Para aqueles que ainda olham a guerra colonial que, durante treze anos, enfiou a nossa juventude em guerras contra as juventudes de Angola, Moçambique e Guiné, pelo prisma desfocado do bom povo português só feito de heróis, medalhas e saudades, releia-se o que disse, em sinceridade em bruto, um antigo “cabo comando”, Herculano Correia de seu nome, participante em feitos lusitanos em Mucumbura (Moçambique). Longe, bem longe, acima, muito acima do Hotel Polana, a jóia laurentina:
"- Como foi a operação que havia de levar ao massacre de Mucumbura, recorda-se?
- O suficiente. Nós saímos de helicóptero, até um aldeamento. A gente levou dois guias para nos indicar onde é que era a base da Frelimo que sabíamos existir na zona. Deste aldeamento, saímos com os guias à frente, mas os gajos eram espertos: começaram a andar às voltinhas, às voltinhas, a cansar-nos, até que o tal sargento de que já aqui falei, o tal que matou a criança, batendo-lhe com a cabeça numa árvore, descobriu a marosca e não esteve com meias medidas: pegou nos guias e desatou aos pontapés, à coronhada na tromba dos tipos, que quase os desfazia. Os dois negros, mortos de pancada e de medo - que o sargento disse logo que os liquidava «se continuassem a enganar a malta» - levaram-nos até uma aldeia onde só encontrámos um pastor (não sei se vocês sabem o que é um pastor, ou seja, um padre das missões), a mulher e a filha. Era assim um homem pequenino, com um olhar muito vivo. Nesta aldeia, houve então ordem para matar os guias: um cabo de Alverca, de quem eu sei muito bem o nome, mas agora não interessa, foi com uns quantos soldados, meteu os guias numa palhota distante daquela em que vivia o pastor, limpou o sarampo aos dois e, em seguida, mandou lançar fogo à palhota. O cabo, claro, tinha recebido ordens para actuar assim.
Foi nesta aldeia que pernoitamos, mas não pensem que tudo se passou tranquilamente. Primeiro, o sargento de que já falei, que hoje é capitão, suspeitou do pastor, disse que ele era um agente dos turras, etc. Portanto, montou-se guarda à casa do pastor. Encarregou-se de fazer a guarda um furriel que agora está na Copam como segurança, através da Associação de Comandos. Este furriel aproveitou a guarda para abusar da filha do pastor. Foi uma coisa que muitos de nós reprovámos, tanto mais que, na altura, o furriel usou ameaças de morte para conseguir os seus fins. Era deste modo que uns quantos faziam a guerra...
No outro dia de manhã, arrancámos. Arrancámos mas, entretanto, o comando arranjou uma trampina ao pastor. Como o comando estava convencido que a população da aldeia não andava longe e que com certeza fora o pastor que a aconselhara a afastar-se da povoação quando pressentiram a aproximação das nossas tropas, convenceu-se o pastor a sair da aldeia e ir direito à Cantina do António, um ponto de referência muito nosso conhecido. O pastor, acompanhado da mulher e da filha, não teve outro remédio senão obedecer, depois de se lhe prometer que em Mucumbura outra coluna com Berliets os esperaria para os transportar para território de segurança. Eles, então, foram para a Cantina do António, perto de Mucumbura.
Mas saímos muito mais tarde, tumba, tumba, tumba, por ali fora a aí a uns trezentos metros da Cantina do António levámos com uma emboscada
Voltámos a arrancar e seguimos em direcção a Chicôa. Passámos um ribeirozito, atestámos os cantis e andámos. Decorrido pouco tempo, após a passagem do ribeiro, ouvimos umas vozes. Houve ordem de abrir em círculo sobre o ponto de onde vinham as vozes e começámos a fazer fogo. E o que fomos descobrir? Viemos a descobrir a população da aldeia que, na verdade, tinha fugido para a Cantina do António (note-se que não havia ali cantina nenhuma, tratava-se de um aldeamento deserto), mas que, avisada pela Frelimo da nossa aproximação, cavara para o mato. Cercámo-los e vimos então que ali existia outra povoação. Rebuscámos as palhotas e, na posse de algumas raparigas do grupo populacional, apanhámos várias fotografias delas com membros da Frelimo. Isso é que o tal sargento ficou contente. O comandante da coluna, Borralho, mandou reunir o pessoal da população e comunicou com Chicôa, pois parece que ele também não sabia bem o que havia de fazer. De Chicôa, o tenente-coronel C. Lopes, ordenou que se «limpasse a área».
Não sei como contar isto... Bom, o comandante da coluna mandou que se metesse a população, umas trinta pessoas, velhos, mulheres e crianças, dentro duma palhota, depois atirou-se para lá uma granada. Buooom! Só se ouviam gritos, a palhota derrubada e a arder sobre os corpos; depois, eram dois grupos a fazer fogo lá para o meio: Pensámos que estava tudo morto, que ninguém poderia ir denunciar aquilo. A verdade é que uma velhota, sem nós sabermos como, escapou. Foi ela quem veio a denunciar tudo.
Saímos dali como doidos e então, pelo caminho, em direcção a Chicôa, destruímos tudo o que encontrámos: palhotas vazias, gado, plantações, tudo, tudo."
(No Semanário "Ponto", de 7 de Maio de 1981, relembrado graças ao porfiar com os caminhos da memória de um camarada ex-combatente)
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Foi assim. Também era assim. E o 10 de Junho, que sempre foi Dia da Raça enquanto a guerra durou, tarda nada chega aí.
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