Segunda-feira, 4 de Outubro de 2004
Para as gentes de esquerda, impacientes com o nível de desgovernação atingido pela indigência santanete, o grande suspiro é pela chegada da hora da alternância desejada e necessária e antes que a leviandade governativa se torne inimputável.
Para muitos, temerosos que o PS, só por si, não consiga assegurar e sustentar a convergência de vontades e de votos, é irresistível a atracção pela defesa da aliança de
toda a esquerda, tentando que se apresse uma
frente de unidade do PS ao BE, passando pelo PCP.
Julgo que, aqui, a vontade suplanta a objectividade, preferindo-se uma fórmula oca como meio de acelerar a pressa. Porque, e a realidade é esta, os factores de diferença entre as
esquerdas são tão significantes em questões políticas cruciais que deitar tudo na mesma panela daria esturro mesmo antes de se acender o lume.
Para o PCP, o PS sempre foi, a governar,
igual ou
pior que o PSD e a direita. Com ou sem razões, como é que a
aliança, quando se traduzisse em coligação de governo, teria o poder milagroso de
recuperar o PS para a
esquerda, segundo os conceitos do PCP? E se a
aliança tivesse esse poder automático, então isso teria outra leitura que o PS assumir que o PCP era a
essência da esquerda?
E como tornear as grandes e decisivas divergências de fundo entre o PS e o PCP? Metendo-as na
prensa frentista para desalojar a direita? E essa
prensa teria o
poder milagreiro de ultrapassar visões antagónicas sobre a economia, a União Europeia, a NATO, as relações geoestratégicas e tanto mais? Ainda, e sobretudo, sobre a
democracia que, para o PCP, tem os seus bastiões maiores em Cuba, na Coreia do Norte, no Vietname, na China e no Laos?
E como se entenderiam os dirigentes do PS a negociar com a direcção do PCP, cujos cordelinhos continuam a ser puxados pela velha guarda bolchevique conservada no tempero do azeite e vinagre da saudade do
socialismo pré-Gorbatchov?
Relativamente ao Bloco, quais as vantagens do PS em aliar-se a uma frente de maoistas-albaneses, trotsquistas, gays, libertários e outros mais, para quem a essência está no folclore radical da eterna representação do
contra?
Se no plano social, nomeadamente no que respeita aos trabalhadores, apesar do enorme ataque aos direitos destes, no nível mais baixo da defesa dos direitos, não foi, nem se vislumbra, a unidade de facto, na acção, entre a CGTP e a UGT.
Se nas autarquias, o único exemplo de unidade que resta é o caso de Lisboa e que curte o seu malogro de não ter sido capaz de derrotar Santana, mostrando-se incapaz de progredir para outros concelhos onde o
sucesso da esquerda seria pouco problemático.
Praticamente têm-se perdido todas as oportunidades e circunstâncias, para criar uma nova atmosfera de
entendimento à esquerda e as plataformas práticas e parcelares desse caminhar. Provavelmente, as culpas estarão repartidas. Mas então, há que andar antes de iniciarem correrias adivinhando trambolhões.
Para quem não saiba e esteja em transe de curiosidade ou simplesmente seja coleccionador de pingos biográficos, informo que,
antes de beber desta água,
calcei botas e tanto palmilhei que as gastei. Os restos desses estimados
calcantes repousam
aqui e
aqui.
Por mim, que descansem em paz. Mas continuam à vossa disposição.
Sábado, 2 de Outubro de 2004
O Luís é o meu mais jovem amigo aqui do bairro. Agora usa bem os seus cinco anos desenrascados mas conheço-o desde que usava colo.
Bem, contando a verdade, o Luís pertence à categoria daqueles amigos induzidos, quer dizer, arrastados por outros. Aconteceu que, por causa das simpatias provocadas pelo meu cachorro, me fiz amigo do meu vizinho Miguel, irmão do Luís, mas que hoje é um calmeirão ao nível dos seus oito anos. Uns tempos atrás, o Miguel, então com quatro anos, foi à bola com o meu cachorro e teve o à vontade de mo pedir emprestado para dar umas voltas. Eu concordei porque achei que entre eles havia uma empatia que não me competia contrariar. E foi assim que o Miguel se transformou no melhor amigo do meu cachorro e eu, de boleia, tornei-me amigo do Miguel. Diga-se de passagem, que o Miguel também passou a ser meu amigo e, estivesse eu onde estivesse, o Miguel largava as suas brincadeiras para me cumprimentar. Perguntando-me sempre pelo cachorro, diga-se de passagem.
O Miguel foi crescendo e hoje é um responsável estudante, com menos tempo para brincadeiras e, assim, menos disponível para atender à companhia do meu cachorro. Quanto ao Luís, passando do colo para os pés no chão, foi-se pendurando no irmão e, a pouco e pouco, substituindo-o na companhia e folia com o meu cachorro. Até que se tornou seu substituto integral. No relacionamento com o cachorro e comigo.
Conversamos sobre o nosso clube, vou acompanhando as suas proezas e desditas, sobretudo no que se refere às mazelas dos trambolhões de bola e patins. Agora mais com o Luís, porque, como disse, o Miguel virou estudante aplicado nos seus afazeres e responsabilidades. Quando os vejo em folias próximas do meu raio de acção, sobem-me as manias protectoras e vigio-lhes os limites do risco. E, quando é preciso, imponho-me como amigo mais velho. E vou trocando com a mãe e a avó deles (duas simpatiquíssimas angolanas do Huambo) impressões sobre os pormenores de percurso dos meus dois jovens amigos.
Devo ao meu cachorro estas amizades que são das mais gratificantes que tenho. Sobretudo por causa dos sorrisos escancarados e que não encontro em mais nenhum outro, sorrisos estes que eu gostava bem de apetecer-me ter, mas vai-me bastando, uma vez por outra, pedir-lhos emprestados. Mas não abuso, a eles fazem mais falta para se fazerem à vida.
Sexta-feira, 1 de Outubro de 2004
Dia arrasador para quem é pai.
Primeiro, saber que o Pedro formalizou candidatura a Presidente da Associação de Estudantes (sem Jotas de partidos lá metidas). Temos pois, à porta e para partilhar, campanha e eleições.
Segundo, babar-me em comoção com as salvas de palmas que acompanharam o recebimento pelo rapaz de diplomas de excelente aproveitamento escolar relativos ao passado ano lectivo.
Uff, dia este!
Conheci-o em contactos muito curtos. Quase de circunstância. Mas tinha todo o ar sincero do homem simples capaz de abdicar de quase tudo por uma causa. Era afável e pronto a ouvir os outros. Engenheiro químico, trocou a vida de engenheiro por uma causa toda entregue ao derrube do fascismo. Tinha 82 anos. Deixou a companhia dos vivos com quem consumiu toda uma vida de luta.
Ele era um ortodoxo e sobre isso nos desentendemos. Mas permaneceu na minha galeria de estimas conservadas.
O meu profundo respeito perante o
falecimento de Blanqui Teixeira.
São poucas. Muito menos que o milhão que costuma encher a Praça da Revolução a mando e sob controlo dos CDRs.
São mulheres. Vestem de branco, usando-o como cor de protesto.
São poucas. Menos que os tantos que, pelo mundo fora, as esquecem porque o ódio merecido contra Bush lhes esgota a capacidade de protesto.
São mulheres. A quem faltam os maridos, presos à ordem de Fidel Castro.
Em 19 de Setembro passado, estas poucas mulheres desfilaram em Havana. Lembrando os maridos. Lembrando-os ao mundo. A quem quer ouvir. Aos poucos que as ouvem.
São poucas. São mulheres. Mas como não estar com elas?
Li a longa entrevista a Zapatero no Público de hoje. Gostei. Sentido de Estado, projecto para Espanha, sentido pragmático sem descurar o pensar os homens (e sobretudo as mulheres) na sociedade. Tudo com uma enorme serenidade e sentido de servir. O optimismo dos que acreditam que é com ideias que se constrói o futuro.
No final, uma inveja e uma discordância. A primeira por razões óbvias. A segunda tem a ver com a questão da adesão da Turquia à UE (
Claro, disse ele!).
Não, não sou nenhum dos populares que foi espreitar e chafurdar na tragédia da Joana. Recusei-me a contribuir para a share nas transmissões televisivas em directo dos episódios das buscas, investigações, prisões e tentativas de encontrar o cadáver. E saio café porta fora quando as conversas descambam na lambuzadela colectiva das conjunturas sobre episódios do crime. Assim, não pertenço ao número dos energúmenos bimbos zurzidos pelo impoluto Pacheco Pereira. Mas nem por isso me acho assim tão superior aos populares rascas que se põem de rabo para o ar espreitando por frechas nos prédios.
É que, a propósito da tragédia da pequena Joana, reflecti, mais uma vez, na forma como todos somos co-responsáveis no amontoar impune da violência contra as crianças, que mais não seja por omissão de intervenção.
Quantas vezes, actos de violência contra crianças (ou contra mulheres, ou
) se passam debaixo dos nossos olhos e logo os desviamos e calamos por falta de coragem de dizer basta, seja quem for o agressor, dando corpo à intervenção cívica que nos compete. Porque não queremos chatices, porque não nos queremos intrometer em vidas alheias, porque não nos dispomos a enfrentar feras possessas da sua posse, porque isto e mais aquilo. No fim, apenas porque não queremos suportar todos os custos da cidadania.
Esta nossa cobardia aumenta o sentido de impunidade daqueles que, por serem pais, maridos ou quer que seja que acham que lhes confere posse sobre alguém, entendem-se com direito ao exercício privado de mal tratar um ser humano, sobretudo quando o julga mais fraco e mais desprotegido.
Depois como abrir a boca de espanto, carpir indignações quando a espiral de violência chega à tragédia como foi o caso da Joana? Porque a tragédia da Joana não começou no seu fim. Antes, houve um acumular de pequenos episódios de humilhação, exploração e afastamento violento do seu mundo de criança. O problema é que, quem os viu e soube, achou que não era grave ou não se quis meter ou simplesmente achou bem porque trabalhar ajuda a crescer ou que um tabefe bem dado é da arte da pedagogia. O problema é quando se mata e mete polícia com novela policial e de mistério. Então clama-se por justiça justiceira, dando-se o corpo ao manifesto se for caso disso. Nessas alturas, até (para alguns) o regresso da Pide dava jeito.
Lembrei-me a propósito de um post que coloquei
aqui, há perto de um ano, e que não resisto a transcrevê-lo (como reforço de auto-alerta):
Ao longo de uma vida, vão-se acumulando afectos, raivas, coisas que nos amarram, indiferenças, um ou outro acto de coragem e umas tantas cobardias. Cada um terá o seu saldo que não é comparável com os de outros. Até porque não há duas pessoas que vivam nas mesmas circunstâncias, tenham as mesmas oportunidades e os mesmos desafios. Assim, resta-nos prestar contas do saldo próprio ao confessor ou, solitariamente, à nossa consciência. Mas não adianta tentar esquecer. A nossa memória não dorme.
Tenho disso tudo que vou arrastando como espécie de carrego na memória. Que vou contrabalançando com a força de auto-estima que me ilude na ideia de, pesando os prós e os contras, até não sou mau tipo.
Doem as falhas de não ter estado em tudo em que se devia ter estado, do abraço a que nos baldámos no momento em que ele fazia falta, das faltas de comparência, do afecto a que nos distraímos a corresponder e dos silêncios onde a nossa voz se devia fazer ouvir a gritar revoltas. A festa na cabeça que alguém merecia de nós e que não se fez ou feita demasiado a correr. Ou o murro que ficou por dar. Mas quem é que pode ir a todas?
Tenho algumas cobardias indesculpáveis no meu cardápio. Algumas faço por fingir que as esqueço e resigno-me a que só saltem, às vezes, de dentro da memória e aos gritos. Ponho-lhes, rapidamente, a tampa por cima e espero que essas cobardias armazenadas se calem por uns tempos.
A cobardia que mais me vem atormentar, de quando em vez, na paz tentada da memória, foi uma que aconteceu vai para uns três anos atrás. Porque o sujeito me vai aparecendo, à frente dos olhos, uma vez por outra Um fulano de cara fechada, pêra esbranquiçada como se fosse um punhal de pelos pendurados no queixo, estava no meu café de bairro, lendo o seu jornal enquanto o filho pequeno (talvez cinco ou seis anos) brincava lá fora, matando o tempo de espera. O miúdo tinha uma cabeça muito grande e denotava sinais de atraso mental. Às tantas, o rapaz, talvez pela impaciência acumulada, fez uma inconveniência de pouca (nenhuma) monta - deu um encontrão no cartaz de anúncio dos gelados e deitou-o ao chão. O som ecoou metálico, em excesso sonoro relativamente ao significado do trambolhão da geringonça. O pai chamou o miúdo e mandou-o sentar-se na sua mesa que era mesmo ao lado da minha. Depois, pediu-lhe a mão e mansamente, com arte de torturador, foi-lhe apertando os dedos, aumentando a força da pressão em doses crescentes, repreendendo-o em voz sumida e cortante, martelando a mesma frase o pai está farto de te dizer para não fazeres disparates. O rapazito ia chorando, num choro em que o barulho se foi extinguindo, ao mesmo tempo que a dor ia aumentando, até se reduzir ao som inaudível das lágrimas a caírem e a molharem-lhe a cara. Primeiro, fiquei petrificado. Depois, levantei-me e zarpei. Fugi, foi o que foi. Ainda hoje não me perdoo não ter dado o murro que faltou nas ventas daquele pai torturador.