Se não lhes adormecer o zelo, pelo silêncio do tempo, uma comissão episcopal polaca continua a investigar, vasculhando arquivos, os casos dos bispos comprometidos como informadores/agentes da polícia política do regime comunista na Polónia. O escândalo com o arcebispo-espião Stanislaw Wojciech Wielgus, que esteve a um passo de ocupar o comando dos católicos de Varsóvia por nomeação papal, não deixou outra saída à Igreja Católica da Polónia. Esta missão episcopal de averiguações promete não ser fácil pois há fortes indícios de que a penetração da polícia política do marxismo-leninismo polaco foi profunda e diversificada nos vários escalões da hierarquia católica naquele país. E há sempre o risco, à partida, de as cumplicidades corporativas entre os homens de sotaina, antigos camaradas dos mesmos seminários, levarem mais ao encobrimento que à responsabilização e à vergonha pública.
O que se comprovou na Polónia não foi muito diferente do acontecido nos restantes países que experimentaram e experimentam o “socialismo real”, podendo é variar no grau de extensão. Não só estes regimes, todos descambados em estados policiais, refinavam e estendiam a toda a sociedade as sofisticadas artes e práticas policiais, em que as infiltrações e a proliferação de “bufos” eram a base da eficácia de controlo e de repressão, como as organizações e práticas religiosas (potenciadoras de uma resistência ideológica ao “socialismo científico”) mereciam particular vigilância e tratamento. Por outro lado, estando as Igrejas nestes regimes ditatoriais numa situação defensiva e contrariada, atreita portanto à pressão, repressão e chantagem, tendo de se bater ideologicamente contra a cultura ateia dominante e porfiando paralelamente em ganhar espaços de penetração, era inevitável a tendência esporádica para as tréguas e alguns compromissos de contemporização. A actual posição da hierarquia da Igreja Católica de Cuba, acentuada progressivamente desde que o anterior Papa visitou aquele país, passando a ser uma importante defensora do regime castrista e multiplicando as missas pela melhoria da saúde de Fidel, não tendo evitado sequer entrar em polémica violenta com os seus camaradas bispos da República Checa quando estes apelaram à mudança liberalizadora do regime cubano, é um bom exemplo de como, em dificuldades e para manter e alargar espaço de influência, a Igreja se presta a conluios de compromissos negociados com o poder, qualquer poder. Incluindo poderes com ideologia antagónica.
A tendência atractiva, passando ou não pelo compromisso de dormir com o inimigo, entre os totalitarismos, é antiga e já conheceu tantas edições que se pode dizer que é recorrente assinalá-lo. O totalitarismo católico-vaticanesco, na sua apetência imperial por se encrustar no poder do Estado e alcançar a influência máxima através dos máximos meios, assente na sua auto-vocação de se querer impor universalmente, torna-o mais convivial com estados totalitários que com a laicidade, os direitos e as liberdades dos estados de perfil democrático. Nas situações em que o totalitarismo assume uma modalidade de fascismo nacional-católico (casos das antigas ditaduras do século XX em Portugal, Espanha, Roménia, Hungria, Eslováquia, Polónia, Croácia, Chile e outros países da América Latina) a osmose é institucional, juntando-se a fome à vontade de comer num projecto comum. Assim, por exemplo, não surpreenderia nem seria notícia se soubessemos mais dos muitos padres católicos que foram agentes e informados da PIDE e pactuaram com as atrocidades coloniais, porque a aliança Salazar-Cerejeira era um manto público justificador institucional do casamento entre Igreja e a ditadura do tríptico clérico-obscurantista "Deus-Pátria-Família". Nas situações de poder marxista-leninista, muito se chegou na hora de refinar a diplomacia da detente e do compromisso de convívio negociado de dogmas e áreas de influência.
O “caso polaco” foi especial. Sobretudo porque a influência católica, a par da inteligente estratégia da “guerra fria” em entronizar um papa polaco, tinha uma dimensão tal que transformaram a Igreja Católica polaca na principal fonte e meio de inspiração e organização da frente apostada na corrosão e demolição do poder marxista-leninista no Leste. Mas se a Igreja jogou forte e eficaz contra o regime polaco, os comunistas polacos não lhe ficaram atrás e apostaram naquilo que o comunismo melhor sabe fazer quando no poder – manda a polícia trabalhar muito e bem. Com a procissão ainda no adro, temos agora uma ideia aproximada da extensão com que a polícia politica polaca penetrou e arregimentou entre os muitos curas católicos disponíveis a venderem as suas misérias espirituais, aparentando trabalhar pela Igreja contra o comunismo enquanto denunciavam à polícia comunista as lucubrações conspiratórias tecidas nas sacristias contra o regime. No fundo, um profundo encontro de misérias. De ideias e de pessoas. Sobretudo de práticas que geram estas pessoas. Em que dois totalitarismos, na essência e mais uma vez, mostraram estarem bem um para o outro.
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