Rui Namorado, militante socialista e grevista em 24 de Novembro, desabafou através de uma reflexão do “dia seguinte”. Vale a pena lê-lo com a atenção devida aos lúcidos.
As esquerdas parecem epicamente condenadas a degladiarem-se entre si. As direitas navegam em águas aparentemente mais tranquilas. Abaixam-se para ver se a tempestade lhes passa por cima e se no fim ficam mais fortes e as esquerdas mais fracas.
O sector dominante da esquerda institucional resmunga oficiosamente uma imagem de fracasso da greve que a realidade teimosamente desmente. Os sectores dominantes das esquerdas sociais desenham um cenário demolidor que, se tivesse a dimensão afixada, já teria varrido qualquer governo. Esgrimem entre si números como se o peso da greve não fosse o resultado de um balanço sócio-politico, mas um hipotético apuramento impessoal de uma luta entre números.
O primeiro parece acreditar que, se fizer os sindicatos morder o pó, poderá navegar tranquilamente numa imaginária harmonia, gerida pelos generosos e altruístas senhores do dinheiro, que lhes continuarão a deixar movimentar as alavancas do poder. Os segundos parecem acreditar que se destroçarem o sector dominante da esquerda institucional verão abrir-se as portas de um outro poder político, onde os interesses que defendem tenham verdadeiro eco.
Mas se os trabalhadores forem vencidos e os sindicatos aniquilados, na constância do capitalismo, nenhum governo de esquerda respirará sequer cinco minutos de poder institucional. E se a esquerda institucional dominante for desmoronada, seguir-se-ão governos de direita, cuja novidade será o agravamento brutal de tudo aquilo que fez com que os sectores dominantes das esquerdas sociais combatessem o sector dominante da esquerda institucional.
Por isso, esta greve teve também uma dimensão trágica. Ela fez-me recordar aquela história do sapo que para ajudar um escorpião a atravessar um ribeiro o transportou no seu dorso. Contudo, a meio da travessia o escorpião espetou o seu ferrão venenoso no sapo. E ferido mortalmente o sapo perguntou. "Porque me matas, sabendo que se eu morrer também tu morres". E o escorpião respondeu: "É da minha própria natureza". E morreram os dois.
Mas neste caso, é como se a história envolvesse dois pares de sapos e de escorpiões. Num deles é a esquerda institucional que faz de sapo; no outro, são as esquerdas sociais. O desenlace é o desaparecimento de todos, seja qual for o papel que desempenharam.
Há uma subtil ironia, impregnando tudo isto. Embora pareçam desconhecê-lo, para cada uma das partes, os problemas da outra são afinal também seus. E cada uma delas precisa da força da outra para que, a prazo, não fique irremediavelmente enfraquecida.
Reconheço que a probabilidade de isto ser entendido por qualquer das partes, é escassa. Possivelmente, cada um dos lados continuará a incensar a sua própria santidade e a construir infernos onde gostaria de ver o outro; a construir minuciosamente a culpa do outro e a inocência própria.
Mas quem conseguir despir o seu olhar, por um momento, da neblina das aparências mais prementes, facilmente verá que, se ambos os lados continuarem a intercambiar sucessivamente entre si os papéis de sapo e de escorpião, acabarão por se afundar.
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