Podia ter saído em edição tipo “livrinho vermelho” com capa resistente para se ler até no duche e de punho levantado. Mas não, saiu em ediçãozinha acanhada, com vivo azul, quase sem margens e trabalhoso para se manusear. Enfim, terá sido o que se pode arranjar para que o excelente conteúdo do livrinho de Miguel Cardina sobre a “esquerda radical” (*) aí estivesse para nossa informação e discussão. E ainda bem porque esta resenha fundamentada é útil e era necessária.
Os grupos que à margem do PCP, durante a resistência, sobretudo aqueles que foram as filiais lusitanas do diferendo sino-soviético (embora muitos outros grupos e organizações se tenham incluído na família da “esquerda radical”, nomeadamente o trotsquismo, os adeptos do guevarismo, da autogestão e os católicos radicalizados, a que Cardina também dá a devida atenção) cresceram e multiplicaram-se, entremeando ofensivas, normalmente através do panfleto, contra a ditadura (o “fascismo”) e a hegemonia resistente do PCP (o “social-fascismo”), mereciam um lugar adequado na história política, tanto mais que marcaram a própria revolução que se seguiu ao 25 de Abril e ainda bastantes dessas personagens recheiam as hostes bloquistas, embora radicalmente “transformados”, enquanto o grosso aderiu, precocemente e sem preconceito, à social-democracia e ao PSD, marcando ainda forte presença nos aparelhos governamentais e partidários, na academia e no jornalismo. Pela natureza grupuscular, cisionista e fraccionária destes grupos, a sua visão global constitui uma autêntica charada para os interessados no conhecimento das suas géneses e caminhos de multiplicação. E, neste aspecto, o livro de Miguel Cardina, ao sistematizar o “caos orgânico” dos grupos “m-l”, é, desde logo, de uma enorme utilidade orientadora. Mas o livro é mais do que isso. Além de uma escrita fresca e clara que se orienta bem no referido “caos”, Miguel Cardina tipifica os caminhos e motivações da “dupla contestação” (à ditadura e ao PCP), evidenciando ainda as motivações culturais e nos costumes que animavam os cortes destes activistas (sobretudo estudantes), os da ressaca de “68”, através de uma militância que pretendia ser, em simultâneo, inconformista perante a velha ditadura cheia de bolor conservador e o outro conservadorismo, o ideológico e petrificado dos “pró-soviéticos” (o que não os inibia de, na maior parte das vezes, competirem com estes nos rituais espartanos das vidas partidárias e parodiarem as “proletarizações”).
Numa etapa impensável tempos atrás, em que o PCP viu falecer-lhe o principal aliado, apoio e inspirador (a fonte do “burocratismo revisionista” segundo os contestários de outrora), fez as pazes com o simbolismo guevarista e cubano (antes, mais um problema que uma identidade), aproximou-se da China (tendo, primeiro, esperado que esta passasse do comunismo radical para o capitalismo selvagem), adoptando muita da linguagem política e partidária muito mais próxima do panfletismo maoísta de antanho que da grave e solene análise e oratória de Cunhal, estreitando a estratégia política no activismo e sindicalismo “de rua”, contaminado pela “impaciência grega” e desejo de alianças com o terrorismo do fascismo islâmico, o livro de Cardina ajuda, ainda, a iluminar como quase tudo em política muda e se transforma. Por vezes, absorvendo as heterodoxias mais radicais. Mas como tudo tem a sua data de nascimento e gestação, o “A Esquerda Radical” tornou-se, automaticamente, numa obra de referência, indispensável.
Feitos os elogios, sobra uma insatisfação. Miguel Cardina envolveu-se e envolveu-nos na viagem por dentro da esquerda radical e por aí se ficou. Faltou, a meu ver, embora tudo tenha o seu tempo, um estudo comparativo com as movimentações e dimensão do principal grupo competitivo do “maoísmo estudantil” (os agrupamentos juvenis do PCP, particularmente a UEC – União dos Estudantes Comunistas – após a sua formação). Essa medida dos pesos e influências relativas (muitas delas repartidas por faculdades politicamente hegemonizadas ora por uns ora por outros) seria a medida mais aproximada e interessante para aferir em que medida real, a de penetração, onde ganharam uns e onde ganharam outros e, ainda, o saldo final de uma luta bem renhida e muitas vezes incluindo o confronto físico. Sendo verdade que nenhum livro esgota os livros, aguardemos as peças em falta.
(*) – “O Essencial sobre a Esquerda Radical”, Miguel Cardina, Edições angelus novus.
(publicado também aqui)
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