Aqui me confesso, falando do que, sentindo, sei.
Imagem: Em Cacine, Sul da Guiné-Bissau, Maio de
Falta um mês para a “Festa do Avante”. Vai uma aposta que, passadas que foram as modas das “matrioskas”, dos “lenços à Arafat” e das t-shirts do Che, este ano, o pechibeque mais procurado para ficar como “recordação” vai ser uma miniatura em plástico (para não aleijar as crianças), do género dos martelinhos do São João no Porto, de um “rocket” do Hezbollah? Ou, mas só para os mais militantes, uma “katiuska” de imitação fabricada na China.
Ali, a solidariedade internacionalista nunca falece. E os “rockets” do Hezbollah ou nunca acertam ou não fazem vítimas civis, muito menos mulheres, velhos e crianças. São armas politicamente selectivas contra o imperialismo e o sionismo. Quando muito, acertam num ou outro soldado israelita, mas nisso, judeu a mais, judeu a menos…
A memória pesa. Pesando, resiste a adormecer no esquecimento. E dói se deitada sobre almofadas de tabu. Porque, se recalcada, não há morfina que iniba o efeito maldoso do pesadelo da memória. E, se obrigada a dormir à força, quantas são as vezes em que a memória nos acorda e espanta com o seu ressonar…
Por cá, andamos às voltas com os sítios da tortura e ignomínia pidesco-salazarista para ver se se arranja um sítio condizente para se deitar a memória, sem a esquecer, do meio século português em que a prisão e a tortura ocuparam o lugar da liberdade. Parece que não pode ser na antiga sede da “prestimosa” onde se davam os “safanões a tempo”, agora destinada a servir de tugúrio de luxo a ilustrar o Chiado. Para ali estarão destinadas camas finas e de bom sossego, não para se deitar, ou sequer sentar, a malfadada memória que tem o risco de perturbar a direita portuguesa de hoje, recordando-lhe, num qualquer propósito despropositado, que receberam uma herança de vergonha dos seus ascendentes trogloditas. A coisa estará encaminhada para que a memória da ditadura se sente e se exponha, pelo menos com algumas das suas partes, no Aljube em Lisboa e na sucursal da PIDE na Rua do Heroísmo, no Porto. Já é qualquer coisa entre tanta desmemoria conseguida.
Ao nosso lado, o governo Zapatero, finalmente e no 70º aniversário da mortandade iniciada com o golpe de Franco, aprovou uma lei que contempla alguma reparação de injustiças longas e fundas pela forma como se incensaram os vencedores e se aviltaram os vencidos. Agora, já se podem recolher as ossadas dos fuzilados despejados em valas comuns, vão ser retirados os vómitos toponímicos da exaltação franquista e que poluem praças, avenidas e ruas de Espanha, o “Vale dos Caídos” (em Gadarrama às portas de Madrid) vai ser “reconvertido” da sua parcialidade, passando de monumento católico-fascista de exaltação ao “Caudillo de Espanha pela graça de Deus” a memorial de respeito por todas as vítimas da guerra civil de Espanha e da ditadura de Franco. Nada mau, nada pouco. Claro que esta medida, corajosa mas aquém de tudo quanto seria justo, despertou sentimentos adversos. A extrema-esquerda queria mais. A direita e extrema-direita (que, em Espanha, se misturam num mesmo Partido) queria nada. Ou seja, queriam a continuação do silêncio. Porque as suas vítimas não estão insepultas e deram-se prebendas a eles ou seus descendentes, porque gostarão de passear e “tomar una copa” em “calles” evocando Franco, José António e seus émulos, finalmente porque sabem que a recuperação da memória lhes mostra os rabos de palha com que, hoje, participam no jogo democrático que, quando do poder absoluto, sempre negaram a outros. Enfim, entre os dois termos na desforra ou no prolongamento do “esquecimento”, Zapatero (filho de um fuzilado por Franco), mais uma vez, talvez sábia e sensatamente, escolheu traçar uma lei de risco a meio (mas honroso e corajoso).
Olhando para a manifestação da “opinião pública” portuguesa, tirando uns tantos que resistem aos malefícios da amnésia colectiva, ou assistimos aos silêncios da ignorância ou da conveniência, ou então encontramos ecos do inconformismo com o despertar da memória. Vasco Pulido Valente, cada vez mais competindo com o estatuto de inimputabilidade de “enfant terrible” já outorgado ao Jardim da Madeira, vocifera que transformar a memória dos tempos do salazarismo em Museu é parvoíce (tirando ele, poucos serão os não parvos). Mário Pinto, professor e colunista no “Público”, genuíno representante da eterna direita católica, silencia (diplomaticamente?) o que por cá se reclama e pré-anuncia, para zurzir nos “malefícios” de Zapatero em mexer na memória da guerra civil, reproduzindo integralmente a mentira de propaganda das hostes católico-franquistas – “foram os rojos, com os seus abusos, que provocaram a guerra em Espanha” (sua última crónica no “Público” da passada segunda-feira). Ou seja, setenta anos passados, nada aprendeu nem quis aprender e muito menos aposta no remorso, confissão e penitência, pela forma como a Igreja Católica apoiou e sustentou a mortandade espanhola e os crimes do franquismo. Talvez tenha hábito, sustentado por décadas, de rezar na missa diária celebrada no “Vale dos Caídos” pela vitória do franquismo e glória celestial dos seus combatentes e, agora, lhe custe a reconversão da Basílica ímpia. Talvez. Que aproveite, ele e outros mais, as missas celebradas por dominicanos a separar os "santos" dos "pecadores" e antes que as obras comecem.
Na sua exposição redentora (libertador de Cuba, desafiador dos Estados Unidos, apoiante dos povos oprimidos de todo o mundo), Fidel Castro sempre se fez acompanhar, na cruz da “Pátria ou Morte, Venceremos”, das representações repescadas do “bom ladrão” e do “mau ladrão”. Tal como Cristo que, segundo alguns, terá sido o primeiro revolucionário comunista na terra. O papel de primeiro acólito, o “bom ladrão”, o romântico idealista, foi representado com sucesso pela saga e depois mito do Che. O papel de segundo acólito, o “mau ladrão”, o da mão dura, ortodoxa e impiedosa, foi desde sempre entregue ao seu irmão mais novo Raul. E emoldurado entre o mito de Che e a mão de aço de Raul, Fidel tem reinado absolutamente há 47 (quarenta e sete!) anos.
Numa extensa e detalhada carta pública (transcrita, deu para encher toda a primeira página do “Granma”), Fidel fez a transferência (provisória) dos seus vastos poderes omnipotentes. A carta em si mesma não tem qualquer credibilidade. Ou a doença do ditador não é tão grave como proclamou ou um paciente com doença tão grave, a caminho da mesa de operações e com abundantes hemorragias internas, não tem capacidade para pensar e muito menos escrever uma tão longa e minuciosa carta, pelo que outros a terão escrito em seu nome. Daí que julgue com consistência a tese de Martín Iñiguez Ramos (professor de relações internacionais na Universidade Nacional Autónoma do México) em entrevista à Agencia mexicana NOTIMEX em que vislumbra uma mera encenação de antecipação da passagem dos poderes. O que não espantaria em Fidel, antes demonstraria que aos seus dotes de actor carismático, junta os de encenador prevenido e de talento manhoso. Quiçá, contando que a “provocação” (de que as manifestações de júbilo feitas em Miami são o primeiro resultado) faça saltar antes de tempo, os opositores internos, os saturados, os sedentos de "desforra" e os “inimigos americanos”, inviabilizando as condições para uma saída pacífica e democratizante. E o “contragolpe” (o da “defesa da revolução”) já está em marcha com a mobilização militar de todos os cubanos com menos de 45 anos e dos CDR’s (as milícias de bairro).
Embora oficialíssima há muitos anos, até pelo aval constante dado por Fidel a essa linha de sucessão, nunca foi consistente a hipótese de que a Fidel lhe sucedesse o “mau ladrão”. Nem o facto de a “carta” de agora o parecer confirmar e oficializar. Há quase unanimidade na percepção que Raul Castro não tem a mínima capacidade de suceder a Fidel e que a verificar-se essa hipótese ela só se justificaria por paranóia aguda e/ou … para precipitar o fim da ditadura cubana. Raul é um duro, um político gelado e impiedoso, incapaz de representar o folclore do idealismo romântico, utópico e populista latino-americano e de criar empatia, sem o mínimo de carisma, constando-se que gosta mais de rum que de arengas às massas. É o frio torcionário da sombra, o suporte militarizado e carcerário do poder exercido pelo mano carismático. Não tem estofo de primeira figura. Assim, a hipótese de Raul a suceder a Fidel, só entra na hipótese absurda de Fidel, traindo a Revolução, resolver entregar a “taluda” aos Estados Unidos e à máfia cubana de Miami, devolvendo-lhe o bordel, o casino e as praias que conquistara a Batista. Uma hipótese tão louca que se suportaria apenas num diagnóstico errado do mal grave de Fidel – será demência o que padece e não dos intestinos.
De qualquer forma, Fidel, embora a contragosto, não é eterno. Já o tem dito pelo que se presume que aceite esta lei da vida. Resta saber se os seus companheiros de poder a reconhecem. E talvez seja essa a estratégia de Fidel – experimentar-se o mando breve e desastrado do “mau ladrão”, esgotando-se aí as catarses emocionais, testando-se as reacções internas e externas, para que, ainda podendo intervir, o sucessor de facto (Carlos Lage Dávila ou, mais consistentemente, Felipe Pérez Roque), salte para a ribalta como factor de apaziguamento e de remobilização. Como sempre, os estertores das ditaduras são trágicos e caixas de surpresas. Porque nestas, ao contrário das democracias, as passagens de testemunho soam muito mais a contos policiais que a romances banais. O problema, para além da estética e rodriguinhos do espectáculo, é que os cubanos mereciam, como todos os povos, transição democrática, liberdade e tranquilidade, sem perda de soberania. O que, com Fidel, foi uma possibilidade negada e sabotada. Sem Fidel, ou além de Fidel, é apenas uma esperança improvável ao fundo do túnel. Deixando para a história cubana a marca de que a sua maior tragédia se chama, se chamará, Fidel Castro.
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