Dá que pensar que o livro entre nós editado e que é mais fulminante no desmontar das experiências das sociedades subjugadas ao “socialismo real”, seja um livro que, já com dois anos de edição portuguesa (a edição original é de 1991), tenha passado discretamente pelos escaparates das livrarias e seja da autoria de uma mulher. Refiro-me a “Como Sobrevivemos ao Comunismo Sem Perder o Sentido de Humor” (edições “Pedra da Lua”) da escritora, jornalista e feminista croata Slavenka Drakulic. O fraco impacto do livro terá a ver com o facto de tanto o comunismo como o anticomunismo serem causas de empenhamentos dominantemente masculinos e este libelo de desmontagem da engenharia social do marxismo-leninismo, feito por uma feminista que viveu “o comunismo por dentro” e sobretudo assente no quotidiano das pessoas comuns, ser uma excepção num universo temático dominado por ensaísmo histórico-político sobre as experiências comunistas (dito melhor: das sociedades governadas por partidos comunistas) e de autoria masculina.
Segundo Slavenka Drakulic, as sociedades do “socialismo real” desfizeram-se menos pela resistência política e ideológica ao comunismo, em que o conformismo e a repressão (com a sofisticação da transformação das sociedades em estados policiais) terão bastado para conterem os ímpetos de derrube das tiranias instaladas (fora durante as poucas erupções focalizadas na RDA, Hungria, Checoslováquia e Polónia) e mais pelo arrastamento insuportável de uma penúria assente e prolongada pelo completo desprezo pela qualidade de vida das pessoas comuns e cujo peso maior recaía sobre as mulheres. O facto de Slavenka Drakulic ter vivido na ex-Jugoslávia, o único “país socialista” onde era permitida a livre circulação para países estrangeiros, o que lhe dava o privilégio de comparar o estilos de vida nos dois sistemas, ao mesmo tempo que circulando nos “países socialistas” ia recolhendo os testemunhos dos desencantos femininos pela difusão do igualitarismo assente na penúria. E são esses testemunhos que recheiam o seu livro e o transformam numa das mais conseguidas desmontagens não só das sociedades comunistas como da extensão da mentira enquanto instrumento básico e incontornável da prática comunista. Assentes nos sofrimentos e desencantos provocados por uma penúria que era excluída da discussão pública mas que atingia, pelo arrastamento bloqueado durante décadas, o âmago da qualidade de vida dos cidadãos, como foram a espiral de acanhamentos sucessivos dos espaços de habitação, a ausência de escolha dos produtos, a escassez de bens não básicos, o desprezo perante bens essenciais como o papel higiénico ou os pensos e tampões higiénicos. Esta erosão do quotidiano, numa sociedade em que a penúria era um sinal político e ideológico, mas que acumulava as evidências do desprezo congénito do vanguardismo comunista cavando as suas zonas de privilégios (restritas às cúpulas político-ideológica e construindo uma "camada privilegiada") e votando o povo comum ao destino da indigência dos sobreviventes, transformou as sociedades sujeitas às navegações dos timoneiros marxistas-leninistas em sociedades de cínicos, passivos e indiferentes. Ao mesmo tempo que o brilho das luzes consumistas “ocidentais” eram mitificado e desejado.
“Como Sobrevivemos ao Comunismo Sem Perder o Sentido de Humor”, um livro a resgatar do pó do esquecimento.
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