Sábado, 10 de Julho de 2010

Retrospectiva útil, com uma visão particular e discutível, por isso interessante, sobre as origens de algumas “coisas”

 

 

Da autoria de "mcr":

A ausência de vida democrática, de uma imprensa livre e multifacetada, os silêncios tácticos, as ambiguidades estratégicas reduziram a oposição interior portuguesa a um conjunto de solilóquios que se ignoravam quando não se sobrepunham. O grande crime do Estado Novo terá sido exactamente esse: secou a vida intelectual própria e alheia. A Direita repetia Alfredo Pimenta ou vivia à sombra (e com os favores) do Regime. Tudo isso embrutecidamente envolvido num celofane católico e rural. A Igreja portuguesa ia a Fátima, publicava O Cavaleiro da Imaculada e outras necedades e não tinha no seu seio, sequer nas JOC ou na JUC, um contraponto de peso. Meia dúzia de contestatários sem raízes e, muito menos, eco na comunidade, não podem mesmo com a lupa histórica de hoje merecer mais do que três linhas. Aliás o catolicismo português estava descristianizado desde há séculos, era beato e amorfo pelo que pedir ao pilriteiro que desse peras era esperar apenas mais um milagre. E os milagres no segundo e terceiro quartéis do século XX eram exageradamente raros.

Não admira, portanto, que a juventude universitária, ou pelo menos a sua elite dirigente, que acampava na oposição, se mostrasse extremamente receptiva à propaganda do Partido Comunista. Este propunha-lhe uma “teoria”, um exemplo heróico, uma mitologia e uma critica radical ao passado (du passé faisons table rase) cuja virtude era mais do que discutível.

Foi este o caldo de cultura que permitiu que em Portugal o radicalismo “esquerdista” nado e criado nas estruturas juvenis do PC, substituísse, ilidisse, banisse, qualquer arroubo social-democrata. Da França vinham livros e revistas cuja leitura acrítica, inconfrontável com a realidade francesa que se desconhecia, introduzia ainda uma maior distorção na já depauperada análise da realidade nacional. Entre 1965 e os primeiros anos de setenta, a esquerda movente portuguesa, alimentou-se sucessivamente da revolução cubana revista pelo Che e pelo nefasto “révolution dans la révolution” de Régis Debray, pelo anti-colonialismo radical de Fanon e dos seus apóstolos europeus (e omite-se aqui piedosamente o nome de um maître a penser europeu que afirmava convicto que o colonizado que mata um colonizador liberta duas pessoas, o falecido e o assassino...), pela crónica romanceada mais além do absurdo da Revolução Cultural que nos transmitia uma China pujante que lançava hordas de jovens guardas vermelhos contra os burocratas, os camponeses, os citadinos, o aparelho do Partido e toda a cultura antiga do velho império. Já antes, anos cinquenta, o Grande Salto em Frente e todos os desvarios a ele devidos, tinham sido celebrados como aceleradores de revolução. A felicidade presente era postergada pela futura, a fome actual era garantia de fartura próxima, a cultura velha era varrida pelo vigor bárbaro das multidões ululantes que empunhando um livrinho vermelho, papagueavam todos os solecismos revolucionários. Mao, o grande timoneiro, voltava a atravessar um rio impetuoso, nadando contra corrente e contra os cadáveres dos velhos combatentes da Longa Marcha. Dez, vinte, cinquenta milhões de mortos depois, os discípulos do velho revolucionário aturdiam a Europa rica martelando slogans copiados de 1917 num mundo espesso e opaco em que o proletariado que eles queriam despertar ia para férias em Espanha e começava a gozar as delicias da sociedade de consumo. Felizmente havia o Vietnam, a luta heróica de um punhado de camponeses contra o grande Satã. Mais tarde, saber-se-ia, que o punhado de combatentes da sombra se compunha de dois milhões de soldados norte-vietnamitas, que a grande ofensiva do Tet se saldara com um infamíssimo e desnecessário número de mortos. Dez, cem, centenas, contra um, como os americanos não cessavam de afirmar sem que o mundo, ou a América, sequer, os acreditasse. Quando o mundo despertou (não para a justeza da causa vietnamita, mas apenas para a tragédia dos boat people) continuava igualmente desarmado para enfrentar o problema.

A esquerda mais radical (e jovem) nasceu nisto, cresceu com isto e passou das crises de fé católica para o anúncio dos paraísos marxistas-leninistas purificados por Pequim e Tirana, sem dúvidas e muito menos hesitações. Eram guerrilheiros da Nova Verdade e não seriam os pequenos revezes de um quotidiano implacável que os abalaria. Não admirará que, o golpe militar de 25 de Abril (uma outra divina surpresa, recebida com desconfiança, deve dizer-se) a tenha lançado num surpreendente assalto ao Palácio de Inverno, numa ânsia de queimar etapas que durou, se durou, dois verões. Desconheço – e pouco importa – se, por exemplo o MES solicitou ao PC uma reunião urgentíssima para lhe comunicar pomposamente que a sua análise da situação política indicava que a Revolução estava à mão de semear pelo que, oh ironia!, propunha ao PC que este assumisse as suas responsabilidades bolcheviques. Quem antes inventara o juramento de bandeira do RALIS e colaborara no golem dos SUV poderia continuar o seu intranquilo delírio com esta e outras fantasias. Como partido, o MES era já só a organização de Lisboa e pouco mais. Na província, o confronto com o real imediato, desmentia os slogans e os jornais da organização. Nada era como se afirmava e tudo tendia a ser exactamente o contrário.

Porém, quem entra na Revolução como numa ordem missionária tem, para além da realidade tristonha de que descrê, uma fé. Vê jardins no deserto e multidões triunfantes num grupo de quatro gatos pingados. Alguns grupos políticos nascidos dos azares da esquerda órfã constituem-se em Frente de Unidade Revolucionária sem saber que apenas juntam o último quadrado de fieis para acompanhar um enterro. O do voluntarismo, do maximalismo, dos ecos da teologia da libertação e das pequenas crises recorrentes da universidade de Lisboa. Nada de grave, nada que com o tempo não passasse. A acne, mesmo revolucionária, cura-se normalmente com a chegada à idade adulta. É uma questão de tempo.

E foi. Não sem dificuldades e recuos. A ex-juventude revolucionária, ou que por tal se tinha, padeceu o 25 de Novembro, andou dois dias cozida às paredes, tentou explicar o explicável por absurdos golpes e conspirações contra-revolucionários, pela traição do PC (!) e claro pelo peso do clero reaccionário. As “massas” (obviamente revolucionárias) ou tinham sido enganadas ou manipuladas. A revolução estava só adiada mas jamais batida. A fé move montanhas, ou pelo menos é nisso que os crédulos confiam. A movimentação GDUP, a campanha presidencial de Otelo e a deriva terrorista que se seguiu, desde os assaltos a bancos á meia dúzia de bombas e atentados (a que a Direita aliás respondia com mais eficácia) não assumiram em Portugal um tom excessivamente dramático. O país era pequeno, os cuidados conspirativos poucos e pueris, a formação política dos quadros mais activos não ultrapassava meia dúzia de slogans primários e o cansaço, a necessidade de refazer a vida, de ultrapassar as consequências de um par de anos de medidas económicas tão absurdas quanto contraproducentes foram a par do fortalecimento dos partidos “centristas” o suficiente para apagar os pequenos incêndios de 75. A normalização democrática, a resistência da sociedade civil, a despolitização, melhor dito o refluxo forte que se seguiu à carga de adrenalina revolucionária do PREC, derrotaram inapelavelmente os romantismos prematuramente nascidos em 74.

Vá-se a uma lista de “personalidades” do quinquénio 74-79, e veja-se hoje onde a esmagadora maioria dos seus participantes estão. E o que dizem. E como o dizem. Na mais remota hipótese esquerdista estão na “situação” do governamental P.S.. Muitos dedicam-se aos negócios, depois de uma conveniente passagem pelos corredores do poder. Outros mantém colunas na imprensa e se tivessem lido Nizan perceberiam porque é que alguém lhes chama “chiens de garde”. Não leram portanto não sabem e não sabendo nem sequer se ofendem.

Antes isto, do que termos tido umas brigadas à italiana ou um fracção armada à moda alemã.

(publicado também aqui)

Publicado por João Tunes às 16:35
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5 comentários:
De Joana Lopes a 10 de Julho de 2010
Hoje deu-me para te interpelar...

Eu sei que não sou «personalidade» mas onde é que o mcr me colocaria hoje? E onde estão os mcr's de 74-79?
De João Tunes a 10 de Julho de 2010
Joana, está lá no título (única parte da minha lavra, além da escolha da imagem): "uma visão particular e discutível". Mas interpela à vontade o Marcelo Ribeiro. Acho que ele adora ser interpelado.
De d'oliveira a 13 de Julho de 2010
Onde estou e onde não
A pedido de Joana Lopes aqui vão as minhas coordenadas: Antes de se saber onde estou convirá saber onde estive. Presumindo que essa questão refere o antes 25 A 74 sempre lhe direi que nesses últimos anos era advogado, defendia presos políticos de todas as tendências, assessora juridicamente dois sindicatos e não defendia patrões. Politicamente, depois de algumas prisões, passava fugitivos pela fronteira, colaborava com uma rede anti-colonial, escrevia na Vértice e no comercio do Funchal, e animava com muitos antigos colegas de Coimbra a editora Centelha ao mesmo tempo que fazia parte de um proto-grupo político também nascido em Coimbra e que se tornara conhecido por ter sido o eixo dirigente da greve de 1969.
Depois do 25 de Abril, fiz parte durante quase um ano do MES e durante escassas semanas de uma coisa que tentou chamar-se MSU
Não estive, porque recusei duas vezes, no Parlamento
estive em dois organismos estatais com funções dirigentes (entre 74 e 80, e em 90) a convite de políticos com que não me identificava. E gostei de lá estar. E ao que parece, as pessoas com quem trabalhei, gostaram que eu lá estivesse.
Não estou porque recusei na situação de condecorado. Recusei em seu tempo (e hoje penso que mal e sem razão) duas comendas, uma das quais africana.
Também não estou, nem alguma vez estive, em cargos particulares de importância económica ou social. Também é verdade que recusei por considerações meramente de ordem ética e política ir trabalhar para privados que, a meus olhos, e porventura mal, representavam opções filosóficas e económicas que não pareciam ser as minhas.
Escrevi uns livros.
Estive e estou com Manuel Alegre, mesmo se eventualmente discorde de alguma posição dele.
Estive na cadeia o número de vezes suficiente e passando algumas provações mais ou menos excessivas para saber do que falo (ou, no caso do que absolutamente não falei se é que me explico. Basta compulsar os meus numerosos processos políticos arquivados na Torre do Tombo), de quem falo e por que critico o que eu chamo “romantismos revolucionários”.
Quando a Joana Lopes quiser saber mais, bastar-lhe-á dar-se ao trabalho eventualmente penoso e desinteressante de compulsar os meus textos (que são demasiados) no blog incursões.
Finalmente, vou estando, por interposta e modesta subscrição monetária num par de acções de solidariedade na África subsahariana (apoio a escolas, bibliotecas e reinserção de crianças que foram soldados). Não se trata de salvar a alma (que suspeito não existir) de seguir alguma verdade revelada que nunca me preocupou ou sequer ocupou o pensamento, nem de pagar alguma dívida por ter vivido em África dois anos (entre os 13 e os 15). Tal privilégio paguei-o com a acusação, que nunca foi provada pela polícia, de auxílio aos “movimentos subversivos africanos”. Bastou-me negar dias e noites seguidas essa acusação.
Tenho muita pena de não pertencer a nenhum dos establishments que graças à falta de rigor e ao esquecimento histórico agora ocupam a cena deste teatro de enredos em que alguma esquerda se foi perdendo. Parafraseando um autor que me honrou com a sua amizade: irrecuperável!

Ainda que desnecessariamente sempre esclareço que o meu texto (talvez convenha lê-lo todo e não só a parte amavelmente publicada pelo João Tunes) falava, e só, dos que por mera fé, pouco estudo e muito entusiasmo juvenil, se lançaram na “cruzada” revolucionária. Viu-se, e vê-se, que o devaneio lhes passou a quase todos. Ou, não passando a alguns, antes os levou (e não são poucos os testemunhos escritos e publicados) à defesa a outrance de todas as tontices maximalistas. Em intelectuais, ou gente que se presume como tal, isso não é um erro mas apenas um crime. Os mcr são só um. Este. Represento-me a mim próprio e bonda. E fique claro que não quero representar mais ninguém. Não tenho já idade, paciência e, muito menos, vocação.
Em tempo: obviamente nem me passou pela cabeça criticar a Joana Lopes se é que V. é a mesma pessoa que publicou um estudo sobre os católicos e o Estado Novo e que conheci aquando da apresentação do livro do Zé Barata. É mesmo por isso que me dou ao trabalho de responder pelo que no caso de ser outra JL fará o favor de dar por não escrita esta longa resposta.
De Joana Lopes a 13 de Julho de 2010
Mcr,
Sou a mesma Joana Lopes, sim, que jantou consigo uma vez no dia do lançamento do livro do ZB e começo por lhe agradecer a longa «explicação» que não era de todo devida.
E li o seu post na íntegra.

A minha vaga interpelação ao falar dos «mcr's» não era tanto a si (ou tê-la-ia feito no Incursões), mas, confesso, mais ao João T. pelo facto de ter ido citar esta parte do seu post. Mas ele safou-se habilmente (como se eu não topasse...).

Entretanto, li há cinco minutos um post de Ricardo Noronha, no Vias de Facto, que critica o seu texto e uma parte das suas posições. Identifico-me, se não a 100%, pelo menos a uns 90 com o que ele escreve...
De João Tunes a 14 de Julho de 2010
Marcelo Ribeiro (mcr):

Mesmo não tendo transcrito tudo, o que saíu já foi um "lençol" (e um blogue não é própriamente um almanaque). De qualquer forma, meti o link para proporcionar a leitura integral do texto.

Joana Lopes:

Primeiro, fazes de dama ofendida com o texto do mcr; segundo, dás remoques para o ar sobre a presumida minha intenção de transcrever o texto do mcr; terceiro, não dás uma para a caixa a rebateres as considerações do mcr e abrigas-te no chapéu de sol aberto pelo contraditório do Ricardo Noronha. Estás a perder qualidades.

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