Sexta-feira, 24 de Setembro de 2004

NILO E SINAI (18)

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É um mistério, para mim, entender como é que um povo guerreiro, agora decadente e subalterno, teve e tem (e terá?) o direito a ter as mulheres mais bonitas do mundo. Provavelmente, obra do compromisso entre os deuses e a genética. Ou manobra de grito decente para vergonha dos racistas que empestam o mundo.

Nada se aproxima dos calcanhares da beleza da mulher núbia. E tanto os deuses se devem ter esmerado a esculpir no feminino que acabaram bem à pressa, de qualquer maneira, os rostos dos seus vulgaríssimos e desinteressantes companheiros do sexo complementar. Talvez porque eles valorizavam tanto o poder da guerra, da conquista e da submissão e as ausências em pelejas, sobrou vagares à natureza para dedicar às mulheres núbias o deleite da estética refinada no esculpir da elegância do corpo, a apurar as linhas do rosto e inspirarem-se no desenho da profundidade penetrante do olhar.

O povo núbio sabe dessa riqueza não disputada. Por isso mesmo, não permitem os casamentos das mulheres núbias com homens exógenos à etnia. Depois, a mais valia das economias são investidas a cobri-las em ouro (desde a infância) com o pretexto de as proteger de azares da sorte. Pois, riqueza com riqueza se paga. E se guarda.

Já que quiseram subjugá-los, os nobres núbios não mereciam bem mais o ataque da inveja que a vergonha da submissão? Mas porque raio é que, com tanta religiosidade à solta e emprestada à ideologia da opressão, se atacam os deuses no melhor que fizeram e deixaram como herança?

(Foto de Pedro Tunes)









Publicado por João Tunes às 16:31
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NILO E SINAI (17)

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Nos braços pantanosos, o crocodilo continua a habitar o Nilo. A representação e a sacralização do crocodilo é uma referência bastamente documentada e ilustrada (os egípcios divinizavam tudo o que temiam, como forma de combater os seus medos). Tinham até direito a mumificação.

Os núbios conhecem-no bem. Prestam-lhe culto, resquício do seu animismo que paganiza o islamismo importado. Quando os crocodilos-bébés nascem, os núbios recolhem-nos, levam-no para casa e tratam-nos como animais domésticos, metendo-os em aquários próprios que exibem como vaidade e afecto, assim sendo apresentados às visitas. Depois, quando crescidos e robustecidos por tratamento doméstico generoso, são devolvidos ao seu habitat.

Assim vistos, bem simpáticos que os crocodilos são.

(Foto de Pedro Tunes)







Publicado por João Tunes às 13:56
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NILO E SINAI (16)

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O Império Núbio foi dos mais poderosos e temidos de África. Guerreiros corajosos e implacáveis, determinados e orgulhosos, ricos na representação artística e monumental da sua religiosidade e do seu poder. Resumindo, dados à terra, à arte e à guerra. Tudo em demasia para domesticar África que necessitou de os destroçar para equilibrar os espaços das etnias e a ocupação árabe e europeia. Só com a decadência núbia, o norte de África cortou os cordões com a África Negra, contando com o corte do Grande Saara, em que berberes e tuaregues ficaram com a missão de tampão mas espetando sempre o dedo das suas ambições.

Hoje, os núbios arrastam-se na sorte retalhada pelo Alto Egipto, Sudão, Somália e Etiópia. Sobretudo fechados pela islamização imposta e no hermetismo étnico. Alimentam-se ainda do orgulho das façanhas passadas. E vão subsistindo.

Não foi fácil o domínio e a ocupação egípcia sobre as terras núbias, na estruturação do Império do Alto Egipto (Sul). Conseguida apenas com a elevação dos núbios a elite guerreira do Império e que tão bons serviços desempenhou na defesa e na expansão egípcia. Tantos e tão decisivos que núbios seriam alguns dos Faraós.

A unificação do Alto e do Baixo Egipto ditou o início da secundarização dos núbios. Até porque os mamelucos da cavalaria de simitarra árabe desembainhada haveriam de desempenhar depois o papel de guarda pretoriana do Império. Os ventos de poder passaram a deslocar-se mais para Norte. O papiro ganhou força à flor de lótus, embora, na simbologia imperial, apareçam sempre lado a lado como sinal de unificação.

As ocupações romana (fase anti-cristã e cristã) e árabe-muçulmana, selaram a subalternização núbia. A islamização de todo o Egipto (sobrando a diferenciação copta – heresia mas persistência do cristianismo) tornou a ideologia de ocupação árabe numa massa de poder e obediência. Ou seja, acabou com as veleidades de diferenciação ameaçadora. E os núbios passaram a ser, apenas, os pretos do Sul (ou seja da África Negra). Prestando culto ao Corão mas mitigando-o com rituais de culto animista.

Assuão é a grande cidade da minoria núbia. E o vale do Alto Egipto a terra da sua subsistência orgulhosa. Melhor, era. O Lago Nasser criado pela barragem do Assuão, meteu-lhes aldeias, terras, cultura e parte do seu orgulho, na profundeza das águas. Quiseram dar-lhes habitações de reconstituição de vida comunitária fabricadas em matérias e geometrias não adequados ao clima tórrido do Sul, tentando modernizá-los e urbanizá-los. Recusaram. Em alternativa, ofereceram-lhes o vale ocidental (que os egípcios não ocupavam antes por serem a terra dos mortos) para se reinstalarem. Uma parte reconstituiu aí as suas comunidades, passando a viver sobretudo do turismo (alugando as vistas das suas casas como curiosidade exótica, alugando passeios de camelo e de faluca, tecendo artesanatos pelo domínio da sabedoria africana, prestando os serviços mais desqualificados na hotelaria, fazendo tatuagens nos braços cor de leite dos visitantes europeus, encharcando o comércio informal). A diáspora núbia espalha-se do Alto até ao Baixo Egipto, notando-se bem pela cor de pele. Estão nos serviços mais duros e mais mal pagos de todo o Egipto (menos no Sinai, onde essas funções são apanágio dos berberes). Preenchem o gigantesco aparelho policial que apresenta um polícia (sobretudo do numerosíssimo corpo da Polícia do Turismo e das Antiguidades) em cada esquina, mister que lhes sobra das suas tradições bélicas. Julgo que bendizem a pax egípcia quando a comparam com a vida dos seus irmãos sudaneses, somalis, eritreus e etíopes. Talvez porque Darfur fica-lhes ali bem perto.

(Foto de Pedro Tunes)

Nota: Verdade, falei sobretudo dos homens núbios. Porquê? Apenas porque as mulheres núbias merecem texto à parte.















Publicado por João Tunes às 13:32
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Quinta-feira, 23 de Setembro de 2004

NILO E SINAI (15)

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A Barragem de Assuão é a maior de África e uma das maiores em todo o mundo. A prisão das águas do Nilo na albufeira deu lugar a uns dos maiores lagos artificiais do mundo, baptizado como Lago Nasser.

Muita água de facto e posta ao serviço de grandes utilidades e de grandes atentados à mãe natureza. Mas O Assuão não tem mais vista que a da monotonia nem primor de arrojo estético na contrariedade da natureza. Nada que se compare à barragem que tem a medalha de prata africana – Cahora Bassa, em Moçambique, e que é um espectáculo de grandeza medonha no despenhar de águas, garganta do Zambeze abaixo.

Sabe-se que, nestas coisas do grande progresso, são muitos os prós e outros tantos os contras.

Assuão foi obra gigantesca que conciliou, na cabeça de Nasser, o sentido faraónico do poder vanguardista e redentor e o desejo de dar um empurrão de progresso ao Egipto. Sem o Assuão, dificilmente o progresso chegaria pela industrialização, pela modernização e pela qualidade mínima de vida aos camponeses atrasados e carentes, arrastando-se ao mando das leis do rio.

Nasser saberia, tão bem como sabemos hoje, que o preço desse progresso ia ser alto (demasiado) – destruição de grande parte do legado civilizacional e monumental da cultura egípcio-núbia (uma parte, ainda a Unesco conseguiu salvar das águas); as alterações climatéricas; o desenraizamento e deslocamento das tribos núbias; perda do efeito nutriente do Nilo sobre as suas margens (porque as inundações acabaram e os nutrientes vegetais que o rio traz de África passaram a ficar retidos nas comportas) e consequente progresso da desertificação até à linha de água do Nilo. Hoje falta a bênção dos aluviões e sobra a destruição química de terras pobres pelo exagero no uso de adubos. Como se a química pudesse substituir a bênção da natureza.

Americanos, ingleses e franceses viraram as costas no apoio à obra de Faraó Nasser, os primeiros a quem ele pediu apoio para a construção da barragem. Não por causa do ambiente, note-se. Nasser era um desalinhado com ímpetos de progressismo “socialista-árabe”. Então, Nasser virou-se para os soviéticos e aí encontrou todo o apoio que deu origem à maior realização da tecnologia soviética fora de portas. Por um lado, a URSS precisava de marcar pontos em Àfrica e no mundo árabe, por outro lado, há muito que o Kremlim tinha feito tábua rasa das preocupações ambientais quando a industrialização era para avançar a todo o vapor. Na altura, Nasser era uma das melhores cartas a jogar no tabuleiro geo-estratégico. Para os americanos, era carta a descartar (Israel era o ás de trunfo). Nasser tornou-se aliado soviético apesar de, antes, ter liquidado os comunistas egípcios até ao último exemplar. Mas isso sempre foram miudezas para a praxis m-l.

E se aquilo é terra núbia, terá havido alguma consideração étnica na balança da decisão. As grandes vítimas seriam os negros egípcios-núbios, não é verdade? E os beneficiados não eram os egípcios-árabes? Qual a dúvida, então?

Nasser não viveu o suficiente para inaugurar, no início da década de setenta do século XX, a Barragem de Assuão. Coube ao seu sucessor, Sadat, cortar a fita, correr com os soviéticos do Egipto para fora, tornar-se amigo de americanos e construir a detente com os israelitas (não gostaram os Irmãos Muçulmanos desta última parte e limparam-lhe o sebo, como se sabe).

O progresso passa por ali (incluindo o da vitória do deserto). Naquele monstro de massa de água a alimentar turbinas.

(Foto de Pedro Tunes)



















Publicado por João Tunes às 23:34
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NILO E SINAI (14)

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Passeio de faluca pelas águas do Nilo é prazer que não pode faltar. Sobretudo no curso (relativamente) largo entre as margens de Assuão (cidade), sentindo as águas mansas e de azul intenso, saltarem, levantando dedos de espuma para acariciarem o bojo do pequeno veleiro.

Já desconfiava mas confirmei rapidamente que a cantada faluca não era mais que cópia da falua que, no Seixal, se passeia pelo Tejo. Afinal, versão reduzida da velha fragata com que, em menino, ainda vi transportar bens pelo Tejo e alimentando a velha classe dos fragateiros barreirenses e que Mestre Augusto Cabrita imortalizou na sua arte de fotógrafo genial.

Dizem eles que quem não se banha no Nilo, perde a grande oportunidade de ser feliz. E a faluca, navegando e aportando na zona mais límpida do Nilo, oferece essa oportunidade de boa venturança. Acreditei é claro, ali o prazer é exclusivo dos crédulos. Mas resisti a ser feliz com tanta facilidade. A minha namorada e o Pedro não se fizeram rogados. Ainda bem. Sejam eles felizes que eu logo fico pronto para ir para o céu.

(Foto de Pedro Tunes)







Publicado por João Tunes às 23:29
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NILO E SINAI (13)

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Os egípcios riem-se quando falamos do Deserto do Saara. Porque saara quer dizer deserto (apenas). Aquilo que nós chamamos Saara, eles chamam Grande Saara (ou Saara Central). E saaras há muitos. No norte de África, o deserto costeiro (prolongamento do Grande Saara até ao Mediterrâneo) vem, no sentido ocidente-oriente, desde a parte mais oriental da Tunísia, ocupa toda a Líbia e atravessa o Egipto até ao fim do Sinai (para depois continuar pela Ásia dentro).

Não fosse o Nilo, o Egipto seria como a Líbia – uma imensa extensão desértica, pintalgada de alguns pequenos óasis nas zonas de depressão, com toda a vida e actividade concentradas na costa mediterrânica.

Mas um rio, um grande rio, arrasta as águas desde as zonas pluviais de África e rasga o deserto para ir abraçar o Mediterrâneo. Resultado primeiro: enquanto a Líbia não passa dos três milhões de habitantes, o Egipto vai nos setenta milhões e com tendência para aumentar.

Os fascínios oferecidos pelo Nilo são vários. Primeiro, o contraste entre o seu curso (por vezes caudaloso) de água azul e as margens do deserto mais árido, apenas pontuado de vida na estreita faixa em que alguma água irriga a terra. E onde isso acontece, a vegetação é profusa e a vida animal é farta. Depois, as marcas de monumentalidade civilizacional que sublinham as margens e as suas ilhotas. Terceiro, os milhões de seres humanos vivendo dele e por ele. Mais os que procuram a ventura de o conhecer e guardarem dele a lembrança na retina.

Para os antigos egípcios, o deserto ocidental que ladeia o Nilo (o deserto líbio) era fonte de perigo (ataque dos berberes líbios) e morada para os mortos pois era sempre lá que se enterravam os corpos na espera da vida eterna.

Quanto à margem oriental, mais protegida porque a costa do Golfo do Suez não lhe fica longe, embora igualmente desértica, era o local preferido para se habitar enquanto vivo.

Duas margens e dois desertos - um como reino de mortos e outro como abrigo de vivos. E um rio ao meio a quem tudo se deve e quase tudo se agradece. O que não evitou cometimento de pequenas e médias delinquências e mesmo malvadez grossa para com ele. Mas isso é outra história dentro da história da forma como o homem lida com a natureza. Lá iremos.

(Foto de Pedro Tunes)















Publicado por João Tunes às 11:50
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NILO E SINAI (12)

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Cinco dos dias de circuito albergaram-se num cruzeiro no Nilo. Ou seja, o hotel era um barco com todas as utilidades necessárias. Quarto estreito mas capaz, em tudo o resto não se notava que se estava sobre água. Com as vantagens da vista, sobretudo no piso superior em que as noites cálidas nos felicitavam pela calma do rio e das suas margens. No mais, serviço impecável, perfeita organização, boa gastronomia, simpatia a transbordar.

A instalação deu-se em Assuão (no Sul, a mil quilómetros do Cairo e perto do Sudão) no coração do Alto Egipto. Viu-se o que se pode ver. Subida do Nilo até Edfur e depois Kum Ombo. Novas sortidas em terra. Mais navegação até Luxor, a meio caminho entre Assuão e Cairo, e zona da maior concentração monumental. Verdade que este “cruzeiro” foi mais ponto de apoio hoteleiro que navegação mas ficou-me a sensação única de, deitado na minha cama, purificar os olhos com as margens do Nilo a correrem-me na vista.

Ficaram algumas saudades depois, quando, malas às costas, houve que apanhar o comboio para fazer os restantes quinhentos quilómetros até ao Cairo. Não por falta do Nilo que se iria reencontrar a embelezar o Cairo. Mas apenas porque ali se estava mesmo bem. É que, dentro do Nilo (deitado nele), a sensação é insubstituível.





Publicado por João Tunes às 00:21
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Quarta-feira, 22 de Setembro de 2004

NILO E SINAI (11)

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Ainda estão para decifrar todos os esses e erres da técnica usada pelos antigos egípcios no processo de mumificação. E entender toda a ideologia desse ritual.

Sabe-se que a mumificação tinha em vista preparar os corpos para a vida eterna (o mesmíssimo sonho dos Camaradas que queriam – e querem - conservar o mito de Lenine para nos inspirar para todo o sempre a preferir a revolução à democracia). No caso dos egípcios antigos, a vida além da morte era concebida como prolongamento da vida terrena (em versão melhorada). Com o corpo, as utilidades e os bens. Eles iriam viver após morte como cá, mas, de preferência, melhor. Se passassem na avaliação de desempenho feita por uma consultora da moda contratada pelos deuses...

Conhece-se muito mas não tudo. Adquirido é que as vísceras (partes moles) eram extraídas por um corte lateral no corpo que depois era sujeito a tratamentos vários de conservação. As vísceras extraídas eram conservadas num vaso próprio depositado ao lado do corpo para que o passante à vida eterna pudesse usar convenientemente o estômago, os rins, o fígado, os intestinos e outras utilidades ali depositadas e à mão de semear para sua utilização. Duas partes ficavam de fora e com destinos diferentes. O coração não era extraído e o cérebro era tirado a partir do nariz e atirado para o lixo.

O coração ficava no corpo mumificado porque da sua avaliação pelos deuses dependia o veredicto sobre o direito à vida eterna. Se, quando colocado numa balança, os deuses confirmassem que ele pesava menos que uma pena de ave, o candidato era encaminhado para o sucesso da vida eterna. Assim, os egípcios de coração leve por aí andarão ainda nas voltas dos nossos caminhos. Mas os de coração grande, mesmo que aumentado por colheitas de solidariedade, finaram-se no finito. Fica-me o mistério do porquê se preferirem corações leves. Até parece que eles adivinhavam o neo-liberalismo dos nossos dias. Sei lá.

Quanto ao destino do cérebro, o mistério é bem menor. Pensar, ser, saber, sentir, sempre foram lixo comparando com ter e poder. Não é?

(Foto de Pedro Tunes)











Publicado por João Tunes às 23:27
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NILO E SINAI (10)

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Nilo. Entre os que conheço, o soberano dos rios. Obrigado Pedro.

Idolatro rios. Os rios habitam-me e dão-me o cajado para aguentar o peso e a leveza da alma. Talvez para não dar uma cabeçada na esquina mais próxima e ofender a minha Mãe perguntando-lhe com que direito permitiu que eu viesse ao mundo (diria assim, em acto malvado, porque sei que fui mais permitido que desejado). E a última pessoa a ofender, sequer incomodar, é a Mãe (religião minha).

Amar tem que ter um critério. Mesmo que estúpido, irracional ou apenas sem conta nem medida. Porque tem de haver algo de profundamente racional na irracionalidade mais funda. Talvez adore rios por simples míngua de ícones. Sei lá. Gosto. Gosto mesmo. Um dia destes vou entender o intendível…

O Douro marcou-me as origens e o reencontro juvenil. No Pinhão e na Foz (um bónus de desperdício para a insuportável cambada de tripeiros bimbos).

O Tejo ficou-me como companheiro de toda a vida. Desde que o vi como fronteira entre o Barreiro do meu formato como homem e a capital do Império. Depois, odiei-o como rio que me levou às penas em África (confesso que lhe cuspi nas águas quando o Niassa levantou ferro). Agora, tenho-o na paz serena de companheiro a quem apenas verbero impedir-me tantas horas de beijar a minha amada. Mas o rio mais bonito do mundo, isso sempre. Não pelos seus méritos (sei lá quais são os méritos do Tejo…). Apenas porque é meu (ai os afectos que repousam no sossego da posse!). Tanto que, quando lhe olho as águas, não sei quais são dele mesmo ou são partes minhas. A minha filiação no Tejo levou-me a querer-lhe os cursos de alimento. O Zêzere é o Adónis do Tejo, vê-se bem. Mais bonito que o pai como convém para quem tem sina de se desfear, desfazendo-se quando se entrega ao mar. Subindo-lhe as entranhas, fui encontrá-lo no fio humilde do Unhais a fazer um risco ao meio em Pampilhosa da Serra, depois de cair escancarado da Barragem de Santa Luzia. Tejo, um sortilégio de afectos, será isso?

O meu critério de apreciação de cidades por esse mundo fora, dependeu em larga medida do olhar sobre os seus rios. Talvez por isso, a minha adoração por Praga, por Bagdade e por Kiev. E a embirração fluvial com Paris, Londres, Moscovo e Madrid.

Faltava o Nilo. Pois faltava. E agora? Sentença salomônica: o Tejo fica com o afecto e o Nilo com a soberania. Merece voltar-lhe. Ao Nilo. Porque o encantamento seca a garganta e o talento, voltarei a falar do Nilo quando a minha voz puder sair do casulo da emoção. Raio de defeito este que me faz chorar mais facilmente do que odiar. E eu sei bem que um homem não chora, nunca chora. Muito menos perante um rio. Sobretudo quem só conseguiu soltar cristais de cloreto de sódio no último olhar perante a sua mãe em repouso de despedida e, depois, ficou com o remorso da imagem das águas dos rios para compensar o défice líquido que falhou no maior adeus. Assim sendo, até depois.













Publicado por João Tunes às 16:30
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NILO E SINAI (9)

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Sempre o futebol a fazer de primeira ponte e de BI. Já cansa. Antes suportável quando Eusébio era o rosto da lusitanidade. Mas agora…

- De que país?
- Portugal.
- Ah, Luís Figo!

Insuportável. Pior quando se repete vezes sem conta, por cada esquina, cada encontro e cada tropeção. Logo esse. O pesetero. Aquele que trocou o dever de camaradagem no sofrimento colectivo pelo amuo solitário em companhia de uma Senhora de Fátima de balneário. O tal que, segundo o meu amigo catalão Robert me repetia ainda este Verão, há-se viver inundado em dinheiro mas com o coração frio. Pois, o galáctico.

Claro que os egípcios, abrindo as bocas em sorrisos de fivela a pronunciarem o nome de Figo, pensavam que assim me aqueciam o coração e coleccionavam mais uma amizade de circunstância. Nos rostos não se lêem as antipatias de estimação e de embirração.

Assim, o enfado tinha de ser contido. Mas a provocação estava feita e não podia ficar sem resposta. O remédio estava em atingi-los no seu próprio orgulho nacional.

- Figo? Não. Sabri!

Claro que ali, o Sabri era tão conhecido como o Figo. A coisa compunha-se de imediato. Sabri era um dos deles e já foi meu (e guardo dívida de algumas alegrias). Os sorrisos eram finalmente partilhados. O nome de Sabri funcionava bem melhor para selar uma simpatia luso-egípcia. Sempre o futebol.

(Foto de Pedro Tunes)

















Publicado por João Tunes às 13:34
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Terça-feira, 21 de Setembro de 2004

NILO E SINAI (8)

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Impossível seguir e decifrar todos os sinais das marcas faraónicas. Já não é nada mau apanhar-lhes pegadas do rasto e tentar entender (tarefa nada fácil) alguns dos motivos, enquadrando-os no tempo e no espaço. E a floresta imensa de pistas e de hipóteses não facilita. Ainda bem, pois permite-se que a imaginação navegue e se faça todo o tipo de projecções (para o passado e para o futuro). Talvez seja isso, acrescido à miríade de testemunhos largados ao porvir pela antiguidade egípcia, que constitui o cerne da atracção irresistível que a egiptologia exerce em tão largas camadas (cultas e menos cultas) de todos os continentes. Ao fim e ao cabo, o homem, qualquer homem, tem a ambição de saber de onde vem para, pelo menos, serenar a inquietação do mistério (ou do medo) de tentar adivinhar qual o tal sítio para onde vai.

O poder faraónico foi patológico no modo como exprimiu o absolutismo da capacidade do querer versus os limites castradores e inelutáveis da mortalidade dos seres vivos. Ou seja, os faraós foram sempre inquietados, maniacamente, pela luta exacerbada entre as pulsões que conduziam ao infinito (no querer, no poder, no fazer e no ter) e a pulsão da decepção pelo finito (a morte). Ao cabo e ao resto, nada de diferente das tormentas eternas dos mortais de todos os tempos. A grande diferença estará em que o homem vulgar (ontem, hoje e amanhã) recorre à mezinha de se apagar através da consciência da sua insignificância, conseguindo atomizar-se, mas o poder absoluto quer ser total e absoluto na vida, prolongando-a para além da morte.

Claro que falar em poder faraónico é uma simplificação. Os interesses pela gestão dos medos eram muito vastos e os verdadeiros centros de poder provavelmente lhes passavam ao lado (nos sacerdotes?). Porque toda aquela angústia representada parece ser demasiada para qualquer ser humano, o mais certo é que os próprios faraós fossem apenas actores menores, tão mimados quanto manipulados, de uma encenação genial e burocraticamente estabelecida pelos espertos racionalizadores da metafísica (sacerdotes, escribas, vizires, arquitectos, nobres) que, aumentando poder e proventos, iam acrescentando mito sobre mito, imitando a construção das pirâmides ou dando a chave para a sua concepção.

Aquela civilização desmedida não pode ter sido obra de uma sucessão de poderes individuais, mesmo sendo (real ou fingidamente) absolutíssimos no querer e no poder. Para mais, como seria então possível decifrar o enigma de um número apreciável de faraós terem sido crianças (e mulheres, numa fase em que elas eram pouco mais que instrumentos procriadores)? Os faraós terão sido, mais que poderosos, instrumentos de concentração de mitos manipulados, neles convergindo a representação dos interesses e dos medos do poder real.

Tenha-se em conta que o faraó, logo que empossado, era marcado pela obsessão do finito e da luta pela sua superação. A principal função e investimento que lhe era atribuída, na entronização, era a preparação da sua vida eterna, ou seja, a sua vida depois da sua morte. O que, desde logo, era uma forma de o aprisionar no medo da morte e desvalorizar o poder do seu mando enquanto Rei vivo. E alguns haveriam mais que interessados em empurrar o faraó para a paranóia do simbólico, deixando que a praxis lhes escapasse das mãos, caindo noutras. Por outro lado, a atribuição de um papel divino aos faraós não resultava noutra coisa que não fosse o afastamento da gestão corrente dos bens e da ideologia. A mumificação, a prevalência dos templos funerários relativamente aos palácios de residência, a preparação da residência funerária desde o início do reinado, evidenciam o quê? Pois, faraó posto, faraó morto.

Que dizer ainda da regra do incesto aplicada como apanágio e privilégio das famílias faraónicas? Porque é que a maioria dos faraós, e candidatos a serem-no, desposavam as filhas, as mães e as irmãs (ou quando uma mulher era faraó fazia o mesmo nos ramos masculinos)? Obviamente que o pretexto era a circunscrição da elite mas havia, decerto, quem soubesse que a descendência assim gerada seria mais facilmente manipulável e aumentaria o grau de diminuições patológicas propícias a alimento das derivas simbólicas.

Para grandes poderes, grandes representações. Sobretudo quando os meios parecem infinitos. As marcas da civilização egípcia, essencialmente de tipo funerário, permaneceram pelo seu excesso (na quantidade e na monumentalidade), pela genialidade da sua execução e contaram com o manto protector das areias dos desertos. É um espelho da estupidez do poder, do excesso de ambição face às leis da vida e do génio na forma como procurou transpor, ramificar e sacralizar os medos humanos.

Ontem como hoje?

(Foto de Pedro Tunes)

















Publicado por João Tunes às 23:31
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NILO E SINAI (7)

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Naquele meio e com tantos turistas à solta, o simpático e paciente camelo não podia faltar. Eles não só não faltam como abundam. São sobretudo conduzidos por núbios e berberes. Um passeio de camelo faz parte da ementa de qualquer turista. O andamento é agradável (em ondas suaves) e a emoção não falha no arranque e na chegada (pelo facto de levantarem e baixarem, em etapas distintas, os dois pares de patas).

Para além do turismo, o camelo continua a ter uso intenso de utilidade para as tribos que vivem nos desertos ou neles se deslocam e serve às mil maravilhas para o patrulhamento policial nas zonas mais áridas (caso das pirâmides junto ao Cairo).

Pensando bem, deserto sem camelo não é deserto mesmo.

(Foto de Pedro Tunes)







Publicado por João Tunes às 19:14
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NILO E SINAI (6)

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Os setenta milhões de egípcios concentram-se em território reduzido – vale do Nilo, costa mediterrânica, ao longo do Canal do Suez e em meia dúzia de polos habitados da costa oriental do Golfo do Suez/Mar Vermelho e no norte e na periferia da Península do Sinai. A macrocefalia urbana é mais que evidente – Cairo (dezoito milhões de habitantes), Alexandria, Assuão e Luxor, absorvem a maioria da actividade e da massa humana.

Os contrastes sociais são gritantes porque extremados – muitos muito ricos e muita vida de subsistência precária na agricultura, na pesca e na pecuária, nos serviços básicos e uma massa imensa de lupen que vive de expedientes, pequenas serventias e comércio informal desenvolvido nos pólos turísticos. As forças armadas e de segurança têm contingentes elevadíssimos que absorvem meios humanos consideráveis. Entretanto, a classe média é pujante e numerosa, em grande parte servindo a burocracia estatal, os serviços, as empresas estatais e estrangeiras e o turismo, na sua maior parte forjada na mais importante e prestigiada Universidade árabe (Cairo). As minorias (núbios e berberes) alimentam os segmentos sociais inferiores. Segundo as regras da ocupação consolidada, a numerosa camada egípcio-árabe (hoje, perfeitamente fundida) detem o poder económico, político, cultural, religioso e militar, bem como é ela que alimenta a classe média. Abaixo da classe média, os salários são muito baixos e calcula-se em três milhões o número de desempregados.

Os recursos não são insignificantes – receitas do trânsito no Canal do Suez, turismo, remessas de emigrantes (os egípcios alimentam uma enorme colónia de emigração qualificada porque geram excedentes de licenciados que ocupam postos relevantes e bem pagos nos outros países árabes que vivem do petróleo), petróleo e gás natural.

O aparente equilíbrio nas tensões sociais dentro de um quadro marcado pela enorme polarização sócio-económica, deve-se a: forte aparelho repressivo e limitação das liberdades (o Egipto está muito longe de qualquer padrão democrático minimamente aceitável); fusão de interesses entre o aparelho militar de comando político e a oligarquia económico-financeira; apoio do capitalismo internacional (sobretudo dos Estados Unidos); forte capacidade-tampão da classe média; peso da ideologia de obediência e de conservadorismo segregada pelo Corão; o turismo de massas que proporciona um sem número de tarefas, expedientes, artesanato e pequeno comércio que alimenta uma monstruosa economia formal mas, também e sobretudo, informal. De qualquer forma, para padrões terceiro-mundistas, a corrupção não é visível; não se vêm sinais de fome ou de subnutrição; os padrões de organização e de eficiência são altos; a delinquência está sob absoluto controlo; o optimismo e os prazeres de viver, conviver e comprar, dominam a atmosfera social.

A forma como a sociedade egípcia está formatada, torna o país num local de oferta turística aliciante – o ambiente social é agradável, as coisas estão organizadas e simpaticamente apresentadas, a gastronomia é excelente, a sede cultural encontra ali fonte para todos os excessos e exigências, há excelentes complementos de sol-mar; a simpatia egípcia é inexcedível; os preços são baixos-moderados. Sabendo isto (o enorme poder de equilíbrio sócio-económico que o turismo proporciona), o poder protege o turismo e trata excelentemente os forasteiros. Mas o mesmo sabe o fundamentalismo islâmico (reprimido com brutalidade) que procura criar pontos de rotura através da transformação dos pontos de intensidade turística em focos de acção terrorista. Alimentado sobretudo pelos meios universitários, o fundamentalismo não consegue visibilidade (desde que assassinaram dezenas de turistas alemães em Luxor há cerca de dez anos atrás) mas logicamente que não morreu nem sequer adormeceu. Para já, conseguiu o adiamento do aprofundamento das normas democráticas, o monstruoso crescimento do aparelho repressivo, alguma retracção na procura do Egipto como destino turístico e alguns retrocessos de comportamento social (sobretudo no plano da libertação da mulher).

A política oportunista do governo egípcio, iniciada com Sadat e continuada com Mubarak, segue a mesma intenção de privilegiar o status egípcio. A “moderação egípcia” afasta o país das causas bélicas perante Israel (foi esse o preço para recuperarem o Sinai); permite-lhes as boas graças americanas; ocuparem relevância na burocracia diplomática islâmica e internacional; viverem dos rendimentos. A sua diplomacia é de bazar, tudo se procurando resolver pelo regateio que desemboca no eterno ajuste por “metade do preço”. Está para ver em que medida o fundamentalismo doméstico vai permitir o prolongamento deste posicionamento constante no meio do tabuleiro. Quanto a perspectivas de avanço, elas não se vislumbram – o Islão puxa suficientemente para trás os mais tímidos arremedos de modernidade.











Publicado por João Tunes às 16:35
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NILO E SINAI (5)

Egipto 588.JPG

O Egipto é um dos países mais importantes e poderosos de África, do mundo de ocupação árabe/muçulmana e do Magrebe. Acresce a sua colocação numa zona nevrálgica de transição de África para o Mediterrâneo, de África para a Ásia, paredes meias com Líbia, Israel, Palestina e Arábia Saudita. Possui o Canal do Suez que assegura a rota entre o Mediterrâneo e o Mar Vermelho/Índico.

Com uma área territorial imensa, a sua população de setenta milhões de almas (devotas de Maomé na sua esmagadora maioria, tanta que quase faz o pleno) concentra-se num enorme T (rodeado de deserto inóspito) formado pelo vale do Nilo (cujas margens com vida humana, animal e vegetal, raramente excedem os cem metros) e a costa mediterrânica. No Cairo, amontoam-se dezoito milhões (!) de egípcios. Em mais de noventa por cento do território reina o deserto absolutamente inabitável.

O Egipto enquadrou-se, desde o poder pré-feudal, dentro do perfil de colónia desejada, tendo sido dominado por quase todas as potências com apetência colonizadora. Julgo que, essencialmente, devido a três factores – o seu posicionamento estratégico, as riquezas naturais e o peso simbólico da sua riquíssima civilização, propícia a gerar quistos de complexos na ideologia de superioridade dos conquistadores. A regra foi sempre a rendição cultural dos ocupantes à força monstruosa e inapagável da civilização acumulada no vale do Nilo. Os colonizadores dominaram, expropriaram, exploraram, mas tiveram sempre de se ajoelhar perante a monumentalidade inapagável daquela herança civilizacional inesgotável. Esse mesmo efeito de continuidade de sublimação da grandeza humana (as mais das vezes pela representação através do absurdo a desafiar todos os limites) levou a que o poder faraónico tivesse sido ocupado, em várias fases, por minorias de etnias, de mercenários ou de ocupantes - núbios, mamelucos e ptolomeicos. Ou seja, até à ocupação romano-cristã, mesmo quando as dinastias egípcias fraquejavam, o mando era sempre usurpado pela continuidade da representação faraónica.

O domínio romano-cristão foi o primeiro que tentou levar a cabo o genocídio cultural da civilização egípcia. Mas a ânsia de impor o monoteísmo e apagar os traços das adorações pagãs revelou-se estulto. Ficaram umas tantas picagens de ridículo impotente nalguns sinais de culto e pouco mais. A tarefa não podia ser cumprida. Tanto mais que os mantos das areias do deserto se encarregaram de proteger a maior parte dos símbolos, cobrindo-os e conservando-os. Assim, estranho paradoxo, o deserto – sempre em luta de posse com o vale do Nilo – mostrou-se com um tremendo fair play, protegendo o inimigo de sempre, oferecendo-lhe as areias protectoras para preservar a cultura criada pelo rio, o rival de sempre e para sempre. Dir-se-á, em ironia, que a Barragem do Assuão – pelo favor feito à progressão do deserto – terá sido o tributo com que Nasser e os soviéticos, na segunda metade do século XX, resolveram pagar a dívida de conservação cultural que o deserto antes havia prestado ao Nilo.

Na posterior ocupação islâmica, bastou o mando e Maomé, semeando mesquitas entre os espaços e as marcas anteriores. O Corão não deitou abaixo pirâmides, limitou-se a abrir as folhas, usando-as como espaldar. Ocupantes prosaicos estes. Até hoje. Sobretudo hoje.

O domínio otomano integrou o Egipto no seu espaço imperial, dando-lhe dignidade subalterna proporcional ao seu valor. Na condição que o Cairo não tentasse disputar a importância a Istambul. Não o fez. Os egípcios dobraram a espinha. A monarquia passou a ser faz de conta. Com os otomanos, depois com franceses e ingleses. Foi assim até Nasser. Porque depois de Nasser, o Egipto volta a entrar na História. Outra história, pois claro. Do velho Egipto colonial, sobrou pouco mais que Faruk, um “rei” tonto derretido em luxúria. O último. Desprezado e escorraçado pelos seus. Exilado com os bens surripiados e aboletando-se à sombra da hospitalidade de Salazar que lhe deu cama e roupa lavada na pátria lusa, a troco dos dinheiros para gastos que ele conseguiu meter na mala e por cá foi espalhando.

(Foto de Pedro Tunes)













Publicado por João Tunes às 00:26
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Segunda-feira, 20 de Setembro de 2004

NILO E SINAI (4)

A unicidade egípcia é constituída por várias peças étnicas e civilizacionais. Muitas vezes contraditórias. Desde sempre foi assim, note-se. Não com os mesmos recortes nem com as mesmas relações de poder, mas o Egipto antigo e moderno sempre foi um puzzle, um conflito, um apetite e uma dialéctica. O que gera a eterna interrogação: Egipto é África ou Mediterrâneo (isto é, marco greco-romano)? Para não falar no Sinai (negócio à parte). Os egiptólogos dividem-se nas opiniões e os africanos verberam o centripetismo de se tentar transpor a civilização egípcia para fora da identidade africana.

VALE DO NILO:

Nem sequer o eixo do Nilo é homogéneo. O seu curso, do coração de África para o Mediterrâneo, transformou-o, desde sempre, num rio tão confuso quanto poderoso. Porque a sua enorme extensão e a riqueza que espalha no meio de medonhas mínguas, transformou-o num eixo de sobrevivência e de ponte de povos, umas vezes em harmonia, outras em disputa brava, as mais das vezes na paz da diversidade com o preço da subserviência dos mais fracos aos mais fortes.

No início da sua parte egípcia, o vale do Nilo (o Alto Nilo) é evidentemente africano e à vista desarmada. Não na paisagem (no clima, só é ainda mais quente), mas nas gentes – ali é terra núbia que se confunde com a Somália e o Sudão. Pele bem escura, ritos animistas a perdurarem, traços de sedentarização precária e forçada pelas circunstâncias, mulheres que disputam o ceptro das mais belas do mundo (e quanta beleza núbia antes fui encontrar, bem ao sul, em Moçambique, o que será prova de que a beleza dificilmente encontra poiso certo). Núbios que transportam uma arrogância engolida (pois até foram escravos e Faraós), lixados (e bem) pela Barragem de Assuão, com dores estampadas nos rostos e nos hábitos da mão estendida aos proventos do folclore turístico.

Na parte do Baixo Nilo (mais ou menos, de Luxor até ao Cairo), encontramos uma nova identidade étnica, quase nada africanizada e encharcada de marcas magrebinas e da policromia da típica arabização. O poder mora ali, nota-se. Quase todo no Cairo. Poder do Islão, poder do dinheiro, poder do mando, poder da corte castrense que criou Nasser, empossou Sadat e sustenta Mubarak (pelos vistos, amanhã apoiará o Mubarak Júnior).

Mas, numa coisa, o Nilo é uma constante. Na forma como combate e é combatido pelo deserto. Num permanente medir de forças. E, hoje (depois da Barragem de Assuão), o Nilo está na defensiva. Porque a Barragem (fonte de progresso, é claro) foi a maior afronta feita ao Nilo. Regularam-lhe o curso, controlaram os apetites das inundações, levaram a electricidade às aldeias, mas retiveram os nutrientes arrastados desde a África profunda e deixaram as marcas da secura a poucos metros do fio de água. O deserto avançou nas margens e tornou gritante o contraste daquele rio que ficou ainda mais com cara de dissonante paisagístico. E climatérico, diz o deserto, esfregando as mãos de alegria. Só ganharam os berberes líbios, com repouso mais garantido.

MARGEM MEDITERRÃNICA:

Com base na outrora poderosa e dual Alexandria, a costa mediterrânica é Magrebe, ponto final. Magrebe greco-macedónico, é claro. E estamos entendidos, portuguesmente falando. Mas não aguenta a competição com o poder centralista do Cairo.

SINAI:

É Ásia. Ou Arábia, se preferirem. Pertence ao Egipto como podia ser de outro lado ou valer por si próprio. Deserto montanhoso. E bem montanhoso. Terra berbere e partilha de outras bandas civilizacionais. Também terra de luta e de guerra, quem o não sabe? Os berberes, cansados de guerras alheias que lhe perturbaram o sossego nómada, zarparam para as costas mediterrânicas e do Mar Vermelho, passeiam agora os turistas em camelos. Ou parecido.
Publicado por João Tunes às 20:57
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