Segunda-feira, 20 de Setembro de 2004
É uma autêntica lotaria de imprevistos a socialização a tempo inteiro com um grupo de patrícios em roda turística. Como em tudo, há sorte e azar. Já gramei secas que me esgotaram a paciência. Já tive a felicidade de conhecer gente interessantíssima. É uma lotaria, disse e repito. No entanto, julgo que, com o decorrer dos tempos, os riscos diminuíram por duas causas muitos portugueses acumularam o hábito de viajar (os que os torna mais serenos nos contactos extra-muros) e já compram mais cá dentro (tornando-se mais suaves no consumismo dos recuerdos).
No caso, o destino e a motivação ajudavam a que a curiosidade sadia suplantasse a exuberância pacóvia e a atracção fatal por tudo que fosse bazar.
Grupo bacano, diversificado nos interesses e nos escalões etários (a mais nova tinha doze anos e o mais velho andava pelos setenta). Animação, interesse, espírito de entreajuda. Pessoas muito interessantes pelo meio. Para mais, uma guia culta e simpatiquíssima, charmosa e afectiva, falando português quase sem mácula, que nos reunia e nos recontava ao som do grito de guerra em chamamento: Família!. Que sorte. Sorte construída também pela simpatia transbordante dos egípcios que são o povo mais simpático que conheci até hoje. Repito, que sorte. E, assim, a viagem foi também uma festa. Para todos.
De forma super concentrada, é impossível digerir muita informação e muito passado. Sobretudo ali. Porque ali a pequenez do saber humano é o maior de todos os monumentos deixados em herança à sede da curiosidade.
A riqueza daqueles milénios de civilização rica e pujante dá água pela barba aos egiptólogos mais persistentes e mais dedicados. Não há egiptólogo, por mais encartado que seja, que saiba uma parte suficiente da civilização a que dedica os seus aturados estudos de toda uma vida. Quando muito, sabem uma parte para entender as pistas do todo mas cada nova descoberta baralha as pistas e impõe o recomeço do entendimento.
Como fazer? Primeiro, abrir os olhos e o entendimento, situar no tempo, no espaço e nos símbolos. Depois, evitar o ponto de saturação, parando e passando ao relance, ficando pelo olhar, deixando que os sentidos completem a fruição. E ir tecendo enlaces com o que se sabe para se sair com uma síntese aproximada. Mais, tentando obter pistas para entendermos o que somos pelo que fomos. Ideologizando, enfim. Se a ideologia nos tenta matar a abertura da curiosidade, então que nos vinguemos servindo-nos dela para organizarmos a capacidade de aprender.
Julgo que em nenhum lugar do mundo restaram tantos sinais dos tempos como no Egipto. O que restou para se ver (a que há a somar o que está para encontrar) quase que desculpa o muito que se perdeu (por saque, por heresia, por inépcia, por insensibilidade). Não há mente que aguente tanto decifrar e entender, digo eu. O que talvez não passe de desculpa de mau turista a justificar ignorâncias acumuladas.
De uma forma geral, os egípcios da actualidade são ciosos da civilização que têm para guarda e rendimento. Até parece que aquela civilização milenar os habita. No entanto, os egípcios de hoje (tirando alguma minorias que perpetuam o fardo da opressão arrastada desde os milénios faraónicos) são-lhe tão (ou mais!) estranhos que nós porque eles estão filiados numa ideologia ocupante. Velha ocupação sim, mas apenas isso. O país está completamente islamizado (as minorias cristãs e judaicas são residuais) e ali continua com todos os sinais culturais de invasor e ocupante. Hábeis para o negócio, os muçulmanos puseram a render o negócio da egiptologia. E fazem-no admiravelmente bem. A fractura cultural quase que não se nota. E os euros correm como moeda corrente e sempre a pingar (até as moedas de cêntimo de euro servem nas compras). E eles sabem bem que o que está para extrair da guarda das areias se aproxima do inesgotável, o que lhes dá um pouco de tranquilidade quando pensam em como vão alimentar setenta milhões de bocas. Tanto têm e tanto irão ter que o Faraó Nasser deu de barato a destruição de grande parte da memória núbia para construir essa Pirâmide do século passado chamada Barragem do Assuão.
Destino de férias. Mais uma vez, a escolha foi do Pedro. Mas não a primeira porque essa sofreu duplo veto imediato. Japão? Nem pensar, fora de causa tantas horas seguidas amarrado a uma cadeira de avião. A alternativa surgiu-lhe de chofre: Egipto. Mas porquê Egipto? Por causa da civilização deles, foi o argumento rapidamente disparado. Convincente. Boa resposta e melhor motivo. Vamos nessa. Repentinamente, era mesmo para o Egipto, destino nunca antes pensado, que a todos estava a apetecer ir espairecer e enriquecer de vistas. Sítio com adivinhas de substância mais que muita. E com toda a probabilidade de ali estar o melhor bocado da costa sul mediterrânica e sendo, por sinal, o único que eu não conhecia. Tudo indicava que compensava o rombo nas finanças domésticas.
Acertados o quando e o como. Primeira semana, a descer o Nilo desde Assuão até ao Cairo (Sul para Norte). Na segunda semana, poiso de recuperação na Península do Sinai, já dentro da Ásia, com sedentarização em Sharm El Sheik no começo do Mar Vermelho. Única contrariedade à vista: seis horas de voo para lá e outras tantas na volta. Enfim, sempre melhor que zarpar para o Japão.
Domingo, 19 de Setembro de 2004
- Com água lisa !Estas eram palavras repetidas e ditas alto. Mas diga-se por verdade, que eram mais para escutar um som de vida viva do que para dar força à ordem do rito.
Autêntica chinesice era aquela de escolher entre diluir o álcool com água gasificada ou isenta de borbulhas carbónicas. Cada um sabia que estava a agarrar-se ao acessório. Mas a vida prega-nos destas vivermos, termos de viver, com aparências para esquecer que o transitório está sempre a ameaçar com a estocada do ponto final. Ali, tinha de ser assim.
Por norma, o Cabo da Messe sabia como se rir, sem se notar, da nossa ansiedade fardada e com galões nos ombros carregados a albardar tristezas e vontades de zarpar. Ele olhava os nossos medos mesmo no centro dos nossos olhos milicianos e repetia, navegando as palavras até desaguar na sobriedade sisuda própria de um subalterno:
- Com água lisa !A água vinha. O álcool também. E os olhos iam ficando cada vez mais pequeninos. Talvez fugindo do gozo do Cabo da Messe. Talvez tudo. Talvez nada. Porque, verdade mesmo, escolher
água lisa era das poucas escolhas que restavam para espevitar o andar trôpego da espera.