Seria crítico para a democracia portuguesa que se verificasse um qualquer retrocesso nas garantias para o pleno exercício dos direitos sindicais, incluindo o sacro direito à greve. Felizmente, não está no horizonte político visível qualquer panorama que condicione o princípio destas conquistas democráticas basilares no nosso regime.
Mas a qualidade do exercício destes direitos, até pela autonomia que é apanágio teórico-estruturante da prática sindical, para além dos efeitos das dinâmicas que contrariam a afirmação dos direitos dos trabalhadores (pelo patronato, pelo Estado, pelas forças retrógradas que gostariam de domesticar o mundo laboral), depende da forma como o sindicalismo realiza a praxis dos direitos sindicais. Porque nem todo o anti-sindicalismo é exógeno ao movimento sindical e este pode ser tentado a actos suicidários.
Esta última greve geral, este monumental fiasco de greve geral, pode ter representado um forte contributo da CGTP não só para o descrédito da significância da componente sindical na sociedade civil como, desqualificando o uso do direito à greve, uma oferta de bandeja aos que pretendem rebaixar o exercício dos direitos sindicais. Adicionando ainda, para os trabalhadores, um ónus de pessimismo acrescentado quando às possibilidades de, por via colectiva e de classe, sindicalmente, protegerem os seus direitos e melhorar as degradadas condições de trabalho. Provavelmente, se a democracia sindical funcionasse no seio dos Sindicatos (em vez do contumaz centralismo democrático), os dirigentes da CGTP estariam agora de cabeça baixa a suportar a forte crítica dos sindicalizados pelo mal que fez ao sindicalismo português esta acção voluntarista mal amanhada e cujas justificações, objectivas e subjectivas, se resumiram a pouco mais que cumprir a agenda política do PCP. Também pelo bónus oferecido ao governo PS/Sócrates na forma de descrédito da contestação.
A fusão acelerada PCP/CGTP, em marcha desde que Jerónimo de Sousa é SG do PCP, veio, como era previsível, plantar eucaliptos na mata em crise, por envelhecimento e pela reprodução de chavões de dogmatismo social, do sindicalismo português, secando-a. Foi mais que visível que a greve geral foi imposta pelo PCP à CGTP e que toda a dinâmica de mobilização para a greve se processou num quadro de militância partidária (como o “Avante” e os discursos de Jerónimo fartamente ilustraram), tentando substituir a realidade pelos desejos de alimentar uma dinâmica revolucionária que contrarie as opções resultantes do voto popular (ainda e sempre o mesmo conflito nunca resolvido pelo PCP entre a dinâmica revolucionário e a dinâmica eleitoral e que vem das mitologias teorizadas por Cunhal durante o PREC). E só na última semana antes da greve, em disfarce de última hora e por desespero face ao fracasso á vista, se viu o PCP recolher-se um pouco para bastidores, enquanto fazia o “trabalho de casa” nas suas células, dando a ribalta da propaganda e da mobilização aos dirigentes da CGTP, tentando pintar a greve de acto sindicalista.
Dramático e patético foi o papel de Carvalho da Silva, quase de merecer pena. A sua energia mobilizadora e lutadora da ponta final, ele que foi obrigado contrariado a alinhar na greve imposta, foi uma triste representação de quem tenta salvar a face perante o inelutável e inevitável, esgravatando energias de sublimação, numa patética “fuga para a frente”. Dramático ainda porque sabendo-se que o PCP espreita a hora para o afastar da liderança da CGTP, este fracasso, que debalde tentou evitar e depois foi forçado a ter de representar o papel de seu mobilizador mor, e assim ser o principal responsável quanto aos resultados, este mesmo fiasco pode ser um motivo extra para consumar e acelerar o seu afastamento, numa espécie de “25 de Novembro sindical”.
Finalmente, uma última ilação incontornável: a CGTP está perante um paradoxo na sua natureza sindical. Definindo-se pelo sindicalismo de classe, com uma componente directiva e discursiva fortemente obreirista, dogmática no vanguardismo proletário, acaba por se ver reduzida a uma federação congregadora de trabalhadores de serviços públicos, em que a maioria do operariado do país lhe passa ao lado. Vivendo do Estado, o Estado-patrão, o Estado capitalista, na exacta medida em que o seu poder de mobilização se esgota em parte da área dos assalariados dos serviços das administrações públicas central e local.
O Manuel Correia deu corda a algumas questões que aqui eu tinha colocado. Assim:
Aquelas pessoas que João Tunes enrola na capa de uma espécie de “solidão de esquerda”, e entre as quais muito provavelmente se considera, prefiguram, porventura, a nova relação que os partidos, para sobreviverem, deverão estabelecer com os indivíduos susceptíveis de os apoiarem, no futuro, caso a caso, causa a causa, passo a passo e voto a voto.
Os militantes ligados aos partidos por laços legionários, meio militares meio sociedades secretas, impedidos de criticarem os líderes, de condenarem os erros mais espalhafatosos, obrigados a remeterem-se a um silêncio comprometedor ou ao discurso tolo das justificações forçadas, estão a desaparecer.
As organizações políticas, incluindo os partidos, não. Vão transformar-se. Os perfis dos “militantes” estão a alterar-se velozmente. Orquestrando a nova moda dos partidários mais descomprometidos, alguns comentadores têm ensaiado uma demonstração, ainda frágil, mas sugestiva.
Dir-se-ia que uns pensam pelas suas cabeças e os outros também..., só que não o podem revelar...
As liberdades e os direitos individuais foram deixando de caber nas relações partidárias tradicionais.
As pessoas sem obediência partidária estrita estão, em numerosos casos, a jogar papeis determinantes. Poderão, muito provavelmente, dar uma contribuição para alterações efectivas nos partidos.
Por experiência própria e elevada atenção aos desaires alheios, atrevo-me a alvitrar que esta postura poderá ser mais eficaz do que a de quem continua a pensar, insistentemente, que é “por dentro” que as comunidades partidárias se reformam.
É uma questão simples: a afirmação da cidadania torna o vínculo partidário menos privado e a obediência partidária mais problemática.
Por isso, os partidos estão a ficar reduzidos, a pouco e pouco, aos votos que conseguem conquistar e a um aparelho clientelar cada vez mais fechado.
Se procurarmos com atenção, vem tudo nos jornais.
Não queria deixar passar ao lado este contributo que alimenta uma reflexão que reputo de interessante e que muitas vezes é arredada no comodismo das etiquetas e dos chavões condenatórios ou salvíficos. Aqui fica, pois, a chamada de atenção para o texto do Manuel Correia. A continuação da conversa seguirá mais tarde quando tiver tempo para dedicar a uma reflexão mais aturada sobre o tema (entretanto, como muleta, vou ver se consigo encontrar disponível o texto da intervenção de Manuel Villaverde Cabral ontem feita na apresentação pública do livro “Conseguir o Impossível” sobre a campanha de Manuel Alegre e que pode dar achegas importantes ao fundo desta problemática).
A notícia é a esperada e longamente preparada pelo espectáculo mediático:
Kate e Gerry McCann estiveram no Vaticano. Antes da audiência privada, o Papa cumprimentou e trocou algumas palavras com os pais de Madeleine. Em plena Praça de S.Pedro, Bento XVI benzeu a fotografia da criança desaparecida há 27 dias.
Agora, a Polícia Judiciária deixou de ter desculpas ou qualquer justificação para não encontrar, rapidamente e em força, a pequena Madeleine, capturando o malandro “caucasiano”. Porque é oportunidade quase única: ter um Papa a colaborar com a polícia. Quando a televisão estava lá, em cima do acontecimento.
Em Coimbra, amanhã, há uma excelente forma de contactar com a obra de quem revelou (Joana Lopes, na imagem), com enorme talento e em circunstanciado testemunho, o que foi a luta dos católicos que, pela sua fé e pela sua Igreja, contra o fascismo e o colonialismo, combateram, com engenho e valentia, a ignomínia da dupla "Salazar e Cerejeira":
A livraria Almedina Estádio apresenta “Entre as Brumas da Memória”, da autoria de Joana Lopes, numa sessão que terá lugar em Coimbra, no dia 31 de Maio (Quinta-feira), às 21h15, e contará com a apresentação de Rui Bebiano, professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, e José Dias, presidente do Conselho da Cidade de Coimbra.
E que melhor cidade que Coimbra para acolher este marcante evento? Não foi lá que eles, Salazar e Cerejeira, foram colegas e fizeram amizade sólida que perdurou enquanto foram os dois pilares ideológicos, e do poder absoluto, em que assentou o longo regime opressor que tirou a luz ao nosso povo durante décadas, transformando Cristo num blasfemo a fazer a saudação romana do braço estendido?
(notícia desenvolvida aqui)
Que o Rui Bebiano e a Cristina Vieira, por favor, não deglutam em vaidades vãs as honras que tiveram em me medalharem a preceito. Porque a vossa generosidade premiadora foi ultrapassada. É que acabei de receber a Ordem Jerónimo-Estaline para “o melhor blog pró-governo do PS que se podia arranjar”, tendo em conta as minhas habilidades para “referências progressistas e antifascistas em barda são usadas apenas como a conveniente cortina de bambu para esconder as substâncias mais fortes: constantes ataques ao PCP e quase nem uma crítica ao Governo do PS e de Sócrates” e que me foram atribuídas por um vigilante comentador. E como se tal honra não fosse suficiente, condenou-me ele, prematuramente segundo minha declarada intenção (se conseguir deixar de fumar), ao estado terminal do “fim de percurso”. O que, aliás, só condiz com a história da condecoração, dando coerência ao propósito.
Aqui está exemplo como um único inimigo encapotado consegue ser ainda mais gratificante que dois bons e condescendentes amigos virtuais conseguem sê-lo. Que estes me desculpem, mas eu, quanto a medalhas, é doçaria a que nunca consigo dizer não. E esta, a do companheiro vasco, trazia cereja.
African
African’t
Africouldn’t
Afrishouldn’t
Africould’ve
Africould
(versos de Jean-Michel Basquiat, recordados, em celebração, pelo Carlos Sousa Almeida, que só me resta partilhar)
Imagem: Em foto de Luís Graça, Leopoldo Amado, numa sala de doutoramentos da reitoria da Universidade Clássica de Lisboa, rodeado de familiares, após ter terminado a defesa da sua tese de doutoramento. Demonstrando que, contra os estereótipos redutores, há “outra África”, além daquela que - pela metralha - quisemos impedir o acesso à independência e hoje se arrasta nos subúrbios a caminho das obras, das limpezas e dos fogões de cozinha, aquela que, no exemplo, celebra orgulho por saber demonstrado nas nossas euro-universidades plantadas na antiga sede do poder colonial.
Marx, Engels, Lenine, Estaline e Bento Gonçalves, lá no limbo antes ocupado pelas crianças, podem dormir descansados. A classe operária, dirigida por Jerónimo, está quase no poder:
“A greve geral convocada pela CGTP tem níveis de adesão diferenciados nos vários sectores de actividade, sendo mais visíveis na recolha do lixo, nas consultas hospitalares, nas escolas e nos transportes.”
Imagem: Quadro de Tarsila do Amaral, com o título “Operários”
Corrigenda: ao contrário do que escrevi de passagem no artigo do Público, o Poceirão não fica no concelho de Almada, mas sim no de Palmela. Embora seja evidente o lapso, aqui fica a respectiva correcção. (aqui)
Não tem mal, caro Vital Moreira. Passado o Tejo e entrando-se no deserto, com tanta areia, mais as miragens, as tendas de beduínos confundem-se com as dos tuaregues. E para distinguir um camelo de um dromedário, é preciso bom golpe de vista para contar as bossas. As pirâmides sim, essas avistam-se da colina universitária de Coimbra.
Desses dois anos (1969-1971) enfiado dentro de um fato camuflado a olhar gentes e bolanhas num país ocupado e metralhado, gastando - num equivocado paradoxo - tempos que seriam bem melhor aproveitados a podar a árvore da vida quando esta me oferecia seiva para dar e vender, a apanhar porrada de criar bicho, mandado por um general educado pelos nazis em Estalinegrado e que nunca perdeu o ademane de actor em artes de militarismo prussiano que sinalizava com um vidrinho pendurado num olho, auto-reduzindo-me à expressão mínima de jovem mal fardado feito parvo e perdido a mando colonial de um país a mudar de ditador sem que a lucidez acordasse e varresse os podres do fascismo tuga de raiz católico-clerical, estou finalmente vingado. Porque o Leopoldo pagou-me as contas e deixou-me em dia ao tirar-me da garganta a espinha atravessada da guerra colonial.
Ao olhar e ouvir o presidente de um júri de doutoramentos da Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa comunicar que o Leopoldo - que antes ali tinha depositado e brilhantemente defendido o seu labor de tese sobre a guerra na Guiné, acrescentando história à memória, permitindo que a ignomínia daquela guerra seja vista pelos dois lados e outros que se queiram acrescentar -, era um novo Doutor em História Contemporânea aprovado com distinção, senti-me com as contas feitas. E logo ali, naquela solenidade académica herdada do velho regime, feita para lustre dos bonzos académicos que engraxavam as botas do salazarismo tardio e onde formatavam novas fornadas de elites para as orgias de domínio nos banquetes da opressão fascista-colonial, mas cuja arquitectura (o que aquela Cidade Universitária tem para contar…) muitas vezes escutou os gritos de revolta estudantil a preferir a aventura da liberdade ao bolor da reprodução de castas e os seus muitos passos ligeiros e acelerados da fuga ao trote das botas cardadas da polícia de choque que guardava o regime da iniquidade, um historiador, um guineense, um preto bem preto, um humilde e sábio africano enobrecido com a grandeza da dignidade africana que desafia, pelo saber, a arrogância do academismo eurocêntrico, trazendo consigo a herança da sabedoria longa feita praxis do génio de Amílcar Cabral, desdobrando em tese demonstrada como é que um grupo de nacionalistas africanos derrotou a poderosa máquina do exército colonial português, sem esperar pelo 25 de Abril, pois quando ele se deu já a Guiné-Bissau era um país independente reconhecido por mais Estados que os que tinham relações diplomáticas com o decrépito Estado de Portugal. E quando aquela tão clássica Universidade doutorou o Leopoldo, foi como se Spínola, o grandioso General Spínola, lá no sossego do seu túmulo, levasse com a sacudidela da segunda derrota na Guiné. A definitiva, a que lhe pode dar, se ele a aceitar, o descanso eterno.
Caro Doutor Leopoldo Amado, guineense de cepa e meu caro amigo, obrigado, muito obrigado. Pagaste a minha conta, ela está paga. Falta o livro, venha o livro.
Na apresentação do último livro de Raimundo Narciso (*), o seu camarada e amigo Mário Lino (**) teve a corajosa ousadia intelectual e política de enfrentar a questão de, vista à distância, como é que os ex-dissidentes olham o seu passado partidário quando militaram nas fileiras do PCP. E, julgando, naturalmente em boa-fé e melhor convicção, responder pela maioria dos ex-dissidentes, correspondeu assim à questão que ele próprio colocou no ar (e que, por sinal, RN não levanta no seu livro):
De tudo isto o que fica? Foi a militância no PCP uma grande desilusão, um grande embuste?
Conheço um grande número de ex-membros do PCP que viveram estes acontecimentos, mas, salvo muito raras excepções, e tal como eu ou, estou convicto, o Raimundo Narciso, nenhum se mostra arrependido dos anos dedicados à militância neste Partido.
Reconhecemos, certamente, grandes defeitos ao PCP, mas também encontramos na nossa experiência partidária grandes virtudes.
Para todos foi, certamente, exaltante a defesa de ideais nobres de transformação da sociedade, de forma a torná-la mais justa, mais solidária, sem exploração do homem pelo homem. Para todos foi marcante o espírito de dedicação, de despojamento, de abnegação, de coragem, de sacrifício evidenciado pela generalidade do colectivo partidário. Para todos foi empolgante a luta por causas que consideram justas e por princípios que consideram fundamentais. Para todos foi determinante o sentimento de pertença a um colectivo mobilizador da concretização destes objectivos.
Mas todos reconhecem também a falência do caminho seguido pelo PCP para concretizar os seus objectivos mais nobres de vida e de luta. Todos estão cientes da desactualização e falência de conceitos como o centralismo democrático, a ditadura do proletariado ou o carácter de vanguarda do partido. Todos repudiam o autoritarismo e o despotismo iluminado exercido pela direcção do Partido como forma correcta de mobilização do colectivo partidário. Todos reconhecem a importância decisiva da liberdade individual e da democracia no partido e na sociedade, como a melhor forma do exercício da vontade colectiva e da responsabilidade social. Todos partilham a convicção de que a vida interna e as práticas do partido devem reflectir o que queremos para a sociedade.
Por isso, grande parte dos ex-membros do PCP mantêm intactas as suas convicções, o seu empenho na luta pelas causas que marcaram, desde a sua juventude, o seu pensamento e a sua acção, os mais nobres traços de carácter que desenvolveram e interiorizaram durante a sua passagem pelo PCP.
Afinal, para mim, e certamente para o Raimundo e para a maior parte de vós, os objectivos de luta mantêm-se os mesmos. E se continuamos a lutar é porque estamos vivos.
A questão levantada por Mário Lino é oportuníssima, sobretudo para os que observaram e observam as “dissidências” da “parte de fora”(ou seja, à parte do grupo que participou nas movimentações). Sobrando uma série de ideias feitas consoante as conveniências e os interesses político-partidários. Para os que se mantiveram fiéis, a marca de “pecado original” dá um consolador sossego sobre o que estava em causa no momento da dissidência – eram já “direitistas” que estavam “a mais” e mexeram-se porque “se sentiram a mais” e quiseram arrastar consigo o máximo de danos no barco prestes a ser abandonado (Zita Seabra já seria PSD desde a adolescência, Raimundo Narciso e Mário Lino já estavam perdidos de amores contidos pelo PS ainda antes deste ter sido fundado, Miguel Portas era desde os tempos de estudante um bloquista controlado a quem só faltava conhecer Louçã e cair-lhe nas tentações esquerdistas). E, assim, segundo estes, a purga derivada da dissidência só purificou o PCP de gente que lá andava mas estava fora do contexto, tendo-se enganado e enganado a direcção sobre o partido certo desses “penduras”. Para outros, os cáusticos da observação pelo prisma da exigência moral, ética e da exigência da coerência, o juízo não é mais abonatório – ou mentem agora, sendo revolucionários a fazerem-se de democratas, ou mentiram antes, sendo democratas a fazerem-se de revolucionários. Num caso ou noutro, perto ou em cheio no oportunismo dos “troca-tintas” consoante os ventos e as conveniências. A que acresce o silenciamento sobre os muitos que, tendo saído do PCP, se mantiveram fora de re-encaminhamentos partidários (de que é exemplo notório, o percurso autónomo de António Graça até ao fim dos seus dias, ele que foi um dos mais caústicos e intervenientes entre os líderes da dissidência da “terceira via”).
Para estas questões, as respostas de Mário Lino não podiam ser piores. Porque são uma mistificação completa, um exercício infeliz de harmonizar o contraditório. Para mais, sendo Mário Lino um ministro em exercício neste governo deste PS, como pode dizer que hoje, com a política governamental para que contribui com o seu corpo ministerial, acrescentando-lhe o valor de um notável espírito de humor que muito diverte os portugueses, “mantem intactas as suas convicções, o seu empenho na luta pelas causas que marcaram, desde a sua juventude, o seu pensamento e a sua acção, os mais nobres traços de carácter que desenvolveram e interiorizaram durante a sua passagem pelo PCP” e que, politicamente, “os objectivos de luta mantêm-se os mesmos”?
A mistificação de Mário Lino assenta no expediente de separar as práticas partidárias das “convicções” e dos “objectivos de luta”, particularmente absurdo no caso extremado do PCP, onde a ideologia e a organicidade se confundem em absoluto e não funcionam em níveis minimamente dissonantes. Um “partido revolucionário” como sempre foi e continua a ser o PCP, não pode coabitar com práticas democráticas internas ou externas, excepto nos exercícios de duplicidade táctico-propagandística nas fases de refluxo (como a actual, já apodrecida por ter nascido em 25 de Novembro de 1975, e que o populismo "à Jerónimo" tenta disfarçar). Ou o leninismo não passa de uma batata. E por não o ser é que os dissidentes, antes de o serem, acreditavam no modelo revolucionário e, por isso mesmo, aceitavam e colaboravam com práticas partidárias não democráticas, admitindo como integralmente legítimas as de tipo revolucionário vanguardista.
Aparentemente, o que os dissidentes contestaram em primeiro lugar foram as práticas internas de atropelo ao viver partidário minimamente democrático. Mas esta formulação só pode ter advindo de uma profunda inflexão ideológica, mesmo que íntima, mitigada e progressiva, por contestação do modelo revolucionário e conversão à intervenção reformista no quadro da vida política democrática, numa qualquer espécie de “social-democratização”. E como a reconversão ideológica e política radical do PCP se apresentava impraticável, impensável até em termos de formulação, toda a táctica de contestação orientou-se para os procedimentos e os atropelos que, nas vésperas, não se contestavam e com que se era condescendente e conivente (upa, upa, no caso de membros do CC). E com o desenrolar do processo, a aversão pelas práticas estalinistas foi alimentando a reconversão ideológica e vice-versa. Estude-se o PCUS versus glanost e perestroika e está tudo lá escarrapachado a uma escala gigantesca e dramática. No nosso caso doméstico, a dinâmica da distanciação dos métodos e ideologias revolucionários, alimentando-se reciprocamente, levou a que os ex-dissidentes percorressem os seus caminhos posteriores (que acredito plenamente, não estavam pré-determinados em nenhum dos casos), uns para os braços do PS, outros para o Bloco, mais uns tantos para a “solidão de esquerda”.
Dizer, como disse Mário Lino, que quando estava no PCP e está agora no governo PS, incluindo os percursos intermédios, continua a mesma “defesa de ideais nobres de transformação da sociedade, de forma a torná-la mais justa, mais solidária, sem exploração do homem pelo homem”, é uma mera justificação optimista de pseudo coerência como se a formulação tivesse a mínima semelhança de conteúdo vista no PCP ou no PS. Afinal, em justiça à inteligência de Mário Lino, julgo que se resume a um desejo consciente de dormir com o sono da inocência mesmo que sob a anestesia de uma trapaça. Por mim, prefiro uma das suas excelentes piadas recheadas de bom humor.
(*) – “Alvaro Cunhal e a dissidência da terceira via”, Raimundo Narciso, Editora Âmbar
(**) O texto integral da intervenção de Mário Lino pode ser lida aqui.
O Isidoro Machede fala a propósito desta interessante foto do “desmesurado peso do factor energético”. E tem razão, uma bateria pesa para burro. Mas eu alterno, comentando que a míngua aguça não só o engenho como a medida da nobreza a justificar o esforço. Esforço que nunca é ridículo em si mesmo, antes enobrece, como Paulo Portas lembrou na Madeira e citando Herr Auschwitz. Sobretudo quando, em pico alto de desafio á argúcia inventiva, automóvel não há, ou já não há, e o relato assume carácter de urgência, com o nosso clube a ligar-nos ao mundo por via da globalização portátil. E nesta competitividade paranóica que engalfinha bolsas de acções, o africano aprendeu que a solução melhor, a sua máxima capacidade de concorrer com a fartura, passa pela fórmula mágica do “não tem problema”, pulando e avançando como uma bola de criança, no bom dizer do poeta.
Passaram 30 anos sobre uma das mais traumáticas e sangrentas lutas pelo poder nos movimentos-partidos que emergiram nas independências das antigas colónias portuguesas, organizações estas vindas directamente das guerras de libertação e transformadas repentinamente de organizações guerrilheiras, em que o figurino militar predominava, para organizações políticas mantendo uma forte componente militar e a tomarem posse dos Estados criados com as independências, socorrendo-se de um marxismo-leninismo colado à pressa. Refiro-me, é claro, ao “golpe” de 27 de Maio de 1977 e suas consequências.
Na tríade dos movimentos-partidos mais importantes (MPLA, Frelimo e PAIGC), sem dúvida que o MPLA era o que se apresentava mais frágil, com um contexto de ingerências mais contundentes, estava profundamente minado por rivalidades internas e cisões e possuía a liderança mais problemática (Agostinho Neto tinha tanto de carisma como de perfídia autoritária). E se a independência de Angola se verificou em 1975 e com o domínio exclusivo do poder pelo MPLA, isso deveu-se essencialmente a que as enormes fragilidades deste Movimento foram compensadas com sucesso pela “ajuda internacionalista armada” (Cuba e URSS, à cabeça) e pelo apoio das “forças progressistas portuguesas” (parte do MFA e PCP). Assim, a tomada do poder em Luanda pelo MPLA e a sua posterior vitória na guerra civil que se seguiu, é, mais que mérito de Agostinho Neto e do MPLA, um dos poucos casos em que, na “guerra fria” de então (no caso: uma guerra bem “quente”), o “campo soviético” derrotou o “campo sino-imperialista” (apoiante da FNLA e da UNITA). Para, pouco depois, com pleno envolvimento soviético-cubano na defesa armada do poder do MPLA, surgir uma nova e grave cisão na cúpula do MPLA, em que se enfrentaram a dupla Nito Alves / Zé Van-Dúnem e Agostinho Neto, culminando numa tentativa de levantamento e golpe de estado. E aqui, surpreendentemente, talvez caso único, como se quisessem desbaratar imediatamente os ganhos “anti-imperialistas” que era a colocação de Angola na órbita do mundo comunista, os aliados “socialistas” de Luanda dividem-se pelos dois grupos em confronto – os soviéticos apoiam os “nitistas” (perdendo a aposta) e os cubanos defendem (e salvam) Agostinho Neto. Muito mistério aguarda a abertura de arquivos para se vir a saber como foi possível que, em 1977, Brejnev não tenha telefonado a Fidel Castro para o informar do golpe que o KGB preparava contra Neto, concertando posições, e Fidel Castro não tenha telefonado primeiro a Brejnev a avisá-lo que ia mandar as tropas cubanas fazer fracassar o golpe e conservar Neto no poder, ajudando a dizimar os angolanos pró-soviéticos. [importantes “dicas” são reveladas no DN de ontem numa entrevista com um antigo oficial cubano, Rafael del Pino, que estava então em Angola]
Um mistério adicional que também sobra desta história nebulosa do golpe e consequente repressão é se houve ou não um “dedo português”, ou vários, espetados nos acontecimentos. Havendo fortes indícios que sim, somam-se as perplexidades. É que o PCP era um forte apoiante de Agostinho Neto (foi o PCP que organizou e realizou a sua fuga de Portugal e regresso ao comando do MPLA) e Lúcio Lara, seu adjunto, militara em Portugal, participara no V Congresso do PCP e era visto como um ortodoxo da máxima confiança. Mas, no lado dos golpistas, surge, com força incontornável, a figura de Sita Valles que desempenhou importante papel na agitação, preparação e execução da tentativa de golpe, sendo casada com um dos mais importantes golpistas (Zé Van-Dúnem), tinha regressado a Angola, onde nascera, após ter sido uma destacada dirigente dos estudantes comunistas em Portugal, num inopinado “regresso às origens”. E continua igualmente envolto em mistério o real papel e eventuais equívocos associados de um antigo membro destacado do MFA (Costa Martins) que, refugiado em Angola após o 25 de Novembro de 1975, foi preso e sujeito a maus tratos pela polícia de Neto por alegado envolvimento seu na conjura, tendo escapado do pelotão de execução e regressado a Portugal.
Certo é que o golpe “nitista” foi desencadeado e assumiu, de imediato, uma enorme violência por parte dos golpistas. A que correspondeu uma repressão selvática e generalizada, saldada por torturas e dezenas de milhar de execuções sumárias, com a maioria dos cadáveres ainda hoje insepultos e em valas comuns. E, passados trinta anos, mantêm-se a iniquidade, esta enorme mancha sobre o MPLA saído da repressão ao golpe, com o poder angolano a recusar-se a selar com honra e dignidade as sequelas, nomeadamente emitindo certidões de óbito dos muitos assassinados e permitir que as suas famílias recuperem os corpos e procedam aos respectivos funerais. Entre os muitos milhares de “cadáveres desaparecidos”, conta-se o da carismática Sita Valles, a dirigente da UEC/PCP, adjunta de Zita Seabra, como era igualmente Pina Moura, que, nas universidades portuguesas, no período imediato após o 25 de Abril, galvanizou muitas militâncias comunistas entre os estudantes portugueses [sobre a figura de Sita Valles, ler este artigo].
Angola necessita de resolver o “problema 27 de Maio” e sarar as feridas que ainda ali sangram. Os historiadores têm muitos caminhos fascinantes a desbravar no imbróglio dos mistérios associados ao golpe e à repressão. Todos à espera de vontades de reconciliação da família angolana e que os arquivos se abram. Para que, da dor e do mistério, se passe à catarse e ao conhecimento desse trágico e sangrento episódio da história angolana (e que, provavelmente, inclui uma página luso-angolana e muitas páginas sobre as formas como a URSS e Cuba geriram, entre si, umas vezes bem e outras muito mal, a geoestratégia dos domínios sobre África).
Imagens: Fotos de Nito Alves, Sita Valles e Zé Van-Dúnem, o “trio” no comando dos golpistas de 27 de Maio de 1977, hoje reduzidos a três restos mortais ocultados e a aguardarem sepultura condigna.
Alexandra Prado Coelho (APC) desenvolveu um extenso e competente artigo no último suplemento “ípsilon” do “Público” dedicado à nova vaga de literatura portuguesa sobre as nossas raízes africanas. E situa o previsível caminho de sucesso do romance de estreia de Francisco Camacho [“Niassa” (*)] na neo-literatura pós-colonial inaugurada com um livro de Francisco José Viegas (“Lourenço Marques”). Tratar-se-á, segundo APC, de uma superação, por via literária, das marcas dos traumas da colonização/descolonização como da guerra colonial (segundo APC, essa espécie de via gasta e esgotada). Neste regresso às origens africanistas que amarram, mais ou menos conscientemente, a maioria dos portugueses, nessa ideia do “estivemos todos lá”, junta-se a desculpabilização desse esperado regresso a “África, sem culpa”.
Se pressa mais vontade fossem boas companheiras e melhores auxiliares, APC não só teria razão como se lhe ficaria a dever o diagnóstico certeiro de termos catarse feita e para a frente é que é caminho. Não o creio, contudo. Por razões que indiquei antes e por outras acrescentadas pelo agora celebrado livro de Francisco Camacho. E se o livro de Francisco José Viegas, o tal percursor da “nova vaga neo-africanista”, fraquíssimo e falhado do ponto de vista da criação literária (o que não é o caso deste “Niassa”, muitíssimo mais valioso neste aspecto, autêntico caso bem sucedido de estreia trepidante no romance), foi o iniciador paradigmático desse olhar de superioridade moral de direita perante a pós-descolonização, onde avulta o criticismo cínico condenatório da forma como os africanos construíram e constroem as suas independências, Camacho não lhe fica atrás, pelo contrário. Curiosamente, centrando a caracterização da perfídia colonial em Angola (o massacre da baixa do Cassanje), mas com o ónus centrado nos hiper-colonialistas belgas da Cotonang e com os colonos portugueses até a fazerem boa figura, salta para Moçambique (e por cima da guerra colonial) para obter o contraponto nos desmandos da administração e do modo de vida habitual da nomenklatura corrupta moçambicana. Claro que quem conhece (ou leia as notícias) a realidade dos novos estados africanos e as pós-independências, sabe que Camacho, como antes Viegas, não inventam nada e que já foi escrito, por exemplo, por Pepetela, ou aludido por Mia Couto e outros. Como se sabe da monstruosidade que foi a “Operação Produção”, mandada por Samora e organizada por Guebuza, na deportação “à Pol Pot” de parte da população urbana de Maputo para o Niassa. Como se sabe do flagelo da rapina e crime que recheiam a construção da “acumulação capitalista acelerada e selvagem” nas antigas colónias portuguesas. E muito mais, do pior. Tanto que a muitos romances profícuos podem servir de excelente motivo. A questão, a meu ver, não está aqui, nesta realidade de construção de nações assente na rapina (e quantos estados se construíram sem ela?) ou, no caso vertente, Moçambique, numa rapina de re-apropriação que destrói mais que aquilo que acumula. O problema começa, sim, quando, por insuficiência da localização do passado de rapina e iniquidades coloniais e dessa monstruosidade maior chamada guerra colonial, projectando-se sobre os africanos uma mítica degradação social e humana ao cuidarem de si e da herança igualmente mítica da ordem, progresso e abundância coloniais, olhadas sob a severidade do juízo do homem europeu, mormente nostálgico do romantismo africano e legitimado pela autoridade dos brancos que ali nasceram, criaram raízes e permaneceram como guardiães semi-cafrealizados da civilização justa, a ocidental.
A não perder a leitura do excelente romance de estreia de Francisco Camacho, esse reencontro com as margens do Índico, onde repousam muitas e sufocantes nostalgias, em que o mistério/sortilégio Niassa ocupa o zénite do mito/lenda. Com uma narrativa empolgante, muito bem escrito, a percorrer com a adrenalina máxima de leitura. Embora, além de uma ponta final narrativa perfeitamente desastrada numa forma caótica de embrulhar o livro, entregá-lo ao editor e seja o que deus quiser, se ressinta ainda, ao contrário do que pensa e diz APC, dos buracos na nossa literatura sobre a presença portuguesa em África e cuja catarse continua em demorada fila de espera. Pois talvez só os escritores africanos, os permanentes (e não os de passagem, esses inchados de nostalgia do transitório, muito menos os enfeitados com togas de superioridade ocidental), possam completar as peças soltas dos puzzles, os nossos e os deles.
(*) – “Niassa”, Francisco Camacho, Ed Babilónia
Medalhas que carregue não me faltam (mais ou menos em número idêntico ao das estaladas que também acarto). Estimo-as porque só conservo as que me são entregues por estima. Agora, mais duas medalhas, e que duas, seguem directamente para a exposição dos meus agradecimentos. Obrigado, Rui e Cristina. Vindas de vós, são subidas honras.
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