Segunda-feira, 27 de Fevereiro de 2006
Eu gosto de estrelas. Sempre gostei. Perco-me a olhar as estrelas. Em tempos, há muito tempo, era miúdo, tive a ambição de as contar. Achava eu que o universo cabia no tamanho da tabuada. E deitei-me noites a fio de papo para o ar, com o céu estrelado como cobertura, a tentar contá-las. Perdia-me nas contas mas voltava a contar. Não desistia. Achava que podia domar o universo, pensando que o universo era aquele meu, contando-lhe as estrelas. Teimava que as estrelas, como tudo, tinham conto e dimensão. E se podia reduzir a um número. E eu queria esse número, o de quantas estrelas. Até que uma tia minha, mais sábia que uma estrela (assim a achava), me ameaçou que contar as estrelas era pecado e deus o castigava fazendo crescer verrugas no dedo apontado ao céu. E eu quis poupar o dedo, por medo às verrugas, e desisti das estrelas. Já me bastava o medo do deus castigador que a minha tia invocava. Desistir é um modo de dizer. Melhor dito: desisti de as contar. Sem deixar de as amar. Fiquei assim com mais um trauma na minha colecção - o fascínio pelas estrelas mas, por medo danado de ter verrugas nos dedos maiores que os dedos, inibido de as contar.
Mais tarde, espigado a sair de rapaz, passando do deus castigador para o deus redentor, dando harmonia ao mundo como as estrelas se arrumam no céu, aderi à turma, malta porreira e do melhor, aqueles que apanhavam no coco, erguiam no canto nobre da bandeira da luta uma cintilante estrela. Com cinco pontas e a dourado para que não se duvidasse da sua grandeza superior. Simbolizava, no código da redenção, o internacionalismo proletário. Ou seja, traduzindo para o comezinho, o sinal de que toda a malta lixada no universo estava (ou devia estar) unida para combater os lixadores. Um novo universo, portanto, e um céu reproduzido na harmonia da luta. E as cinco pontas da estrela dourada representavam os cinco continentes, todos os sítios em que os proletários sofressem e quisessem deixar de sofrer, unidos à volta de uma mesma estrela. Depois, percebi que a treta desta estrela significava, tão somente, fidelidade ao sol que nascia em Moscovo e que se afunilava numa fila necrófila para adorar uma múmia plantada na Praça Vermelha. Achei que, assim, matavam a estrela, ou pelo menos, a mumificavam como antes o fizeram ao corpo do Vladimir. E uma estrela fria serve para quê? E prometi-me: um dia que consiga contar as estrelas, sem que as verrugas me cresçam no dedo apontado ao céu, passarei ao lado da estrela das cinco pontas, a estrela múmia. Mais, prevenido, nem sequer conto estrelas que tenham pontas. Pelo sim e pelo não, só vou escolher estrelas rombas ou redondas.
Um companheiro indica-me agora que
há uma estrela catita que tem nove pontas!. E há até quem a tatue no corpo como a outra (a de cinco pontas) estava tatuada na bandeira rubra. Respeito-lhe a crença estelar. Até sei que ela, uma crença, pode dar forte e custar a passar ou ser-nos eterna no nosso estar finito. Mas, caríssimo
Marco, mantenho-me na teimosia ressentida de agora só aceitar estrelas rombas ou redondas. E que brilhem!, mais não lhes pedindo nem, muito menos, lhes consentindo.
Aprecio o pudor. Sem pudor, a luxúria - que ainda gosto mais fica sem jeito, sabendo sempre a pouco ou mesmo a nada. Mas se o pudor se transforma numa forma de higiene de composição da prédica, já começa a cheirar demais a cera. E os odores, no pudor e na luxúria, são uma parte constituinte da função.
Li
aqui, referindo-se os indiciados de um homicídio miserável e que eram internos das Oficinas de S. José no Porto, que se trata de um grupo de jovens, internados numa instituição particular de solidariedade. E, aqui, o pudor estará em não se dizer, ou não se querer dizer (a dúvida deve beneficiar sempre o autor), que essa instituição particular não é nada particular relativamente à Igreja Católica. As Oficinas de S. José (as do Porto, em Lisboa continuam a depender da mesma Igreja mas pelo ramo salesiano) dependem do Senhor Bispo do Porto e são dirigidas por senhores padres católicos.
Não é que o hediondo do crime implique qualquer associação directa entre os actos do bando criminoso e a honorabilidade da prédica da Igreja. Mas não isenta a Igreja, pelo contrário, que o bando tenha saído de uma instituição que depende dela, Igreja Católica, e por ela é tutelada e orientada. Como os casos Casa Pia, não isentam o Estado. Ambas, as duas falhas miseráveis, revelam perversões, admitindo que se tratem apenas de desleixos perversos, no acompanhamento de crianças a seus cargos. Na Casa Pia, com o Estado a permitir o abuso delas, nas Oficinas S. José, com um Bispo e vários padres a "educarem" abusadores. Num caso e noutro, antros de crimes.
Domingo, 26 de Fevereiro de 2006
Francamente, não entendo a enorme quantidade de pessoas que anseiam por irem a Veneza nesta época e por causa das máscaras. Não estarão cansadas de as usarem todo o ano? Falo por mim, é claro.
Dou-te toda a razão
Luis, não nos podemos confundir com as vagas bárbaras.
Apesar da contumácia, a sedução na tribo em feminino, também não é fácil. Nunca foi, mas às vezes é pior e levam-nos até as entranhas do coração para fora. Como aqui se pode
ler nesta excelente crónica emprestada, daquelas que nos levam a descer (ou a subir?) ao limite do humano e experimentar o travo da fronteira.
Sábado, 25 de Fevereiro de 2006
Ler e pedir bis uma história de sedução feminina, com a vitória suada ao fim de
três horas. É obra, mas ganhar, nem sempre se ganhando, sabe sempre bem.
Vital Moreira que, a si próprio, se define, quanto à actual prática política, como treinador de bancada (como se viu com o Super Mário
), diz que assistiu de bancada e gostou desta
jogada. Haja uma ministra para nos reconciliar no pós-eleições. Antes assim.
Sexta-feira, 24 de Fevereiro de 2006
Os meus melhores votos carnavalescos são que a senhora da imagem, mostrando a sua pulsão curiosa pelo que se passa no mundo, apesar da clausura e como é seu mister, não se lembre de ir espreitar as felicitações para os festejos que, embora pagãos mas decentes, são de cumprir por sorte do calendário e descanso de quem trabalha mas, afinal, o que mais gosta é divertir-se, dando mote ao Lutz para
brindar a blogosfera.
Apesar de ser de Carnaval, desejo-vos um excelente fim-de-semana. A alarvidade e o sindroma da transmutância mimética andam por aí, desviem-se, sacudam e sigam. E se não conseguirem fazer melhor, descansem.
Foi-se, com 84 anos, o Arcebispo Paul Marcinkus, em retiro de escândalo, depois de ter gerido, como um gangster, durante vinte anos, as finanças do Vaticano e os tesouros da Igreja Católica espalhados pelo mundo. Igreja que o isentou de prestar contas à Justiça dos homens pelas suas fraudes e crimes.
Tinha o cognome de Banqueiro de Deus este ímpio de sotaina e de nariz encantado com o perfume do dinheiro. Os seus colegas banqueiros que o beatifiquem. Dinheiro é dinheiro, missa é missa.
O figurão está retratado
aqui.
Que graça tem se falta a Graça? Para o Luís é que não é nenhuma desgraça, pelo contrário, tem a Graça toda para si. Há empresas e camaradas com azar e homens com sorte. Mas, é assim, é preciso que alguns sofram para que pelo menos um tenha vontade de rir.
E eu só consigo lembrar-me do saudoso Vinicius, lembrando-me sempre de ti:
Que a mulher seja em princípio alta
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Como esquecer a mulher mais alta que já conheci?
No eclodir de movimentos insurreccionais, a simbologia de dramatização, demonizando quem se quer combater, representa um papel chave. Um martírio, uma chacina por exemplo, no mínimo um assassinato odioso, às mãos dos que se querem sacudir do domínio, é uma alavanca poderosíssima para posterior tratamento de propaganda e como factor emocional de revolta e de mobilização. Por norma, surge o mito e o empolamento, a lenda até, para carregar as tintas.
Como cá e no antifascismo, os assassinatos de Catarina Eufémia, Dias Coelho e Alex, foram pontos fortes de denúncia da natureza criminosa do regime, em Angola foi o massacre da Baixa do Cassanje e o 14 de Fevereiro, em Moçambique o massacre dos Macondes no norte, na Guiné, o
massacre dos marítimos do cais de Pidjiguiti, ocorrido em 1959, era e é a grande referência na denúncia da ignomínia colonial e a demonstração que, perante ocupantes criminosos, nada mais restava que combatê-los também pela violência.
Com a distância no tempo, vão-se criando as condições para limpar parte da lenda e ganhando relevo as circunstâncias e a verdadeira proporção dos acontecimentos, também se aclarando aspectos sobre qual organização ou quais organizações estiveram por trás das movimentações reivindicativas reprimidas.
O historiador guineense Leopoldo Amado, na sua investigação persistente sobre a guerra colonial (guerra de libertação, para os guineenses) ocorrida naquela antiga colónia portuguesa, fornece um conjunto de dados fundamentais e inéditos sobre a génese e envolventes do massacre de Pidiguiti de que recomendo a
leitura aos amantes da aproximação à verdade histórica.
1. Ontem mesmo, aconteceu-me o que já não imaginava. Um retornado do meu bairro, daqueles que vieram de trambolhão de Moçambique por causa da colonização descolonizada, de que me sobravam no ouvido os falares altos da sua tertúlia com comparsas de azedumes e pragas que normalmente terminam na constatação partilhada de que
este país só de endireita com um ou dois salazares ou
ainda diziam mal da PIDE
, ao contrário do habitual, estava sozinho lá num canto. E eu no meu. Numa pausa em que descansei o livro que agora me ocupa, o sujeito resolve, pela primeira vez, meter-me fala:
- já reparei que o senhor gosta de ler, tome lá, leia isto que é ligeiro e passa-me uma meia dúzia de folhas dobradas que aceito por delicadeza e que desfolhadas e vistas em diagonal, eram afinal um miserável apanhado daquelas anedotas velhas e relhas com ranço racista sobre Samora e a Frelimo. Aguentei uns minutos para não destrambelhar, ai o sacana do stress, aguenta, pensando que raio de fel este em que, passadas tantas décadas, ainda bolsa e se quer propagar e aliciar. E perguntando-me se, tendo feito a guerra por eles e para eles, aos colonos depois descolonizados, ainda lhes teria dívidas por saldar. Meti travões a fundo. Limitei-me a mostrar ao sujeito que vi de que se tratava mas que não lhe queria ler a sua cartilha, devolvendo-a com a máxima e possível delicadeza
- Obrigado pela atenção, mas dispenso a leitura, não sou reaça.. E o retornado moçambicano ficou embasbacado, a olhar-me com ar de não perceber. Ou não querer. Ou nem sequer disso ser capaz.
2. É fácil denegrir. Como em tempos fizeram a Samora. Mas, de Samora, hoje não falo, porque me vem à lembrança as folhas de papel com vinagre do retornado moçambicano meu vizinho. Escolho falar de um militar de Abril (teve papel decisivo no levantamento na Região Norte e comandou as forças que ocuparam o Forte de Peniche), também muito maltratado, objecto de ódios mais que mil no turbilhão da revolução, sabe-se lá se sanados. Trata-se de um Oficial de origem transmontana, trazendo no peito a Cruz de Guerra de 3ª Classe, o grau de Cavaleiro da Ordem Militar de Aviz e a Medalha de Prata de Comportamento Exemplar. Chama-se Eurico Corvacho (foto acima). Fiquei hoje a saber que está muito doente. E li, recompondo-me por continuar a haver homens com honra, dois depoimentos sobre ele que me reconciliam com o tempo e a memória, devolvendo a honra aos honrados -
este e
mais este.
Quinta-feira, 23 de Fevereiro de 2006
Em 23 de Fevereiro de 1987, ficou-nos a faltar o Zeca, José Afonso. Como esquecer?
Lá no Xepangara
Vai nascer menino
Dentro da palhota
Tem a seu destino
Lá no Xepangara
Fica muito bem
Deitado na esteira
Ao lado da mãe
Há-de ter um nome
Lá prò fim do ano
Se morrer de fome
Tapa-se com um pano
Se tiver já corpo
Rega-se com vinho
Se não cair morto
Chama-se menino
Se tiver umbigo
Corta-se à navalha
Tira-se uma tripa
Faz-se uma mortalha
Pretinho de raça
Sempre desconfia
Se o musungo passa
Diz muito bom dia
Quando for mufana
E já pedir pão
Dá-se uma lambadacomer à mão
Mais uma patada
Vai-te embora cão
Dá-se-lhe porrada
Porque é mandrião
Lá prò fim do ano
Quando já for moço
Guarda-se o tutano
Fica pele e osso
Quando já for homem
Tira-se o retrato
Come na cozinhamainato
Se mudar de vida
Vai para o contrato
No fundo da mina
Fica mais barato
Quando já for velho
Chama-se tratante
Dá-se-lhe aguardente
Morre num instante
(
Lá no Xepangara, José Afonso, 1973)