Domingo, 26 de Setembro de 2004

Para os cristãos, judeus e muçulmanos, é impetuoso o apelo à identificação mítica e simbólica de subir os dois mil e quatrocentos metros do Monte Sinai, no centro da Península, e assistir a um dos mais celebrados nascer do sol em todo o mundo onde a lenda diz que Moisés recebeu as Tábuas dos Dez Mandamentos. Para quem joga fora destes baralhos religiosos, resta a grandeza estética da experiência. O que não é nada pouco.
A jornada exige estaleca e boa forma física. As estradas estão em mau estado e o trajecto é tormentoso na demorada aproximação. Significa uma noite perdida, o contacto com o frio intenso, a dura e demorada caminhada a pé (duas horas de subida e outras tantas de descida). Para que tudo esteja a postos no minuto em que a luz se anuncia no vermelho do horizonte, a bola de fogo solar dá origem à manhã e os montes se iluminam de um vermelho de grande profundidade e brilho.
O magnífico e antiquíssimo Mosteiro de Santa Catarina, ocupado por quarenta monges ortodoxos gregos, dá-nos uma riquíssima vista do espólio do cristianismo ortodoxo. Só por si, vale a pena dos trabalhos para lá se chegar.
(Foto de Pedro Tunes)

Paraíso para os mergulhadores, Sharm el Sheik. A organização e os meios estão acessíveis. Com qualidade e responsabilidade. O desafio é permanente. A oportunidade convida, em apelo incessante.
Desenganem-se, porém, os que pretendam
fazer praia por ali. Os acessos ao mar são escarpados, onde a rocha acaba, começam os corais. O atrevimento de entrar no mar pelo seu pé é castigado com as devidas marcas no corpo. A entrada naquele mar mais que apetecível só é recomendável de barco ou numa passadeira flutuante. Para
praia, a opção egípcia está no Mediterrâneo, nas praias junto de Alexandria. O Mar Vermelho é coutada de mergulhadores, ou quase.

Antes da ocupação israelita (
guerra dos seis dias, década de sessenta no século XX), a Península do Sinai era, no Egipto, pouco mais que território dos nómadas berberes, zona de extracção mineral e refúgio para alguns monges cristãos. Israel transformou Sharm el Sheik num poderosa e estratégica posição militar (tendo em conta a proximidade com o tráfego pelo Canal do Suez e pela proximidade aos portos sauditas exportadores de petróleo) e em instância turística para gozo das delícias do Mar Vermelho.
Após a devolução do Sinai ao Egipto, Sharm el Sheik (cujas estruturas hoteleiras e de lazer haviam arrancado com os israelitas) tornou-se num pólo de crescente intensidade turística onde todas as grandes cadeias hoteleiras internacionais assentaram arraiais. Por um lado, Sharm el Sheik permitiu diversificar e complementar a oferta turística cultural do vale do Nilo, por outro lado permitiu manter o fluxo turístico, compensando as diminuições de procura do vale do Nilo desde os atentados terroristas em que os turistas foram os alvos. Entretanto, os berberes, afugentados do deserto montanhoso pela instabilidade e belicismo da região, sedentarizaram-se, na sua maioria, na costa norte e mediterrânica e em Sharm el Sheik onde se empregam nos trabalhos menos qualificados da prestação turística (similar ao ocorrido com os núbios do sul do vale do Nilo).
O principal pólo de atracção de Sharm el Sheik é constituído pelas águas quentes e transparentes do Mar Vermelho que se conjugam com a riqueza em corais a pouca profundidade (só com paralelo no mar australiano) e em espécies marítimas (mais de mil e quinhentas espécies diferentes de peixes de todas as cores, tamanhos e feitios). O mergulho é, ali, a forma de recreio mais procurada.
O deserto montanhoso do Sinai, constituído por uma miríade de montanhas rochosas com excelentes reflexos de luz e projectando uma vista magnífica sobre o Mar Vermelho, constitui ponto de diversidade de fruição e o Monte do Sinai (ou Monte Moisés), no centro da Península, complementado com a visita ao deslumbrante Mosteiro de Santa Catarina, permite que, entre dois mergulhos, o espírito fuja à rotina, desviando-se para a estética da natureza e da religião.
(Foto de Pedro Tunes)

Terminada a primeira parte do programa, havia que rumar do Cairo para Sharm el Sheik, no extremo sul da Península do Sinai e na confluência dos golfos que se ligam ao Mar Vermelho, passando de África para a Ásia, na linha do Canal do Suez. Quinhentos quilómetros feitos de autocarro com vista para o recorte da costa ocidental da Península.
Também foi o adeus ao Nilo, ao deserto plano, às marcas de civilização milenar e à
megacapital do Egipto. O Cairo deixara marcas agradáveis de recordação de uma cidade de muito mas digerível bulício, caótica mas agradável, moderna e o seu excelente e bem recheado Museu tinha proporcionado a vista fascinante dos
interiores da sua extraordinária civilização, permitindo fruir a parte gémea das marcas vistas desde Assuão até Gizé. Lá, num Museu em que a demora de um minuto de apreciação de cada peça acarretaria que a visita demorasse nove meses, depositam-se os sinais de representação simbólica e estética de uma civilização num recuo de cinco mil anos na marcha do poder dos homens.
Super star do Museu do Cairo é o recheio do túmulo de Tutankhamon, a parte mais visitada e mais célebre em todo o mundo. Este Faraó terá sido dos mais insignificantes em poder efectivo e em tempo de
reinado. Faraó aos nove anos de idade, morreu aos dezoito e o mais importante que terá decidido foi mudar de nome de Tutankhaton para Tutankhamon (afastando-se da tentativa monoteísta do seu antecessor de declarar Aton como deus único), o que, mesmo assim, não deve ter-se devido a algo mais que a pressão dos sacerdotes nada felizes com a simplificação das adorações. Tão insignificante foi o hoje celebérrimo Tutankhamon que o seu nome não consta nas listas reais egípcias e nem o túmulo (muito pequeno) que o recolheu no Vale dos Reis em Luxor lhe estava destinado (seria para uso de um alto funcionário Ali que vindo a tornar-se depois Faraó resolveu trocar a sepultura, julgando-se que em malandrice adicional à do envenenamento do jovem Tutankhamon). Tão insignificante era Tutankhamon e o seu túmulo, mais a ausência de referências na lista dos reis, que os saques sistemáticos, milénios fora, que limparam praticamente os recheios de todos os túmulos no Vale dos Reis, que o seu ficou ignorado e coberto pelas areias descarregadas sobre ele na procura dos túmulos mais valiosos. Só em 1922, por sorte, um arqueólogo consegue a proeza de encontrar o túmulo intacto e esquecido de Tutankhamon. O recheio impressionante de riqueza e de valor incalculável do túmulo de Tutankhamon serve sobretudo para permitir que a imaginação se solte no cálculo de como seriam os túmulos muito maiores de Faraós de grande importância (por exemplo, Ramsés II que reinou sessenta anos e com túmulo de enormes dimensões e com múltiplas câmaras e com decorações requintadas). Afinal, o saque e a sorte também podem servir para tornar o mais insignificante dos actores do poder em estrela da companhia.
A travessia do também célebre Canal do Suez foi pouco mais simbólica dado que se processou através de um túnel construído no fundo do Canal. Quando muito, serviu para confirmar que ele é estreito, tão curta no tempo foi a sua passagem. Retomado o contacto com a paisagem, o comboio pegado de navios em fila indiana a rumarem ao Mar Vermelho permitiu prever o intenso tráfego do Canal e calcular como serão importantes as receitas do mesmo para o cofre do orçamento do Egipto.
Descendo a costa ocidental da Península do Sinai, marginando o Golfo do Suez, o espectáculo muda de cenário e oferece-nos uma visão profundamente emotiva entalada entre a visão do azul magnífico do Mar Vermelho e a imponência do Deserto do Sinai todo constituído por altíssimas, inóspitas e rochosas montanhas de intensa luminosidade avermelhada (foi essa luminosidade que inspirou o baptismo de um Mar profundamente azul). Outro Egipto, ali. Rico em petróleo e em gás natural vê-se pelos sinais das explorações (sobretudo
off-shore) em actividade. O que ajudou a entender como são diversificadas as fontes de riqueza do Egipto dos nossos dias. Fosse a riqueza melhor distribuída, houvesse democracia e liberdade, fosse o Islão capaz de se incorporar na modernidade e estivesse afastada a ameaça do fundamentalismo islâmico, os egípcios teriam boas razões para se alegrarem por ali terem nascido.
A chegada a Sharm el Sheik serviu também para desfazer o grupo excursionista que havia criado afinidades naquela semana de férias. A maioria terminava a visita egípcia ali e regressaria a Lisboa em voo directo, pouco tempo depois da chegada à estância balnear mais célebre daquelas paragens. A nós e a alguns outros, sobrava mais uma semana egípcia, agora dedicada mais ao relax que à cultura.
(Foto de Pedro Tunes)
Sábado, 25 de Setembro de 2004

A religião copta já foi dominante. É uma heresia do catolicismo (por causa da miudeza da Santíssima Trindade). No resto, tudo igual ao culto apostólico romano.
Tem vindo a minorizar-se. Está sob fogo dos fundamentalistas islâmicos. Nota-se nos seus olhos, a névoa de uma minoria acossada. Lá vão ficando uns tantos resistentes, talvez porque não tenham abrigo de fuga como tiveram os judeus egípcios de que hoje só restarão uns cem em todo o Egipto.
(Foto de Pedro Tunes)

A mulher é a grande (provavelmente, a maior) vítima da incapacidade do Islão em acolher a modernidade. Desde que os fundamentalistas islâmicos arreganharam os dentes, as mulheres egípcias regridem na sua afirmação de direitos como processo de auto-defesa. O panorama ainda é variado mas a lástima alastra. Quando deixará de ser uma fatalidade?
(Foto de Pedro Tunes)

O Cairo é o grande símbolo da ocupação árabe e muçulmana do Egipto. Mesquita em cada esquina, competindo no requinte possível. Nada a ver com o antigo Egipto que é negócio cultural e turístico posto a render. Com perícia e mérito. Discreto na forma como gere a contradição da riqueza pagã e da ideologia monoteísta de ocupação. De se tirar o chapéu a esta arte de comerciantes sabidos e requintados.
(Foto de Pedro Tunes)

Cemitério à medida da cidade, ontem na periferia, hoje encravado cidade dentro.
Os cairotas, no seu culto aos mortos, tratam-nos como se estes tivessem necessidades de habitação. Visitam-nos regularmente, em bando familiar, para com eles conviverem e partilharem refeições. Porque imaginam que a solidão dos mortos é desolação que ninguém merece.
Constroem mausoléus que permitam a instalação do convívio entre vivos e mortos. Contratam guardas para cuidarem dos mausoléus dos seus e zelarem pela sua conservação e contrariarem ímpetos de saque.
Muitos dos guardas das habitações dos mortos encontraram ali melhores instalações de habitação que nos tugúrios de subúrbio. Depois, muitos familiares, demandando sítio para estar na capital, foram-se acolhendo a esses
apartamentos. Falaram-me num número actual de habitantes vivos do cemitério entre cem mil e um milhão de vivos. Quem vive e onde vive, procura melhorar a sua qualidade de vida, e assim se foram electrificando os mausoléus e dando-lhes outras mordomias.
Continuam na
cidade dos mortos e dos vivos, a viver muitos e a enterrar outros tantos. Coabitação, pois.

Numa cidade do tamanho do Cairo, quem pode anda de carro. Frota enorme, envelhecida, pobre. Calcula-se o resultado. Impossível andar, respeitando as regras. O problema é esse? Aguça-se a perícia, faz-se de tudo que a imaginação comporta ou está por descobrir. Sobram, por inúteis, os sinais de trânsito, as prioridades e outros pormenores. Buzinar é um prazer ou um tique. Espectáculo único: circular de automóvel no Cairo.

Dezoito milhões de pessoas amontoadas numa cidade. Quase diz tudo. Mas, ainda, a ordem no caos e um rio de vontades de viver. Uma cidade optimista e charmosa. Moderna. Poluída. Simpática, sobretudo.
(Foto de Pedro Tunes)

O aviso é claro em tudo o que é guia turístico. De tão celebradas e mitificadas, quando vistas de perto, as Pirâmides de Gizé (no Cairo) são uma decepção.
Talvez por causa de tanto aviso pessimista, aconteceu o contrário: o deslumbramento perante o génio do absurdo, do excesso e do inútil.
Para quê aquilo?
Porquê aquilo e tanta vontade de vencer a morte? Ou, pior, fugir-lhe
Sexta-feira, 24 de Setembro de 2004

De Luxor até ao Cairo, abandonou-se o cruzeiro e seguiram-se doze horas de vagão-cama para perfazer os quinhentos quilómetros de distância (onde se serviu o jantar e o pequeno-almoço). A animação subitamente disparou e o grupo transformou-se, por artes mágicas, numa excursão de finalistas de liceu. Julgo que pelo movimento e pelo alívio da carga cultural. Também, talvez sobretudo, pelas almas loucas que por ali andavam contidas e espreitando a oportunidade para se soltarem. Mas, para mim e seguindo crença velha, a causa é que qualquer estação de caminho ferro tem um poder mágico não decifrável.
O velho (mas aceitável) comboio que segue pela margem oriental do Nilo, acolheu aquele grupo a querer desopilo e resistente em se acolher ao leito. Invadido o bar, o egípcio de serviço largou copos, bebidas e provimentos, e tudo para a dança maluca. Sobretudo, a partir daqui, os vernizes estalaram e quem tinha cerimónias passou à qualidade de compicha. Resumindo, uma viagem e peras.

Pois, para turista, não podia faltar a
festa árabe. Proposta e rapidamente aceite por todos com disposição ao uso das máscaras indicadas para sensação de exotismo.
Foi um fartote animado. Necessário para descontrair, num calendário que puxava pelo físico e pela mente. E, num instante, cada turista se transforma numa máscara como se toda a vida não fosse sempre uma representação.

Como em todos os países árabes-muçulmanos com economia turística, os bazares e o comércio ambulante abundam, num comércio informal vigoroso e que se estende por tudo quanto é sítio, a oferta é diversificada, os preços são ajustados pelo
regateio (por regra, o ajuste é feito na metade do primeiro preço proposto pelo mercador).
Os egípcios usam magistralmente a sua simpatia endógena para cativar os turistas e sabem adoçar os corações dos resistentes.
A oferta é ampla. Desde as bugigangas insuportáveis até artigos interessantes. Têm uma produção artesanal intensa e variada (inspiração não falta) e chegam a apresentar imitações suportáveis que não tornam demasiado pimba a sala de estar.
Excepto as entradas em alguns museus e monumentos, tudo se compra e se paga em euros. Em notas ou em moedas (incluindo as de cêntimo). Se o turista se dispõe a trocar notas de euro por moedas, tem, por regra, direito a uma
lembrança pois eles encaram isso como uma taxa de câmbio suplementar e que lhes permite ir ao banco (onde não aceitam moedas). E, devido à diferença de cotação, o euro é mais bem recebido que o dólar.
Os vendedores egípcios são chatos como se calcula (mas o seu assédio é bem mais suportável que noutros países árabes de intenso turismo como sejam Marrocos e Tunísia). E, também como se entende, não perdem a oportunidade do contacto físico disfarçado com as turistas mulheres (novas, velhas, feias, bonitas, magras, gordas) sob a capa da representação da gentileza comerciante (ali, a carência sexual aperta e de que maneira).

Excepto as pirâmides concentradas em Gizé, perto do Cairo, a grande monumentalidade, marcas e sinais da civilização egípcia, concentram-se numa extensão de quinhentos quilómetros entre o Assuão (mil quilómetros a sul do Cairo) e Luxor, com paragens obrigatórias em Edfur e Kom Ombo. Falamos dos exteriores da arte, porque os recheios (que sobraram dos saques, da inépcia e da erosão) estão bem guardados e à vista no Museu do Cairo (e espalhados pela maioria dos maiores museus de todo o mundo). São quinhentos quilómetros de saber guardado e mitos espalhados a exigirem boa forma física, paciência e poder de captação. Trabalho duro para qualquer mortal comprovando que a transpiração é o caminho que leva a todos os saberes. O pior é o clima, dado que os monumentos (a maioria de celebração funerária) estão na margem ocidental, em deserto e sob calor abrasador. No Assuão, a temperatura chega a passar dos cinquenta graus em Julho e Agosto (no resto do tempo anda pelos quarenta graus). Conforme vamos descendo o Nilo, para norte, o clima torna-se um pouco mais ameno, sob influência do Mediterrâneo.
A maioria dos monumentos está bem conservada e abre bem o livro da complexidade e multiplicidade com que os egípcios teceram a sua religiosidade de enfrentamento dos medos e afirmação de poder.
Alguns estão em ruínas e semi-destruídos. Mas, mesmo assim, são entendíveis. Às vezes mais que os completos como é o caso das ruínas do Templo de Kom Ombo, que deixou ver a câmara secreta em que os sacerdotes se escondiam para manipularem os faraós, gritando-lhes a pseudo resposta dos deuses (na versão que mais lhe convinha) às perguntas que o ingénuo soberano formulava e, julgava ele, dirigidas às divindades.
Os turistas abundam mas não são em demasia. Sobretudo devido à retracção havida em muitos europeus e americanos de viajarem para o Egipto desde a chacina perpetrada pelos fundamentalistas no Templo da rainha Nefertiti em Luxor, uns anos atrás.
Face ao tanto que há para ver, a solução recomendada, para quem não é egiptólogo, é apanhar o essencial, saber desligar antes do ponto de saturação, e, no regresso, comprar e ler o
Dicionário do Antigo Egipto, obra publicada sob direcção do Prof Luís Manuel de Araújo (Ed. Caminho).
(Foto de Pedro Tunes)