Dias Lourenço integrava o género escasso de dirigentes do PCP da “velha guarda” (associada à reorganização dos anos 40) que se admirava e também se gostava pessoalmente e logo “à primeira vista” numa empatia automática despoletada pela forma calorosa e fraternal como este dirigente e muito poucos mais não só viviam a vida do partido como se relacionavam com todos os camaradas, parecendo terem uma quantidade inesgotável de ternura para dar e trocar. Ao contrário de tantos outros (que “secaram como pessoas" pela dedicação total e monástica à vida do partido), Dias Lourenço, com uma vida repleta enquanto revolucionário, clandestino e prisioneiro político, mantinha intacta uma ternura espontânea e contagiante nos contactos humanos. É pois natural que o seu desaparecimento, apesar da sua adiantada idade e da sua retirada da vida partidária relevante desde há bastante tempo, tenha provocado um sentimento de dor de perda com um rasto de saudade. Não fui excepção e contei-me entre os que se levantaram em respeito e ternura pela passagem de Dias Lourenço para o lugar onde devem morar os ausentes definitivos.
Naturalmente que o papel relevante de Dias Lourenço na história do PCP e alguns dos seus feitos, parte deles lendários e cometidos em condições de coragem extrema e sempre com a fibra dos revolucionários mais ousados e determinados, sobressaíram nos seus elogios fúnebres. Até porque a maior parte da vida de Dias Lourenço enquanto revolucionário comunista se confunde com a história do PCP. Mais até que aquilo que a memória política autorizada no PCP permite, incluindo para os seus, até para um dos mais valiosos dos seus. De facto, Dias Lourenço, na sua longa vida partidária, andou com tanto PCP dentro de si que até sobrou um bocado para alimentar a margem dos tabus com que os marxistas-leninistas gostam de rechear a história, a sua história. Leia-se o último número do “Avante” em que se dá relevo ao desaparecimento de Dias Lourenço (editorial e nota sobre o seu funeral), com abundantes dados biográficos sobre o dirigente falecido e tentem encontrar dados sobre a fase em que Dias Lourenço desempenhou as tarefas de direcção mais relevantes, ou seja, quando após a sua fuga de Peniche em 1954, pertenceu à Comissão Política em 1956 (a que regressaria em 1974) e integrou o Secretariado entre 1957 e 1962. E verifique-se esse feito espantoso de, em notas de elogio fúnebre sobre Dias Lourenço, onde não é sequer esquecida a menção de que participou no III Congresso do PCP em 1943, se terem “extraviado” dois importantíssimos congressos comunistas a que este dirigente esteve intimamente ligado enquanto dirigente partidário dos mais altos escalões – o XX Congresso do PCUS em 1956 (o da denúncia do estalinismo, em que Dias Lourenço participou em representação do PCP) e o V Congresso do PCP em 1957 (o do “desvio de direita”), em que Dias Lourenço teve o inevitável papel relevante de apoio à transposição das teses da “coexistência pacífica” de inspiração krutchoviana para a da possibilidade de uma transição pacífica do fascismo para a democracia em Portugal (e que as eleições com Delgado em 1958 iriam testar até ao limite). Ou seja, para dois factos que não deviam ser factos, segundo o juízo político do momento, põe-se a biografia do homenageado a dar saltos. Mas que a grandeza da figura de Dias Lourenço não só não necessitava como o decoro que devia ser natural entre camaradas devia inibir tentativas de tesourar percursos políticos e partidários para contornar nojos à Iejov por tentação para retocar a memória colectiva.
O Zé Neves chamou Dias Lourenço de “o homem vermelho como a cor do cimento e da ferrugem”, devolvendo-lhe postumamente o seu olhar proletário sobre os proletários. O Ricardo Noronha recitou Brecht para o homenagear. Eu fico-me pelo espanto de constatar que Dias Lourenço tinha tanto PCP dentro de si que o PCP não aguenta tanto ou todo Dias Lourenço.
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