A história faz-se de heranças de testemunhos. Faltando-lhe sempre os testemunhos dos que, esmagados, ficaram sem voz nem mão de escrita para contar. E é por isso que a história, todo a história, é uma história incompleta. Parte das vezes, por contar. E parcial que é a história, pelos seus longos e fundos buracos, em que se incluem os buracos construídos, há sempre um jeito de dirigir a história para onde se quer olhar. No fundo, a história não passa de um par de binóculos que se apontam para o que se quer ver. Com zoom, se o refinamento a isso inclinar.
Uma ucraniana vivendo entre nós, Tatiana de seu nome, cedeu uma entrevista a um blogo-repórter com uma mochila cheia de saudade bolchevique. E na peça lê-se assim:
“Nascida na então União Soviética, no país da Ucrânia, não resisti um dia em fazer-lhe uma pergunta que há muito trazia no meu espírito: "Na tua terra são mais felizes agora ou nos tempos da União Soviética?" "Aqui somos muito felizes mas na nossa terra éramos muito mais felizes, vivíamos melhor no tempo da União Soviética".”
”"Havia trabalho, as gentes eram naturalmente alegres, o ordenado de minha mãe era suficiente para a família, pais e três irmãos, viverem bem. O ordenado do meu pai era para amealhar". "Hoje em dia, a minha irmã é contabilista num banco, tem um bom emprego, ganha o equivalente a 50 euros".”
O blogo-repórter não perguntou a Tatiana o que faziam os seus progenitores na Ucrânia soviética – se eram funcionários estatais, do partido ou um outro braço da nomenklatura, ou se eram membros ou ouvidos do KGB. Fez bem o repórter em ser discreto. Se eles emoldurassem um dos casos, o certo é que teria o silêncio de Tatiana como resposta. Da mesma forma que, provavelmente, Tatiana calar-se-ia se os seus ascendentes proviessem dos milhões de camponeses ucranianos assassinados à fome pela “deskulakização” de Stalin, de vítimas das purgas mortíferas de Krutchov a mando de Stalin e que dizimou dezenas de milhares de comunistas ucranianos, dos interditos da Igreja Uniata, dos judeus de Kiev perseguidos nos progroms dos czares até Stalin, passando pela fúria devastadora das SS da demência hitleriana. No fundo, uma ucraniana como Tatiana tem mais razões para calar que para falar, sob o risco permanente de estragar a simpatia empática com que alegra a felicidade de servir o café ao blogo-repórter. Até porque a conversa podia alargar-se e ir até Tchernobil, ou até às constantes deslocações territoriais da Ucrânia entre os caminhos constantes das opressões russas e polacas e que moldou a Ucrânia, através dos tempos, no país europeu com as fronteiras mais transitórias e mais voláteis, cumprindo a maldição de ser país de terras férteis.
Tatiana fez bem o que dela se esperava. Pintou, para delícia do blogo-repórter ávido de vingança contra a história e os seus ventos doridos, um quadro de conformismo em que o “homem novo”, saído de uma sociedade revolucionada pelo proletariado, atingiu a plena felicidade pequeno-burguesa dos ordenados suficientes para a vida e a poupança. Inviável mas feliz. Poluída mas feliz. Criminosa mas feliz. Oprimida mas feliz. E como o blogo-repórter gostou, publicou. No pleníssimo uso do direito à liberdade. Mas talvez sem se questionar se escreveria em liberdade caso fosse "ucraniano soviético".
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