Como já aqui referi, no princípio deste mês vi-me “retido” durante uma semana, por razões de saúde da minha co-pilota (que eu não trato como o Carlos Sousa tratou o seu no caminho para Dakar), numa pequena cidade de Castela-Mancha (Cuenca), entre Madrid e Valência. Da cidade em si (que é património da Humanidade) falarei depois se para tanto me inspirar. O certo é que estar durante uma semana preso na modorra da rotina provinciana de Cuenca, sobretudo quando o ritual do itinerário quotidiano dominante é Hotel-Hospital-Hotel, ultrapassa largamente a oferta de fruição turística do exótico e simpático burgo. Assim, acabei por mergulhar no tédio do deslocamento, o que foi novidade para as muitas e gratas vezes em que mergulhei em Espanha, onde me sinto em casa (sobretudo se há “corrida” para matar saudade de fiesta sem a corruptela lusitana do coito interrompido na altura da finalização).
Estando ao rubro a discussão e indignação com o atentado em Barajas dos pistoleiros/bombistas da ETA, tentei matar o tédio amontoando leituras de todos os jornais espanhóis com todas as cores e provenientes de várias regiões e ainda sobrou tempo para seguir os debates e comentários televisivos. Esta inundação informativa, e os periódicos espanhóis têm substância e pluralidade, permitiu-me reflectir um pouco sobre a realidade do terrorismo nosso vizinho e a dificuldade em o estancar. Sempre enquadrado no enorme espanto sobre como é possível, com 30 anos de democracia, uma cambada organizada de criminosos da pior espécie conseguir inquietar a vida de um país poderoso e democrático, determinando a sua agenda política. E como a estabilidade em Espanha, sendo o iberismo uma fatalidade no quadro da integração europeia (porque o preço incontornável de espanhóis e portugueses resistirem ao iberismo é serem, uns e outros, menos europeus, logo mais exógenos relativamente à Grande Europa), influencia decisivamente o futuro democrático português, não se pode dizer, com responsabilidade, que as bombas, os tiros e as extorsões da ETA se passam longe e não nos salpicam do sangue das vítimas. E, por isso, senti a bomba em Barajas como se tivesse sido na Portela e senti os desgraçados equatorianos assassinados como se fossem nossos patrícios. E vivi o atentado como podendo ter sido eu ou alguns dos meus a estarem na hora errada no sítio errado.
O facto que mais me impressionou no contexto do vulcão político desencadeado com o atentado, foi o enorme desfasamento entre a clareza e firmeza da maioria dos comentadores na comunicação social, límpida e sem tibiezas, e a nebulosa complicada e retorcida do mundo político e partidário espanhol. Os comentadores sublinhavam o óbvio – necessidade de um corte duro com a chantagem assassina da ETA, traço a que só as franjas partidárias e nacionalistas se prestavam, como sempre se prestarão, aos redondinhos de arremedo contemporizador e negocial, havendo a garantia de que 90% dos eleitores espanhóis haviam escolhido há muito o caminho de que, para viverem em paz e em democracia, há que combater e aniquilar os encapuçados com boina, bomba e gatilho. Passando-se para o plano político-partidário, tinha-se o espectáculo indecoroso com gente viciada a jogar poker político para que, do trauma do atentado, obtivessem dividendos para contas absolutamente egoístas. O governo e o PSOE entalados na sua minoria parlamentar, assim dependentes das micro-bancadas, ainda a terem de pagar o ónus de a ETA lhes ter estoirado na cara com uma bomba como paga das “tréguas”, num caminho de zigues-zagues próprio de bêbados políticos. O PP, com uma magistral campanha de comunicação e exploração de sentimentos, a querer impor ao governo a sua estratégia vinda do passado, vingar-se da vergonha-derrota de Aznar após a mentira do 11M, mostrando-se mais interessada no desgaste de Zapatero que no real combate à ETA (confirmaria obscenamente isso mais tarde quando, perante a manifestação de Madrid, disse que não participaria a menos que inscrevessem o slogan “pela liberdade” e quando essa vontade foi feita, mantiveram a recusa de desfilarem em conjunto com o partido do governo). A IU a fazer o seu habitual papel moralista de apelar a uma frente ampla que meta toda a gente para lá ter lugar a sua pouca gente e parecer muito maior do que é. O PNV a fazer os seu habitual jogo mercantil de estar bem com todos e servirem de cortina protectora à ETA/Batasuna. Os nacionalistas catalães (de esquerda e de direita) a assobiarem para o lado, engordados com o compromisso de que se não combaterem a ETA, ela não meterá bombas na Catalunha (em Barcelona não houve manifestação). O Batassuna (os assassinos políticos etarras) a darem show de duplicidade desencontrada e representada com o atentado, alardeando o descaramento da impunidade. Para cúmulo, o Rei a discursar num tom ensonado a exercitar o espectáculo patético de apresentar a linearidade democrata de firmeza mais consequente, juntando mais umas pedras preciosas ao ornamento da coroa mas sem retorno útil na situação política. Enfim um somatório de egoísmos partidários e nacionalistas, como se tratassem de abutres políticos a chafurdar nos escombros e nas vítimas de Barajas.
Não sei como culminará esta dissonância entre a opinião pública espanhola (se ela é traduzível pelos comentadores da comunicação social) e os jogos políticos degradados dos egoísmos partidários e regionalistas. Mas percebi porque é que a ETA continua a largar bombas. Porque é o único grupo político de Espanha (no caso, um grupúsculo, até na escala do País Basco) que domina a racionalidade política na apreciação da afirmação do objectivo principal (e o seu é matar para se agigantar, matando sempre porque de anão político sabe que nunca passará). Não mais que isso. Mas matam. Tenho hoje a sensação (triste!) de que a ETA vai continuar a matar e a condicionar a agenda política. Resta-me a esperança que, talvez depois do próximo atentado, uma “bomba” estoire no egoísmo político espanhol e imponha, como causa comum e decidida, a erradicação da principal e mais perigosa herança da ditadura – a dos assassinos cobardes incompatíveis com a democracia e a liberdade. Caçando e metendo atrás de grades os últimos filhos (simétricos) de Franco, os cobardes etarras.
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Adenda: ler em perspectiva diferente mas mais convergente que divergente este post do Daniel.
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