Quarta-feira, 2 de Junho de 2010

O livrinho que devia ser vermelhinho

 

Podia ter saído em edição tipo “livrinho vermelho” com capa resistente para se ler até no duche e de punho levantado. Mas não, saiu em ediçãozinha acanhada, com vivo azul, quase sem margens e trabalhoso para se manusear. Enfim, terá sido o que se pode arranjar para que o excelente conteúdo do livrinho de Miguel Cardina sobre a “esquerda radical” (*) aí estivesse para nossa informação e discussão. E ainda bem porque esta resenha fundamentada é útil e era necessária.

 

Os grupos que à margem do PCP, durante a resistência, sobretudo aqueles que foram as filiais lusitanas do diferendo sino-soviético (embora muitos outros grupos e organizações se tenham incluído na família da “esquerda radical”, nomeadamente o trotsquismo, os adeptos do guevarismo, da autogestão e os católicos radicalizados, a que Cardina também dá a devida atenção) cresceram e multiplicaram-se, entremeando ofensivas, normalmente através do panfleto, contra a ditadura (o “fascismo”) e a hegemonia resistente do PCP (o “social-fascismo”), mereciam um lugar adequado na história política, tanto mais que marcaram a própria revolução que se seguiu ao 25 de Abril e ainda bastantes dessas personagens recheiam as hostes bloquistas, embora radicalmente “transformados”, enquanto o grosso aderiu, precocemente e sem preconceito, à social-democracia e ao PSD, marcando ainda forte presença nos aparelhos governamentais e partidários, na academia e no jornalismo. Pela natureza grupuscular, cisionista e fraccionária destes grupos, a sua visão global constitui uma autêntica charada para os interessados no conhecimento das suas géneses e caminhos de multiplicação. E, neste aspecto, o livro de Miguel Cardina, ao sistematizar o “caos orgânico” dos grupos “m-l”, é, desde logo, de uma enorme utilidade orientadora. Mas o livro é mais do que isso. Além de uma escrita fresca e clara que se orienta bem no referido “caos”, Miguel Cardina tipifica os caminhos e motivações da “dupla contestação” (à ditadura e ao PCP), evidenciando ainda as motivações culturais e nos costumes que animavam os cortes destes activistas (sobretudo estudantes), os da ressaca de “68”, através de uma militância que pretendia ser, em simultâneo, inconformista perante a velha ditadura cheia de bolor conservador e o outro conservadorismo, o ideológico e petrificado dos “pró-soviéticos” (o que não os inibia de, na maior parte das vezes, competirem com estes nos rituais espartanos das vidas partidárias e parodiarem as “proletarizações”).

 

Numa etapa impensável tempos atrás, em que o PCP viu falecer-lhe o principal aliado, apoio e inspirador (a fonte do “burocratismo revisionista” segundo os contestários de outrora), fez as pazes com o simbolismo guevarista e cubano (antes, mais um problema que uma identidade), aproximou-se da China (tendo, primeiro, esperado que esta passasse do comunismo radical para o capitalismo selvagem), adoptando muita da linguagem política e partidária muito mais próxima do panfletismo maoísta de antanho que da grave e solene análise e oratória de Cunhal, estreitando a estratégia política no activismo e sindicalismo “de rua”, contaminado pela “impaciência grega” e desejo de alianças com o terrorismo do fascismo islâmico, o livro de Cardina ajuda, ainda, a iluminar como quase tudo em política muda e se transforma. Por vezes, absorvendo as heterodoxias mais radicais. Mas como tudo tem a sua data de nascimento e gestação, o “A Esquerda Radical” tornou-se, automaticamente, numa obra de referência, indispensável.

 

Feitos os elogios, sobra uma insatisfação. Miguel Cardina envolveu-se e envolveu-nos na viagem por dentro da esquerda radical e por aí se ficou. Faltou, a meu ver, embora tudo tenha o seu tempo, um estudo comparativo com as movimentações e dimensão do principal grupo competitivo do “maoísmo estudantil” (os agrupamentos juvenis do PCP, particularmente a UEC – União dos Estudantes Comunistas – após a sua formação). Essa medida dos pesos e influências relativas (muitas delas repartidas por faculdades politicamente hegemonizadas ora por uns ora por outros) seria a medida mais aproximada e interessante para aferir em que medida real, a de penetração, onde ganharam uns e onde ganharam outros e, ainda, o saldo final de uma luta bem renhida e muitas vezes incluindo o confronto físico. Sendo verdade que nenhum livro esgota os livros, aguardemos as peças em falta.

 

(*) – “O Essencial sobre a Esquerda Radical”, Miguel Cardina, Edições angelus novus.

 

(publicado também aqui)

Publicado por João Tunes às 16:21
Link do post | Comentar

j.tunes@sapo.pt


. 4 seguidores

Pesquisar neste blog

Maio 2015

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31

Posts recentes

Nas cavernas da arqueolog...

O eterno Rossellini.

Um esforço desamparado

Pelas entranhas pútridas ...

O hino

Sartre & Beauvoir, Beauvo...

Os últimos anos de Sartre...

Muito talento em obra pós...

Feminismo e livros

Viajando pela agonia do c...

Arquivos

Maio 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Junho 2013

Março 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Junho 2012

Maio 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Agosto 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Agosto 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

Março 2005

Fevereiro 2005

Janeiro 2005

Dezembro 2004

Novembro 2004

Outubro 2004

Setembro 2004

Agosto 2004

Julho 2004

Junho 2004

Maio 2004

Abril 2004

Março 2004

Fevereiro 2004

Links:

blogs SAPO