António Barreto não pregou em vão. O sociólogo que se emociona com jacarandás em flor e difunde calúnias toscas (fê-lo, pelo menos, numa crónica miserável sobre Rosa Coutinho) como quem planta manjericos tem, afinal, bons discípulos onde menos se esperaria que saltassem. Inclusive, enterneceu o duro esquerdista Daniel Oliveira. Que, normalmente bélico e belicoso (com as “boas causas”), faz um apelo à uniformização pela amnésia:
“Passados 36 anos, está chegada a hora do País fazer as pazes com a sua memória. E fazer justiça à geração da guerra. Sabendo que a guerra colonial não foi decidida por eles e que eles foram, com os povos das ex-colónias, as suas principais vítimas.”
Não há peça sem actores. E os actores não são todos iguais. Sobretudo quando se trata de uma má peça. Tão má que nem quanto ao título há (haverá) maneira de nos entendermos (uns chamam-lhe “guerra colonial”, outros “guerra do ultramar”, os africanos preferem designá-la como “guerra de libertação”). Digamos que sabemos quem decidiu a guerra e a prolongou até que um golpe de estado lhe pusesse termo, embora estas responsabilidades estejam bem mitigadas e demasiadamente restringidas nos registos históricos e quase apagados da memória colectiva (onde estão os nomes dos generais da “brigada do reumático” que, após o “golpe das Caldas” e após a publicação de “Portugal e o Futuro”, foram apoiar Marcello para que este prolongasse a guerra colonial? onde se registam os promotores e animadores do “Congresso dos Combatentes”, iniciativa de extrema-direita que ajudou a despoletar e politizar o MFA?). Sabemos que, além dos militares profissionais, a grande maioria dos ex-combatentes cumpriu e sofreu a guerra por disciplina, por falta de consciência política e por ausência de alternativa, ou seja, fez o que lhe mandaram fazer, com “carne de obedecer”. Como sabemos que um elevado número de mancebos desertaram e emigraram, recusando-se a participar na guerra. Como houve os que, na guerra, lutaram contra a guerra. Como existiram organizações que enfrentaram com armas o regime e fizeram do aparelho militar colonial os seus principais alvos (casos da ARA e das BR). Mas um número não negligenciável fez a guerra com gosto por matar, matando com gosto (Wiriamu, “nó górdio” e “mar verde” não foram ficções e são meros exemplos da face mais negra da guerra). E houve a PIDE, fundamental na guerra, não se podendo falar dela sem referiu o papel crucial da PIDE, que praticou em África os seus crimes maiores. E se o 25 de Abril foi feito por oficiais de baixa e média patente, isso significa que a esmagadora maioria de oficias com patente de tenente-coronel para cima estava com a “ideologia da guerra”. Mas além das responsabilidades individuais e de grupo, a guerra colonial, em si mesma, foi, primeiro, um crime contra África e os africanos, depois, um sacrifício inútil, doloroso e prolongado que se pediu à juventude portuguesa. Um crime contra África e os africanos que se prolonga nos dias de hoje porque Portugal largou as suas colónias pela força e até que a força lhe faltasse e disso são vítimas os povos que acederam à independência e construíram e constroem os seus países a partir das cinzas da guerra. E essa mancha medonha, essa sombra do nosso passado, não só não é motivo de orgulho como não pertence ao nosso património patriótico. Porque um crime colectivo não é integrável no nosso orgulho enquanto povo.
Não se trata, hoje, de julgar quem quer que seja, além do julgamento da História, a que não se apaga nem se emenda. E é plenamente justo que o Estado português, sem complexos e na continuidade dos seus deveres para quem o serviu, seja justo nas reparações, prestações e auxílios devidos aos antigos combatentes. Outra coisa, bem diferente, contraditória até, é a recuperação revisionista e negacionista do que representou a guerra colonial, com as suas facetas contraditórias e sem um todo unicista. E é esse negacionismo recuperador que está em marcha há um bom par de anos. Aproveitando sobretudo os ressentimentos e lides mal feitas com fantasmas e consciências, uma boas e outra más, até péssimas. Comandada por militares anti-abrilistas, seguida pelas direitas saudosas do império, os exaltadores das glórias castrenses, procura-se integrar a guerra colonial (agora, outra vez, “guerra do ultramar”) no património histórico dos grandes serviços prestados à pátria. Que o adorador de jacarandás queira a integração uniformizante da complexidade multifacetada da guerra não surpreende, embora indigne. Nivelando comportamentos, atitudes, sofrimentos, num pacto de amnésia destinada a "apaziguar" a memória, sob o chapéu diáfano da "pátria comum". Quando a memória o que pede menos é "paz", antes vive e alimenta-se das vivências, dos actos, dos testemunhos, dos juízos cruzados e do contraditório. Sobretudo quando a gesta foi sofrida e sacrificada mas nada abonatória do nosso comportamento de povo em contacto (por domínio) com outros povos. Que a procissão já arraste o Daniel Oliveira, é sinal preocupante sobre a extensão e penetração da operação de nivelamento do processo histórico português. Com frontalidade, e como ex-combatente, lho digo.
(publicado também aqui)
Deixo aqui o diálogo que mantive no Facebook (eu, JL) com o DO, a propósito do post que linkas. Continuar para quê? Mas pode ser que leia este teu post…
JL - Extraordinário, Daniel, que, aparentemente, tenhas passado ao lado de algumas enormidades do discurso de Barreto.
DO - Infelizmente li um resumo, por isso não comentei o discurso, mas apenas a questão dos ex-combatentes. Tens link para ele?
DO - Joana, mas nos textos que li a comentar ainda não encontrei nada que achasse propriamente relevante.
JL - Daniel, Eu ouvi o discurso EM DIRECTO e garanto que as notícias dos jornais referiram alguns pontos (escandalosamente) importantes. Linkei o Público, mas a notícia é mais ou menos igual noutros. E, para tua informação, houve vários blogues que comentaram e de forma bem mais violenta que eu - sou mansa no estilo. Daí, o meu espanto ao ler o teu texto.
http://entreasbrumasdamemoria.blogspot.com/2010/06/10-de-junho-do-mau-gosto.html
DO - Joana: eu li os comentários violentos. Só não li nenhum que me convencesse. E que me caia o céu em cima se sou fã do António Barreto.
Obrigado, Joana, pela partilha.
De josé urbano a 11 de Junho de 2010
Só quem não passou pelo horror de fazer a guerra, aquela odiosa guerra colonial, estando visceralmente contra ela, sei lá se por cobardia em desertar, se devido à forte pressão familiar para o não fazer, é que hoje pode ter qualquer espécie de compreensão por ela. A REALIDADE´é que a quase totalidade dos que a fizeram estavam contra ela. Não venha hoje, quem não viveu aquela amargura, tentar arranjar qualquer justificação à posteriori, com a psedo glorificação dos combatentes. EU FUI-O, E NÃO SINTO QUALQUER GLÓRIA PELO FACTO.
Sintético, meu caro, mas com todas as letras.
De Américo Nunes a 12 de Junho de 2010
Em todo o Mundo civilizado, e não só, em Países Ricos, cidadãos protagonistas dos grandes conflitos e catástrofes com eles relacionados, vencedores ou vencidos, recebem apoio, sobretudo nos capítulos socais da assistência, na doença, na educação, na velhice e na morte como preito de homenagem da Nação àqueles que lutaram pela Pátria, com exposição da própria vida.
Todos os que vestiram a farda da Grã-Bretanha, França, Rússia, Alemanha, Itália e Japão têm tratamento diferenciado. Idem para a Polónia e Europa de Leste, bem como para os Brasileiros que constituíram o Corpo Expedicionário destacado na Europa.
Idem para os Malaios, Australianos, Filipinos, Neo-zelandeses e soldados profissionais indianos.
Nos EUA a sua poderosíssima "Veterans War " não depende de nenhum secretário de Estado, nem do Congresso, depende directamente do Presidente dos EUA, com quem despacha quinzenalmente. Esta prerrogativa referendada por toda uma Nação permite que todos aqueles que deram a vida pela Pátria repousem em cemitérios espalhados por todo o Mundo, duma grandiosidade, beleza impares, ou todos aqueles que a serviram , tenham assistência médica e medicamentosa para eles e família, condições especiais de acesso às Universidades, bolsas de estudo, e outros benefícios sociais durante toda a vida.
Esta excepção que o povo americano concedeu a este tipo de cidadãos é motivo de orgulho de todos os americanos.
O tratamento privilegiado que todo o Mundo concedeu aos cidadãos que serviram a Pátria em combates onde a mesma esteve representada, é sufragado por leis normalmente votadas por unanimidade.
Também os civis que ficaram sujeitos aos bombardeamentos, quer em Inglaterra, quer em Dresden,quer em Hiroshima e Nagasaki, têm tratamento diferenciado.
Até o Irão dá tratamento autónomo e especifico aos cidadãos que combateram na recente guerra Irão-Iraque, onde morreram 1 milhão de iranianos.
Até países da Africa terceiro mundista e subdesenvolvida, como o Quénia, atribuiu aos ex-maus-maus,esquemas de protecção social diferentes dos outros cidadãos.
Em todo o Mundo, menos em Portugal.
Porque no meu país ainda temos os controleiros do “anti-fascismo”, gente que não só afirma boçalidades destas:…“Mas um número não negligenciável fez a guerra com gosto por matar, matando com gosto (Wiriamu, “nó górdio” e “mar verde”…, como alimenta um ódio inexplicável aos combatentes e a quem não pensa pela actual cartilha da “esquerda caviar” ou não pertencia ao PCP nos anos de guerra.
No meu país os talhões de Combatentes dos vários cemitérios, estão abandonados, as centenas de cemitérios espalhados pela Guiné, Angola, Moçambique, India e Timor, abandonados estão, quando não, profanados.
No meu Pais, a pouco e pouco, foi-se retirando a dignidade devida aos que combateram pela Pátria, abandonando os seus mortos e retirando as poucas “migalhas” que ainda tinham diferentes do comum dos cidadãos, a assistência médica e medicamentosa.
No meu país temos gente que se incomoda e ofende por António Barreto ter lembrado num discurso que: (…)Os soldados cumprem as suas missões por diversos motivos. Por dever. Por convicção. Por obrigação inescapável. Por desempenho profissional. Por sentido patriótico, político ou moral. Só cada um, em sua consciência, conhece as razões verdadeiras. Mas há sempre um vínculo, invisível seja ele, que o liga aos outros, à comunidade local ou nacional, ao Estado. É sempre em nome dessa comunidade que o soldado combate(…)
No meu país só não temos traidores apesar de apresentarem percursos militares mal explicados e terem sido defensores dos movimentos nacionalistas (ao serviço da Guerra Fria). Sendo que o crime de traição é considerado em relação à Pátria, não em relação a governos ou regimes. Não há traidores “democráticos” ou traidores a ditaduras, ou outra coisa qualquer. A traição é sempre relativa a uma causa, um juramento, uma crença. E para encurtar razões, que legitimidade tem esta gente para invocar a democracia e a liberdade, para justificar a sua acção contra a guerra colonial, quando na altura eram membros do PCP – uma das mais fiéis correias de transmissão do Kremlin.
Fez um discurso patrioteiro pobre e encarquilhado com o bolor do tempo. Muito mais pobre que o de Barreto, um desertor reconvertido em combatente patriota póstumo. Mas, aproveitando a porta negacionista que Barreto e Daniel Oliveira abriram ao nacionalismo fascistóide. E, curiosamente, conseguiu falar da guerra colonial referindo o Kremlin mas sem bolsar o íntimo onde deve estar guardado um agradecimento à "patriótica" PIDE. Limpe as mãos à parede.
De Américo Nunes a 12 de Junho de 2010
De facto não cabe neste pobre comentário qualquer referência aos crimes de uma qualquer odiosa policia politica seja ela fascista ou comunista, PIDE e KGB, são siameses. Fala-se tão só, dessa nobre arte que é combater, para defender a soberania. Não lhe ficaria mal lembrar que também foi combatente, sendo-lhe portanto dirigido também o discurso de António Barreto. Só fica uma dúvida você foi combatente, por quem?
Passe bem.
Claro, melhor ainda se fôr marchar para outra parada.
De João a 16 de Julho de 2010
Não foi a pátria amordaçada que nos convocou para aquela guerra, mas o regime que nos obrigou sob pena do exílio ou da prisão. Se houvesse então liberdade em Portugal a guerra não teria durado o que durou, com todos os sofrimentos para os portugueses e sobretudo para os africanos. Está muito por dizer sobre isto, foram precisos 35 anos para a nossa televisão passar um primeiro documentário sério sobre a guerra, o de Joaquim Furtado.
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