquer coisa de muito importante, talvez decisivo, que me anda a escapar na política europeia e internacional. É que não sei quem é, o que faz ou fez, Carla Bruni, a personalidade de quem tantos falam e tanto se fala. Quem me ajuda?
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Adenda: Obrigado pelas ajudas. OK, já percebi.
Um dia, o mito, este mito, teria de vir abaixo. Refiro-me ao mito plasmado pela figura gigantesca de Mandela e que prenunciava uma África do Sul fraterna, rica e próspera, capaz de arrastar a África corroída, adulta de ideologias, com uma capacidade infinda de sarar feridas, dando lições sábias de um humanismo social a nascer dos espinhos de um dos maiores anacronismos construídos pelo domínio de homens sobre homens, heroificado no perdão superior dos antigos vencidos. E tantos fomos os que desejámos essa África mítica construída à sombra de Mandela que esquecemos que o pior do colonialismo, mais as suas construções simétricas (Neto, Dos Santos, Savimbi, Machel, Chissano, Dlakhama e outros), andaram por ali ou ali perto e que Mugabe existia e existe. Confundiu-se Mandela e ANC, com o Herói a esconder as espirais de poderes armadilhados e perdeu-se o sentido das lógicas diferentes que se estavam, artificialmente, a fundir. Agora, infelizmente, não falta saber mais que verificar se o mito do ANC morre ou não de pé. Não evitando uma certa tristeza ao ter de se confirmar que as nódoas têm atracção especial pelo melhor pano, incluindo o melhor pano africano.
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