Registe-se o sintomático quase silêncio perante o desaparecimento de Basil Davidson (*), inglês, jornalista, historiador e militante anticolonial. E, no entanto, se há personalidade estrangeira que se cruzou ininterrupta e fortemente com a história portuguesa nas décadas 60 e 70 do século passado, o calmeirão Basil Davidson está no alto do podium com medalha dourada ao peito.
Tendo desempenhado várias e arriscadas missões de maquis para os serviços secretos britânicos na Segunda Guerra Mundial, Davidson começou a interessar-se por África na década de 50, coincidindo com o declínio do império britânico e do colonialismo. De tal forma que se tornou o grande especialista mundial na história de África, praticamente órfã (ainda) de historiadores africanos e relativamente prisioneira de olhares académicos eurocêntricos sobre África. Com o aspecto paralelo de que o seu trabalho de investigação e estudo ser complementado com uma forte intervenção publicista, escrevendo crónicas e reportagens para alguns dos principais meios de comunicação social ingleses. A este africanismo de historiador-jornalista, Davidson juntou, pela sua descoberta da profundidade hedionda do esclavagismo e do colonialismo em África, particularmente chocantes enquanto elementos de destruição de uma parte da civilização, uma intervenção cívica de inteira disponibilidade para suporte das causas anticoloniais. Quando se inicia a década de 60, com as grandes potências europeias a largarem os seus últimos bastiões coloniais em África, a militância anticolonial de Davidson depara-se com a subsistência da última excrescência teimosa do colonialismo (o português) que queria contrariar uma evidência de resolução histórica pela força das armas, enquanto, do outro lado, os nacionalistas das colónias portuguesas decidiam que se Salazar só tinha a resposta da metralha às suas aspirações de dignidade e soberania então havia que responder com o fogo das armas às armas do ocupante.
As guerrilhas que combatiam o colonialismo português em Angola, Guiné e Moçambique, rapidamente perceberam a importância de Davidson como seu aliado para dar eco às suas causas na opinião pública internacional. O jornalista-historiador tinha uma profunda influência nos media ingleses (e daí irradiar para a comunicação mundial), não era passível de ser confundido como agente do comunismo internacional pois nem sequer era marxista, antes tinha um “respeitável” currículo de antigo agente dos serviços secretos britânicos, o que lhe dava respeitabilidade perante o Establishment britânico (embora visto como um esquerdista excêntrico mas tolerado), era um homem de Opinião, de Academia e de Acção, com influência nas universidades e os seus livros eram referências bibliográficas incontornáveis sobre a História de África. Além de que a proximidade de Davidson com a ala esquerda do Partido Trabalhista, quando este partido estava no governo ele era uma via muito útil para se "fazerem pontes" que contrabalançassem o poderoso lobby da ditadura portuguesa junto do governo britânico. Estabelecidos os contactos, Basil Davidson tornou-se, até à independência das colónias portuguesas, na personalidade ocidental mais empenhada nas causas dos movimentos de libertação (do MPLA mas, sobretudo, da FRELIMO e do PAIGC) que incluíram a realização de várias reportagens que Davidson fez junto das guerrilhas e em território colonial já libertado por estas (na foto, Davidson numa visita a uma zona controlada pelo PAIGC no interior da Guiné-Bissau, em plena guerra colonial naquele território), tanto mais que a sua experiência de guerrilha durante a Seginda Guerra Mundial lhe facilitava a adaptação à cultura e às circunstâncias da vivência dos que combatiam o exército colonial português. Em paralelo, Davidson, até porque “cavava” no terreno geoestratégico mais favorável ao salazarismo-marcelismo, tornou-se no inglês mais odiado pela ditadura portuguesa, um sujeito que tirava o sono à PIDE.
Com a perda de Davidson e olhando os livros mais antigos que povoam as minhas estantes, alguns nas edições originais, aqueles em que mais aprendi sobre África, o esclavagismo, o colonialismo e o anticolonialismo, saídos da escrita limpa e valente de Basil Davidson, guardo-me num silêncio de respeito perante este honorável cavalheiro britânico, um dos grandes amigos não africanos de África. Porque, cá para mim, ele fica-me como tendo sido um verdadeiro Sir e sem que isso engulhe o meu republicanismo.
Nota para eventuais interessados: algumas obras de Basil Davidson foram traduzidas e editadas em Portugal (sobretudo na "Caminho").
(*) - Todas as regras, como costume, incluindo nas do alheamento, têm as suas excepções honrosas. A Joana Lopes demonstra que continua a tomar pontualmente os comprimidos contra a amnésia e a injustiça do desdém e da ignorância perante os justos e os valentes.
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