Não devia lembrar a uma Editora a peregrina ideia de colocar no mercado um livro num único volume com 1.000 páginas, folhas em papel grosso e encadernação forte, um autêntico "tijolo" daqueles de vergar dedos e mãos ao relapso de militância na prática de ginástica específica das falanges até às falangetas. Porque ler não devia ser, muito menos do ponto de vista de uma Editora, um acto de sacrifício penitencial como se, pela incomodidade, se chegasse ao purgatório do saber. E calculo que não fosse essa a ideia castigadora do historiador Tony Judt (*) para nos reconciliar com a forma atribulada como os europeus reconstruíram o continente a partir das ruínas da Segunda Guerra Mundial.
E, no entanto, como se o sofrimento fosse um caminho para a memória, não há forma de se poder deixar de ler a obra de Judt recentemente editada entre nós (**) e que, em revisita à transformação europeia entre 1945 e 2005, derruba tabus, mitos, lugares comuns, conveniências e estereótipos, dando-nos um devastador fresco da construção europeia após a insanidade que a levou à loucura histérica da morte e da degradação humana. Reconstrução esta que, muito longe de ter sido repositiva e emancipada, foi, no essencial, uma enorme teia de ajustamentos, ajustes cruzados de contas, rapinas encapotadas e equilíbrios e reequilíbrios de forças. Com milhões de seres humanos a serem enxotados de um lugar para outro, a mudarem de pátria ou a transformarem-se em apátridas, sofrendo novas opressões e ignomínias, seguindo-se ao drama da guerra uma enorme extensão assente nas suas ruínas. Com o resultado surpreendente de as armas se terem calado na Europa até hoje (a grande excepção foi a Jugoslávia pós-Tito) e a opressão geopolítica a denotar uma capacidade de conter a transformação dessa tremenda guerra subterrânea em que milhões de europeus e muitas das suas fronteiras se deslocaram como fantasmas vivos. E se a "guerra fria", mais o complexo e repulsa da “culpa nazi” (a única verdadeiramente consolidada na condenação do horrores da guerra), um fruto genial da propaganda do Komintern quando - via capacidade de agregação do "anti-nazifascismo" - conseguiu o efeito redutor de "concentrar o mal" em Hitler, contiveram os estereótipos dicotómicos dentro de uma malha de silêncios histórica e politicamente convenientes, de que beneficiou sobretudo uma opção forçada pelo comunismo para milhões de europeus como consequência singela de viverem em território de conquista dos "vingadores de Estalinegrado". Só a implosão surpreendente do “império soviético” (provocando a primeira e grande derrota e retirada do Exército Vermelho após este chegar a Berlim em 1945) permitiu que a Europa se reencontrasse com as suas misérias e feridas escondidas e se revolvesse perante destinos impostos. E chegou então o tempo de a Europa, para se reencontrar e unir, construindo uma paz que não seja disfarce de guerras e opressões, deixar de ter os tapetes cheios de lixo escondido. É esse olhar, inevitável e urgente, que Judt nos obriga a deitar sobre a identidade europeia, descascando mitos e lendas, doloroso mas saudável, o único saudável. Sobretudo para que a União Europeia, o melhor que sobrou da miséria das suas gorduras burguesa e revolucionária, possa ser algo mais que uma enorme burocracia com moeda única e contabilidades públicas controladas.
Não era necessário sofrer para acartar e abrir à leitura um livro essencial sobre a fase última da história da Europa, esta Europa que temos e somos. Mas se tem de ser assim, por inépcia de uma Editora, como evitar esta dor? Bem pequenina, aliás, se comparada com as “dores” da Europa. Por isso, só por isso, vale!
(*) – Tony Judt (na foto), historiador britânico, actualmente professor na Universidade de Nova Iorque.
(**) – “PÓS-GUERRA – História da Europa desde
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